quinta-feira, 6 de abril de 2023

O CÉREBRO-GAME: o império neuronal da informação como um jogo de sintetização binária da realidade

 Gilson Lima [1]

 



Cada vez mais a meninada é inundada por jogos de telas. Alguns deles se tornarão jogadores crônicos que jogam entre 7-9 horas por dia e alguns deles desenvolverão uma espécie de cérebro-games uma dinâmica que consolida a ativação intensa dos processos de recompensa ao mesmo tempo em que desliga simetricamente ou deixa menos ativo os processos interativos de inteligência interpessoal - mesmo quando os usuários não estão jogando videogames - seus lobos frontais que são os responsáveis pela dinâmica das decisões complexas e pelo planejamento do futuro, estão monodirecionados... e hiperatrofiados de incidência simbiótica.

 

Os jogadores de tela - como em todas as atividades de alta concentração - tendem a se envolver em seu jogo, esquecendo ou ignorando o que mais está acontecendo ao seu redor. O aumento da excitação física e psicológica do jogador frequentemente deixa-os se sentirem tensos e irritáveis. Já foi descoberto que jogar vídeo game pode aumentar a pressão arterial e frequência cardíaca e agita o sistema nervoso autônomo, acionando mensageiros químicos relacionados ao estresse, como a adrenalina, geralmente liberados pelas glândulas supra-renais em resposta ao perigo. Assim, os jogadores crônicos podem ter consequências negativas para o corpo, e consequentemente, para o cérebro e o comportamento em geral.

Se um leão entrasse em nossa casa pela porta dos fundos LOGO QUE AVISTAMOS O PERIGO, em uma peça onde estamos, uma cópia rudimentar a preto e branco da imagem do leão na nossa retina chegaria em menos de 200 milissegundos à amígdala, que responde com a elevação da tensão arterial, da pulsação e da tensão muscular, muito antes que a zona da cor do nosso córtex cerebral tenha podido elaborar uma imagem nítida (em tom de amarelo-bege, castanho). Entretanto já teríamos corrido para a porta certa! (Quem não dominar rapidamente este mapa de imput-output não ficará para contar a história às gerações seguintes!).

A palavra estresse, na verdade, caracteriza um mecanismo fisiológico do organismo sem o qual nós, nem os outros animais, teríamos sobrevivido. Se nosso antepassado das cavernas não reagisse imediatamente, ao se deparar com uma fera faminta, não teria deixado descendentes. Nós existimos porque nossos ancestrais se estressavam, isto é, liberavam uma série de mediadores químicos (o mais popular é a adrenalina), que provocavam reações fisiológicas para que, diante do perigo, enfrentassem a fera ou fugissem.

 

É pela ação de rápidos processos bioquímicos que, num momento de pavor, os pelos ficam eriçados (diante do cão ameaçador, o gato fica com os pelos em pé para dar impressão de que é maior), o batimento cardíaco e a pressão arterial aumenta, o sangue é desviado do aparelho digestivo e da pele, por exemplo, para os músculos que precisam estar fortalecidos para o combate ou para a fuga. Vencido o desafio, vem a fase do pós-estresse. Quem já passou por um susto grande sabe que depois as pernas ficam trêmulas e, às vezes, andar é impraticável.

Estresse é um termo que se vulgarizou nos últimos tempos.

O estresse é uma dinâmica positiva de nossa evolução. Graças a ele conseguimos sobreviver diante dos predadores e ações que colocam em risco nossas vidas. No entanto, o estresse do mundo atual é muito diferente do que existia no passado.

Tudo parece rápido e automático, somos mesmos e muito produto do inconsciente. É importante que saibamos que mesmo os processos bioquímicos rápidos das atividades estressantes - ainda sim - são muito lentos perto da velocidade da energia elétrica que alimenta as interações das telas.

Vejamos um exemplo: O neurônio (células da informação cerebral) opera na escala de tempo dos milissegundos, isto é, geralmente são necessários alguns milissegundos para que um neurônio dispare para que um sinal nervoso viaje ao longo de seu axônio e para que o sistema se reacomode a fim de disparar novamente. Por outro lado, um transistor das máquinas e telas cibernéticas comum como o que está presente em seu computador pessoal pode ser ligado e desligado em um bilionésimo de segundo (isto é, um milhão de vezes mais rápido do que os neurônios), e os modelos experimentais podem ser ligados e desligados mil vezes mais rápido do que isso.

