Gilson Lima. Esse texto foi escrito informalmente logo após o acontecimento de 11 de setembro de 2002. Reproduzi o fragmento - sem revisões de erros ortográficos ou os novos incrementos que recebeu no meu Livro: Nômades de Pedra, 2005 (esgotado).
“Lá no coração da floresta, longe de tudo que se conhece, de tudo o que você aprendeu na vida em escolas, livros, música e rimas você encontra a paz, a afinidade, a harmonia e até segurança. Um dia em uma cidade grande é muito mais perigoso que qualquer outro nestas florestas. Da para você entender?”
(Roteiro do filme americano: Instinto).
Nada é mais selvagem do que a civilização moderna; na verdade, é mais perigoso se viver um dia em Nova York do que quinze na Selva Africana. Entendeu?
As grandes mudanças na história civilizatória ocorreram na união de duas questões: a primeira é a existência de grande(s) acontecimento(s) e a segunda é quando por causa desse(s) acontecimento(s) várias forças sociais e tecnológicas se juntaram para criar uma nova “matriz operacional” nessa mesma civilização.
Primeiro vamos a um pequeno esclarecimento, o que estamos entendendo por acontecimento. Foi Bruno Schultz que melhor tratou sobre isso, ele escreveu um livro chamado "Sanatório”, onde introduziu uma distinção primordial entre fato e acontecimento .
Os fatos são a velha maneira moderna de encapsular a realidade, mensurá-la pela coisificação estática, onde são ordenados no tempo e dispostos em seqüência como uma fila. Eles – os fatos - agrupam-se apertados e pisam uns nos calcanhares dos outros. Suas almas serão marcadas sempre pela continuidade e sucessão. Cada fato tem uma passagem, tem seu lugar reservado para sua viagem no trem da história.
Como todos bem sabem, para manter o trem no trilho da história é necessária uma meticulosa assistência disciplinar, um apurado e detalhado controle. Privado desta assistência controladora, a imersão na realidade vital fica propensa quase totalmente a transgressões, travessuras irresponsáveis, palhaçadas amorfas. Ao não exercermos vigilância nesse trem da história engatilhada por vagões factuais, ele – o trem - descarrila, vira turbulência, cria suas travessuras.
Os acontecimentos, ao contrário, são múltiplos fragmentos que chegam atrasados na estação desse trem factual, não foram encapsulados e perderam o trem da história. Os acontecimentos quando chegam na estação já ocorreu a distribuição das passagens não podem ser explicados como fatos ou apenas pela mensuração dos fatos, por isso, não possuem nenhum lugar no trem da história.
Os acontecimentos também não são contrabandos que encontram lugares clandestinos nos vagões. Na verdade, eles não cabem no trem, estão condenados a pairar errantemente sem lar, suspensos no ar. O tempo regular, cronológico é estreito demais para abrigá-los.
Podemos também nos perguntar: mas os acontecimentos se dão ou não no tempo? Como, se instalar no acontecimento? Para compreendermos esses dilemas, é necessário aderirmos a uma multiplicidade de planos, como se mergulhássemos na própria atualização de tudo que acontece, como somos muito limitados é como se mergulhássemos no vapor, no que escapa ao corpóreo, uma simulação imaginante. O acontecimento suga os fatos, é mais que a soma deles, possui uma eterna juventude que não se situa no tempo cronológico, ou seja, é imemorial, não é localizável no tempo factualizado.
O acontecimento é como um vapor que se eleva. Mergulhar nele é como dar um salto numa piscina de vapor. Eles não são como um fato que é um estado ou capturas de registros sobre as coisas; é incorporal, da ordem do imemorial. No plano do acontecimento, não é possível mapearmos sua localização específica, pois ele não é localizável, não é apenas os fatos que aconteceram no fatídico dia 11 de setembro nos Estados Unidos da América.
Urge uma inovadora resignificação do entendimento do acontecimento, para que possamos nos tornar efetivamente contemporâneos no presente.
Comecemos então por verificar a partir do impacto com cinco fios principais que estão a compor a emergência de uma nova matriz operacional das sociedades multiculturais e simbióticas - (RIFKIN, 1999) . Juntos, eles (esses fios) estão a permitir tecermos uma estruturação complexa capaz de emergir – até mesmo – um novo tecido para uma nova era civilizatória.