Essa questão de milissegundos e bilionésimos de segundo pode não o impressionar muito e pode ser algo meramente trivial. Imagine o seguinte para entender a diferença de uma ação ser um milhão de vezes mais rápida do que outra. Pense que você realizaria uma dada tarefa em um dia, e uma outra pessoa precisasse de um milhão de vezes mais dias para realizá-la. Você se tivesse começado a tarefa há 24 horas estaria terminando exatamente agora. Para que a pessoa mais lenta estivesse terminando a tarefa no mesmo tempo teria de ter começado a tarefa por volta de 780 a.C. Essa é a diferença de velocidade entre um transistor comum e um neurônio.

 

IMIGRANTES DIGITAIS

 

Enquanto Nativos Digitais permanecem conectados no ciberespaço e em vídeo games, os Imigrantes Digitais gastam um tempo consideravelmente menor expostos a este tipo de nova tecnologia nova. Eles cresceram em uma época menos frenética, e a revolução digital atual ocorreu após seus anos de formação. Muitas crianças nascidas durante uma explosão populacional lembram que tinham apenas uma televisão em casa, e talvez nem mesmo uma televisão colorida. Algumas dessas crianças acham fácil de adaptar a nova tecnologia, eles conseguem fazer compras online, comunicar-se por e-mail e usar telefones celulares, mas todas essas coisas eles aprenderam com os adultos, depois que seu cérebro estava mais formado.

Embora estes imigrantes estejam se ajustando a era digital, a sua abordagem difere muito da dos nativos digitais. O típico cérebro de um Imigrante foi treinado de maneiras completamente diferentes de socialização e de aprendizagem e realizam uma tarefa de cada vez. Imigrantes aprendem mais metodicamente e tendem a executar tarefas mais precisamente. Eles estão sendo forçados a prender uma nova linguagem digital – um desafio diferente do que os imigrantes que chegam de outros países e não falam a língua nativa enfrentam. Aprender qualquer língua na idade adulta requer a utilização de partes diferentes do cérebro do que aquelas que são utilizadas para aprender uma língua logo cedo.
Apesar de lentos somos portadores de uma inteligência lenta, mas muito complexa.

Sabemos que o cérebro pode trabalhar muito rápido em algumas tarefas. Aqui está uma demonstração: levante sua cabeça e olhe ao redor, depois a incline. Ao fazer isso, a imagem visual que você tem do mundo permanece vertical - ela não se inclina como sua cabeça.

Esta operação simples é tão "automática" que é fácil perder de vista o fato de que ela constitui um desafio computacional enorme - apenas muito recentemente as máquinas mais modernas têm sido capazes de executá-la em tempo real. Isso porque a maneira tradicional de um computador analisar uma imagem é bem diferente da maneira como o cérebro humano faz.

O neurônio pode ser visto como uma chave interruptora que pode como um transistor está ligado ou desligado. Entretanto, essa analogia não resiste a um exame mais rigoroso. Um aspecto mais importante da natureza química do cérebro é que ele está ligado ao segundo principal modo de comunicação do corpo - o sistema endócrino. O cérebro, na verdade, está em um banho sempre em mudança de substâncias químicas, aquelas criadas no interior do próprio cérebro e as produzidas em outras partes do corpo.

Então imagine meus caros o que faz uma intensa atividade de interação em telas eletrônicas. Somos lentos e incapazes de tomar decisões profundas além da rápida dinâmica entre clicar e não clicar. Isso é muito pouco para uma inteligência capacidade em produzir hermenêuticas de profundidade.

 Atenção: nativos digitais em formação!

Voltemos aos jovens jogadores de telas. Os videogames se tornaram tão populares que estão se tornando um esporte de espectadores em algumas partes do mundo. Atletas cibernéticos competem diante de multidões de cem mil ou mais na Coréia do Sul e em outros lugares em torneios de videogame.

Em estudos na Nihon University de Tóquio, Professor Akio Mori encontrou evidências de que os videogames parecem suprimir a atividade do lobo frontal. Seu grupo mostrou que os adolescentes que passam mais tempo a jogando videogames, menos tempo utilizam áreas-chave das partes dianteiras de seus cérebros. Temos então uma dinâmica automática que essencialmente desliga os lobos frontais, mesmo quando as crianças não estão jogando videogames.

Essa descoberta tem uma implicação vital no processo de aprendizagem e de vida da inteligência humana. Tudo passa a ser tempo real e todo tipo de interação (humana e no ecossistema em geral) se converte – para esses usuários autômatos - em disputas e competições.

O professor Ryuta Kawashima e seus colegas na Universidade Tohoku, no Japão, descobriram que quando as crianças jogam videogames, seus cérebros não usam circuitos do lobo frontal, mas sim usam uma região do cérebro que controla a visão limitada e movimento. Isto está em nítido contraste com o que eles encontraram, quando as crianças realizaram simples exercícios de matemática mundanos. Quando os voluntários do estudo fizeram cálculos de adição com um dígito, os seus cérebros recrutaram os neurônios de uma área do cérebro muito mais ampla, envolvendo os lobos frontais, regiões que controlam o impulso de aprendizagem de controle, memória, emoção e até mesmo controle dos impulsos.

Nativos digitais constituem o principal mercado para videogames: mais de 90 por cento de todas as crianças e adolescentes do mundo jogam estes jogos. Segundo estimativas recentes o estereótipo de um ciber-geek de 15 anos jogando por horas em seu quarto persistir, a média de idade dos jogadores subiu para 30 anos. Os jogadores mais jovens, no entanto, são aqueles cujos cérebros são mais sensíveis ao jogo extenso e, em média, essas crianças e adolescentes estão jogando meia hora ou mais a cada dia.

Pesquisas anteriores já haviam mostrado que extensos videogames tornam as crianças mais agressivas e as insensibilizam frente a atos de violência que veem em outros lugares. No entanto, investigações recentes sugerem que a intensidade gráfica e de imagens violentas de um jogo e não só a quantidade de conteúdo violento, podem ter ainda um efeito maior sobre o funcionamento do cérebro e o comportamento agressivo.

Em minhas pesquisas com pessoas com lesões neuronais severas utilizo muito o computador e telas, mas sempre indicando limites diários de uso. O potencial das tecnologias digitais para reabilitação corporal e mental é imensa.

A indústria dos videogames – como a mídia em geral- ainda de modo muito lento estão começando a reverter seus dispositivos de estímulos à violência tentam colocar menos ênfase na violência e destruição e se concentram mais em metas e estratégias complexas.

Aprendemos por espelhamentos e estes ambientes virtuais intrincados também geram um impacto significativo sobre o cérebro de um jovem na região lobo-frontal que requer um maior desenvolvimento durante a adolescência para que o pensamento abstrato e habilidades de planejamento se formem. Quando é que as autoridades governamentais e educacionais vão entender isso.

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Gilson Lima. [1] Cientista aposentado depois de décadas de atuação independente sobre múltiplos campos da vida e da tecnologia na complexidade, criou a teoria não natural da simbiogênese cooperativa na evolução cérebro, máquinas, corpos e sociedade. Foi por vários anos pesquisador acadêmico e industrial coordenando bancadas de pesquisas de ciência de ponta, tecnologia e protocolos de neurorreabilitação em diferentes cidades e diferentes países principalmente, europeus. 

Tem formação original humanística e foi voltando seus estudos e pesquisas desde o início dos anos 90 para a abordagem da complexidade nas metodologias informacionais, depois na nanotecnologia e nos últimos 15 anos de carreira focou na neuroaprendizagem e reabilitação envolvendo a simbiogênese e interfaces colaborativas entre cérebro, corpos e displays.

Inventor de várias tecnologias, softwares e protocolos clínicos.

Escritor. Muitas de suas atividades e textos estão disponíveis no blog: http://glolima.blogspot.com/

Atualmente retomou sua atividade como músico compositor, cantor que atuava na adolescência produzindo atualmente suas canções e coordenando a Banda Seu Kowalsky e os Nômades de Pedra. Suas músicas e shows vídeos podem ser acessadas no canal do youtube. https://www.youtube.com/c/seukowalskyeosnomadesdepedra

Último Livro: 

https://www.google.com.br/books/edition/Intelig%C3%AAncia_inata_o_caminho_da_intelig/RwZhEAAAQBAJ?hl=pt-BR&gbpv=1&printsec=frontcover

https://www.amazon.com.br/Intelig%C3%AAncia-inata-intelig%C3%AAncia-artificial-simbiog%C3%AAnese-ebook/dp/B09TC9YJF5

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Simbiogênese: o conceito

 

Gilson Lima

Onde existe luz, existe sombra.