Vejamos:
1
. A desmaterialização da vida. A sociedade industrial concebia e concebe o corpo imerso no conceito da vida como uma energia indissociada desse mesmo corpo, ou seja, vida e matéria são uma unidade indissolúvel. Para a sociedade industrial foi o que envolveu e o que envolve a capacidade deste mesmo corpo de produzir trabalho. O corpo, neste sentido, também a vida, deveriam submetererem-se a um programa de disciplinamento capaz de revelar suas capacidades energéticas de ordem neuromuscular e de exercícios mentais disciplinados e objetivos ligados, sobretudo, à memória, tratando a informação, também como insumo material (estoque de dados a serem analisados) para a sua gestão organizacional. Hoje, entretanto, com a sociedade imersa na aceleração tecnológica e no domínio do técno-poder, as ações do corpo são ampliadas tanto pelas conquistas realizadas pelo domínio da informação digital como pelo domínio da informação genética. Do ponto de vista da informação digital, isto se dá perante a integração da vida a recursos de múltiplas máquinas cognitivas, ou seja, diferentes tipos de artefatos físicos e softwares numéricos que nos permitem, como telenômades, comunicarmo-nos acessarmos e produzirmos conhecimentos a distância na velocidade da luz. Assim, ampliamos enormemente nossas capacidade de memória física e gráfica, bem como, múltiplos processos interativos de suporte à produção de conhecimentos. Do ponto de vista da informação genética, isto se dá perante a capacidade que adquirimos, pela primeira vez na história da humanidade, de manipularmos um volumoso e poderoso estoque bruto de dados genéticos independentes da matéria viva (infogenes), tornando possível, posteriormente, isolarmos, identificarmos e recombinarmos esse estoque bruto de informações. Essas conquistas estão estabelecendo, cada vez mais, uma simbiose da vida e da mente humana com o ambiente inorgânico dominada, atualmente, por lascas de silício. Isso nos leva a uma profunda ruptura sobre o entendimento da vida e da morte, da sua criação e da sua reprodução. A vida desmaterializa-se; ela é manipulada fora da matéria e estocada fora do corpo material. O corpo passa a ser visto como suporte material da vida e não mais como parte intrínseca dela. Vivemos a ruptura com o paradigma societal que emergiu a partir da conquista ocidental moderna, sobretudo, a sociedade industrial e os sustentáculos de seus fios operacionais.
1. Desmaterialização da economia e a emergência do biopoder. A vida desmaterializada passou a ter donos. A vida pela primeira vez na história humana é um instrumento patententeável. Proliferam-se práticas de patentes de genes, de linhas de células, de tecidos geneticamente desenvolvidos, de órgãos e organismos, bem como, de processos e metodologias utilizadas para alterá-los. Isso implica na criação de um novo e produtivo insumo para o mercado: a vida.
Esse processo iniciou-se em 1971, quando Ananda Chakrabarty, um microbiologista indiano, na época um funcionário da General Eletric (G.E.), solicitou concessão de patente, junto ao PTO (U.S. Patents and Trademark Office - Instituto Nacional da Propriedade Industrial dos Estados Unidos), para um microrganismo geneticamente construído, projetado para devorar derramamentos de óleo nos oceanos. O PTO recusou a concessão, alegando que seres vivos não são patententeáveis, de acordo com a Lei de Patentes norte-americana. Chakrabarty e a General Eletric apelaram a decisão ao Court of Customs and Patent Appeals (Tribunal de Tributos Alfandegários e Patentes), onde, para surpresa de muitos observadores, ganharam por uma estrita diferença de três a dois. Na opinião da maioria desse Tribunal, o fato de microrganismos serem seres vivos não era algo legalmente significativo, eles defendiam que os microrganismos patenteados eram mais semelhantes a composições químicas inanimadas do que a cavalos, abelhas, framboesas ou rosas, ou seja, consideravam o microrganismo mais próximo de um produto químico do que um cavalo. Esse processo ainda vaguearia pela Suprema Corte Norte-americana onde recurso impetrado pelo PTO sobre a decisão do Tribunal tocou no âmago da questão, ou seja, do valor intrínseco da vida e do seu significado. Os defensores desse recurso defendiam que a vida em qualquer nível deveria ser entendida como vida e não como um produto. Entretanto, em 1980, pela primeira vez da história humana, por uma estrita margem de cinco votos a favor para quatro contras, os juízes da Suprema Corte Norte-americana decidiram a favor de Chakrabarty, concedendo patente à primeira forma de vida geneticamente construída. Falando em nome da maioria, o juiz William Brennan, o juiz-presidente, argumentou que a decisão teve por fundamento, não a distinção entre seres vivos e objetos inanimados, que para eles não era relevante, mas, a consideração se os microrganismos de Chakrabarty eram ou não uma invenção humana. Essa decisão deu embasamento legal à marcha que se acelera cada vez mais em ritmos alucinantes para a privatização e comercialização do domínio da eugenia frente ao ecossistema e as derivações de seus sistemas sociais. A comunidade financeira, acostumada a tirar proveito da exploração da matéria manufaturando-a industrialmente, imediatamente reagiu ao que podemos considerar o batismo legal da biotecnologia, transferindo e migrando enormes volumes de recursos financeiros para a aquisição de nanicas experiências genéticas escondidas em porões. Os analistas de Wall Street chegaram a comparar o nascimento da biotecnologia como um evento tão importante para a humanidade como foi a descoberta do fogo (RIFKIN, 1999) .