(Buda Sidarta Gautama).

 

 Esse texto escrito no final da década de 90 e publicado no início do anos 2.000. Muitas das questões e diálogos aqui tratados, deixaram de ser hipóteses e já avancei muito na compreensão mais profunda do tema.

De qualquer, decidi manter original que ainda muito pouco conhecido para a maioria das pessoas.

  

 


Nossa limitada percepção sensorial do mundo envolve-nos com um resultado incompleto e distorcido. O pensamento complexo tem o poder de expandir essa percepção, permitindo explorarmos mundos invisíveis e fascinantes, sejam eles formados por átomos, mediações societárias, novos inventos, estrelas ou galáxias distantes. Sem que expandíssemos nossos horizontes intelectuais, não teríamos alcançado avanços médicos e tecnológicos e tampouco teríamos produzido uma civilização tecnologicamente inteligente. Como imaginar um mundo sem penicilina, sem telefone, sem televisão ou sem computadores e satélites?

Feliz ou infelizmente, não existem, apenas dois lados em qualquer realidade (isso vale para o conhecimento complexo). Inclusive, Buda Sidarta Gautama faz-nos lembrar que: onde existe luz, existe sombra. O conhecimento complexo torna-se, cada vez mais, sinônimo de poder permitindo salvarem-se vidas ou eliminá-las aos bilhões. Ainda que o conhecimento não represente a nossa sabedoria, com certeza, a ignorância nunca será uma opção desejável. Assim, enfrentando o bom senso, quem sabe, poderemos responder ao que Alfred North Whitehead indagou em 1925: “Qual será o absurdo de hoje, que será a verdade de amanhã?”.

Um conhecido professor de cosmologia na Universidade de Harvard, EUA, descrevendo sua hipótese de evolução cósmica, escreveu:

 

"...Na primeira fase do Universo, a radiação dominava a matéria. Durante a Era da Radiação, nada haveria a observar além da luz intensa. As imensas quantidades de energia radiante produziram nesta ocasião uma bola de fogo espetacularmente brilhante, em cujo interior não se podiam formar átomos nem moléculas. Ao expandir-se, o Universo esfriou e rarefez. Originando-se da radiação, a matéria aos poucos coagulou em átomos. Foi na verdade um evento de incomparável significado o que ocorreu quando a matéria começou a aglutinar-se, logo depois do nascimento do Universo num turbilhão ofuscante. A emergência da matéria como constituinte dominante foi a primeira grande transição na história do Universo. Foi uma transformação fundamental, uma parte absolutamente integrante do grande quadro.

Ao inaugurar-se a Era da Matéria, esta passou a dominar sobre a radiação. E desde então continuou dominando, formando sucessivamente as galáxias, as estrelas, os planetas e a vida. De todos os agregados de matéria conhecidos no Universo, as formas vivas são certamente as mais fascinantes, especialmente as que gozam as condições de membros de civilizações tecnologicamente avançadas. Formas de vida tecnologicamente inteligentes diferem fundamentalmente das formas inferiores de vida e de outros blocos de matéria disseminados no Universo, não apenas por serem capazes de manipular a matéria como por poderem alterar o curso da evolução.

A emergência de vida tecnologicamente inteligente na Terra, como possivelmente em outros planetas, anuncia uma era inteiramente nova – a Era da Vida. Por quê? Porque a tecnologia permite que a vida passe a controlar a matéria, rivalizando a transição precedente, quando a matéria se divorciou da radiação há mais de dez bilhões de anos. Agora a matéria está perdendo o seu império absoluto, ainda que apenas nos sítios isolados onde residem seres vivos tecnologicamente inteligentes.

A transição da Era da Matéria para a Era da Vida não será instantânea. Assim como levou muito tempo para que a matéria vencesse a radiação no Universo primitivo, certamente serão necessárias longas durações para que a vida supere a matéria. Na verdade é possível que a vida nunca venha a dominar completamente, seja porque as civilizações nunca cheguem a ganhar controle dos recursos materiais em escala efetivamente galáctica, ou porque a longevidade das civilizações tecnológicas deve ser em toda parte breve.

Embora uma Era da Vida talvez não venha a maturar completamente, uma coisa parece certa: nós seres humanos do planeta Terra, como outras possíveis formas de vida tecnológica alhures no Universo, estamos a pique de experimentar o lento desligamento entre a vida e a matéria. É uma transição de significado astronômico, a aurora de uma fase (cósmica) inteiramente nova".[2]

 

Hoje, sabemos mais precisamente quando a vida apareceu na superfície da Terra, mas como surgiu essa pequena película complexa em nosso planeta, ainda é um evento coberto de muitos mistérios. É do conhecimento da ciência que a vida existente hoje, tenha começado há cerca de 3,5 bilhões de anos. No entanto já foram encontrados estruturas microcelulares, com tamanhos e formas de bactérias modernas em rochas sedimentares com 3,8 bilhões de anos de idade. Então, parece razoável supor que a vida já existia nessa época.  Na escala geológica, esta é uma faixa bem estreita – de 200 a 500 milhões de anos, no máximo.

Tomemos, pois, como referência que a vida tenha começa há 3,5 bilhões de anos, com seres unicelulares que se assemelham a bactérias e algas, e chega à arrebatadora diversidade de formas vivas atuais, incluindo nós. A Terra é apenas um bilhão de anos, mais velha do que os primeiros registros de vida já descobertos. Se compararmos a idade da Terra à de um homem de sessenta anos, veremos que a vida surgiu rapidamente em nosso planeta. O tempo que foi necessário para que a vida aparecesse da Terra pode ser comparado com o tempo que um ser humano demora para atingir hoje a adolescência. [3]

Podemos resumir, a pelo menos quatro posições da ciência, que tentam explicar a origem da vida em nosso planeta. A primeira e a mais antiga, conhecida pelo nome de criacionismo reúne aqueles que acreditam que o aparecimento dos seres vivos foi um ato divino da criação, como afirma o livro do Gênesis, onde sustentam que, tanto os seres vivos quanto os fósseis, foram criados por Deus há alguns milhares de anos. Muitos dos criacionistas, mesmo defendendo uma participação divina no surgimento da vida, aceitam uma interpretação evolucionista ortodoxa para a origem dos fósseis. Eles defendem que depois que as primeiras formas de vida terem sido criadas por Deus, a evolução seguiu mais ou menos o curso descrito por Darwin em A Origem das Espécies (1858). A aceitação da abordagem evolucionista sistematizada por Darwin, tanto dentro como fora do mundo da ciência, não foi tranqüila. Ao contrário, foi seguida de muitos ataques e, por conseguinte, muito lenta, irregular e de nenhum modo completa. Muitas pessoas de orientação religiosa, tanto leiga como clérigos, não têm nenhum problema em aceitar as idéias básicas da evolução e mesmo a da seleção natural – desde que possam continuar acreditando que Deus está lá, em algum lugar. Esta foi a posição assumida inicialmente por Darwin.

Os próprios sentimentos de Darwin sobre a origem da vida não são claros. Na primeira edição da obra A Origem das espécies, ele não faz menção sobre um “Criador”. No final do texto, ele refere-se a uma: “concepção de vida com diversos poderes, tendo sido inicialmente infundida em algumas poucas formas, ou em uma única”.[4] Na segunda edição, publicada logo após à primeira, ele modifica essa passagem para: “tendo sido inicialmente infundida pelo Criador em algumas poucas formas, ou em uma única”(id. ib.). Para alguns biógrafos de Darwin, essa mudança aconteceu numa tentativa de amenizar o desconforto em que se encontrava diante de seus colegas e amigos, inclusive de sua mulher.[5]

A segunda posição sobre o surgimento da vida encontra-se no Vitalismo. Foi por volta de 1860, que Pasteur mostrou que era possível impedir a putrefação de alimentos e até mesmo da carne humana, através da eliminação dos germes ou de um simples aquecimento (daí o termo “pasteurização”, usado ainda hoje, para designar o uso de calor na preservação de alimentos perecíveis). Ao defender seus experimentos sobre a esterilização, Pasteur chegou a afirmar que apenas os seres vivos eram capazes de gerar outros seres vivos. Para ele, a vida só se originava a partir de vida preexistente, assim como uma chama que se pode dividir e espalhar, mas, uma vez extinta, não se pode reavivar. Trata-se do que foi designado como Doutrina Vitalista.