Assim, por mais de uma década, a luta pelo controle dos recursos naturais da biodiversidade tem dominado a pauta das reuniões da United Nations Foot and Agriculture Organization (Organização de Alimentos e Agricultura das Nações Unidas). A agenda de debates tem girado principalmente sobre a possibilidade de os países industrializados do hemisfério norte acessar e manipular os biorrecursos naturais localizados em países ou nações de baixa capacidade de domínios tecnológicos, sobretudo e, principalmente, os localizados no hemisfério sul, onde ainda existem escassas populações indígenas, mas com ricas características genéticas, bem como, uma qualitativa biodiversidade, que ainda insiste em sobreviver ao genocídio desenvolvimentista da industrialização, as quais podem ser encontradas, principalmente, nas ainda densas formações florestais como a Floresta Amazônia. É o início da maratona global visando demarcar e patentear o patrimônio genético do planeta, ou seja, da odisséia para delimitar e privatizar, para fins de mercado, todos os grandes ecossistemas que compõem a biosfera terrestre.
Isso implica, sobretudo, aos cientistas, tecnólogos e às empresas biotecnológicas a localização, manipulação e exploração de recursos genéticos para fins econômicos. Apenas para citarmos algumas, basta lembrarmos das pioneiras e muito conhecidas empresas de biotecnologia como as: Amgem, Organogenesis, Genzyme, Calgene, Mycogen e Myriad. Só nos Estados Unidos já existem 1,3 mil empresas de biotecnologias, com um total de 13 bilhões dólares de rendimentos anuais e 100 mil empregados. Para termos uma idéia, já existem no início deste século dezenas de megaempresas que possuem a biotécnica como sua atividade fim, entre elas as conhecidas: Du Pont, Novartis, Upjohn, Monsanto, Eli Lilly Rohom e Hass, Dow Chemical etc.
A mundialização do comércio, a flexibilização das fronteiras para a circulação de informações, conhecimentos e integração tecnológica em tempo real dos mercados tornaram-se possíveis, gerando o nascimento de uma nova gênese vital. A biosfera natural da Terra passa a conviver com uma outra gênese vital, biotransformada, concebida em laboratórios e artificialmente desenhada para substituir o esquema revolucionário da vida natural. Uma economia global de ciência da vida começa a dominar, sem precedentes, os vastos recursos biológicos do planeta. Áreas de ciências da vida que vão da agricultura à medicina estão se consolidando sob a proteção de gigantescas empresas da “vida” nos mercados biotecnológicos emergentes. É interessante verificar que a defesa de populações nativas, florestas tropicais como a Amazônia, por exemplo, são defendidas tanto pelas empresas biotecnológicas como por ecologistas. Entretanto, enquanto as primeiras defendem taticamente sua preservação até a finalização do seu mapeamento genético visando identificar e isolar as ricas e específicas características genéticas para realizarem futuras manipulações, simbioses e, até mesmo, como estoque informacional de reserva defensiva diante das experimentações genéticas que já estão sendo realizadas; enfim, os biotecnólogos defendem, na verdade, a captura e o encapsulamento do estoque informativo genético. Os ecologistas, diferentemente, defendem a bioesfera natural, os nativos indígenas com suas culturas e conhecimentos específicos, as formações florestais e a preservasão física da biodiversidade natural sobrevivente do genocídio industrial. Os megaempreendimentos e os empreendedores da bioeconomia, após completarem os levantamentos bioinformacionais, após conquistarem seus banco de dados genéticos, muito certamente, não se interessarão mais pelo discurso preservacionista, bem ao contrário, a destruição da camada bruta da natureza vital poderá significar, até mesmo, um poderoso domínio privativo dos biorrecursoss com grande potencial inventivo sobre os que poderão vir a necessitar desses biorrecursos no futuro.
3
. A emergência da civilização da eugenia . O mapeamento de aproximadamente 37 mil genes que compõem o genoma humano implica em novas descobertas sobre seleção genéticas, incluindo, como vimos, a intensificação de criação de chips de DNA e simbioses entre sistemas orgânicos e inorgânicos. Viveremos ainda mais a aceleração das experiências como a da terapia genética, a engenharia de ovos humanos, de espermas e de células embrionárias. O projeto genoma prepara o terreno para a explosão da alteração da espécie humana e o nascimento de uma civilização eugênica. Enfrentamento de distúrbios genéticos, personalização de bebês, melhoramento genético da herança hereditária visando o aperfeiçoamento do nosso código genético, são algumas das inúmeras variáveis que compõem o cardápio da emergente civilização eugênica, sobretudo, a preocupante possibilidade da criação de uma aristocracia geneticamente melhorada diante de um massivo conjunto de seres humanos geneticamente precarizados.
3. A emergência da bioinformática: computando o DNA. Trata-se da união das ciências da informação com as ciências da vida: o computador e o gene. Não se trata apenas de uma mescla de saberes complexos, mas, sobretudo, da migração do predomínio da informação digital para a informação genética. Assim, não apenas o suporte das experimentações genéticas que são agilizados, mas os próprios artefatos digitais começam a sofrer radicais e profundas alterações (como já demonstram as experiências de computadores utilizando chips vivos ou de computadores com arquiteturas baseadas em DNA e com processamento de algoritmos quânticos). É importante lembrarmos que, graças ao surgimento da informação digital, foi possível a descoberta da manipulação informacional da vida, ou seja, a informação genética. Entretanto, o predomínio da informação digital está se transferindo para a informação genética. Se, após a segunda guerra mundial a aceleração tecnológica foi movida pelo predomínio da informação digital, ou seja, na relação entre informação digital e informação genética, o predomínio foi quase absoluto da informação digital. Nos próximos anos, esse predomínio será invertido. O computador e a informática fornecem para a emergente economia biotecnológica a comunicação e a organização para administrar a informação genética. Isto implica que artefatos digitais e softwares facilitam: decifrar, catalogar e trocar o estoque e o capital genético que é e será utilizado pela bioeconomia. As tecnologias de informática e as tecnologias genéticas estão se fundindo (sob o predomínio das segundas) numa nova e poderosa realidade tecnológica.
5. A emergência da nova evolução simbiótica. Estamos a iniciar uma nova evolução neodarwinista, onde emerge uma espécie simbiótica entre econatureza e redes biotecnológicas. Segundo um outro fascinante cientista chamado Rosnai em seu livro: ”O Homem Simbiótico” uma nova espécie pós-biológica está emergindo no planeta. Ela é produto deste novo ecossistema composto da simbiose entre vida e artefatos sensório-cognitivos integrados a complexas redes de processos orgânicos e não orgânicos, sejam eles de máquinas lógicas e redes cada vez mais sofisticadas; sejam de complexos ambientes orgânicos e inorgânicos. Esta simbiose esta proporcionando a emergência de um novo tipo de humanidade; ela está dando início ao lançamento de novas bases para se repensar a evolução biológica e as teorias socias. Estamos a presenciar o surgimento de uma nova natureza radicalmente revista, uma perspectiva simbiótica que será produzida de um novo ambiente holístico entre mente e matéria, de sistemas de autopoiese orgânica com suportes artificiais e inorgânicos auto-organizativos, constituindo uma condição pós-biológica imbricada numa cultura de complexidade criativa. A teoria darwinista provou ser uma companhia muito compatível com a era industrial. A emergência da nova bioeconomia, com seus interesses desmaterializados, implicará na revisão não só das teorias da evolução natural como das teorias sociais frente as complexas questões colocadas pela emergência da simbiogênese são profundas e levam-nos a um confrontro com nossos valores mais íntimos que tratam, antes de mais nada, de ponderarmos sobre a questão máxima da finalidade e do sentido de nossa existência.