A Doutrina do Vitalismo dava a idéia de que a matéria viva é intrinsecamente diferente da matéria inanimada. Porém, em meados do século XIX foi praticamente abandonada. Simbolicamente, a Doutrina terminou em 1828, quando o químico alemão Friedrich Wöhler conseguiu obter uréia, aquecendo um composto inorgânico chamado cianato de amônio. A uréia é uma substância inorgânica, presente na urina humana, sendo uma das principais formas que os mamíferos dispõem, para eliminar o excesso de nitrogênio.[6]

Assim, a química dos seres vivos é há muito conhecida pelos cientistas, e os leva a compreender que os seres vivos diferem dos seres inanimados, pela complexidade das substâncias químicas que contêm.

Entretanto, hoje vivemos na Era dos Mamíferos, em um planeta, onde existe uma extraordinária diversidade deles na Terra. Nossa espécie existe neste lar planetário, há mais de 100 mil anos, mas faz apenas cinco mil anos, que dominamos a agricultura e construímos cidades.[7] O que estávamos fazendo durante os outros 95 mil anos?

A terceira posição tenta explicar a origem da vida. Aqui, a essa posição chamaremos de explicação exógena. Trata-se da idéia de que a vida tem origem nas biomoléculas extraterrestres. No âmbito da ciência, muitos cientistas divergem quanto à hipótese de que, na Terra primitiva, existissem as condições necessárias (matéria-prima e/ou fontes de energia) para operar as reações químicas para a gênese da vida através da natureza inanimada. Essas reações só seriam eficientes se a atmosfera tivesse uma quantidade significativa de hidrogênio molecular. Vários geo-químicos acham que a atmosfera primitiva não era assim. Ela seria composta de gás carbônico, nitrogênio e água. Não poderia ser rica em metano e amônia que, diferentemente do gás carbônico, são rapidamente destruídos pela radiação solar. Nesse ambiente, os compostos do nitrogênio tenderiam a ser inorgânicos.

Muitos acreditam também, que a atmosfera da Terra primitiva era muito diferente da atual. Na linguagem dos químicos, era uma atmosfera redutora, praticamente desprovida do oxigênio livre que hoje sustenta a vida de todos os animais, incluindo o homem. Todo o oxigênio disponível estava combinado com o hidrogênio (para formar água, H20) e com o carbono (para formar dióxido de carbono, CO2, e monóxido de carbono, CO). A atmosfera também deveria ser rica em um composto de carbono e hidrogênio chamado metano (CH4). O nitrogênio, hoje, o principal componente da atmosfera (75% em peso), já estava presente naquela época, na forma de amônia (NH3) na atmosfera de quatro bilhões de anos atrás. Esta é, mais ou menos, a atual composição da atmosfera de Júpiter.[8] É difícil sabermos como era a Terra nos primeiros bilhões de anos, pois as marcas geológicas foram apagadas por fenômenos violentos de vulcanismo e colisão com meteoritos, depois por fenômenos erosivos devidos ao vento, água e gelos. [9]

Segundo a explicação exógena, as biomoléculas teriam sido produzidas no meio interestelar e trazidas para a Terra por grãos destas poeiras ou por cometas ou por matérias meteóricas associadas aos meteoritos condríticos carbonáceos. O químico sueco Svante August Arrehnius (1859-1927) foi mais longe ainda, propondo a sua Teoria da Panspermia. A vida teria origem extraterrestre e teria sido trazida para a Terra por meio de esporos microbianos propelidos através do meio interestelar pela pressão da radiação (empurrados pela luz das estrelas). [10]

O vasto espaço entre as estrelas de uma galáxia não é vazio, contém gás e poeira. Uma das entidades do meio interestelar são as nuvens moleculares. Elas são relativamente densas, com cerca de um milhão de moléculas, por centímetro cúbico. Delas formam-se, por contração gravitacional, novas estrelas em seus respectivos sistemas planetários, simultaneamente. Essas nuvens contêm muita poeira, cuja presença é fundamental para a formação e sobrevivência das moléculas. Com efeito, a poeira protege o interior da nuvem contra a penetração da radiação ultravioleta de estrelas quentes vizinhas, que destróem as moléculas, dissociando-as. Além disso, a superfície dos grãos de poeira é um local propício para as reações químicas formadoras de moléculas.  Pelo fato de a poeira obscurecer a luz visível das estrelas, essas nuvens são escuras e não podem ser estudadas através da luz visível. Por isso mesmo, essas nuvens só foram identificadas na década de 1970, através da radioastronomia. Moléculas como a da água, a do monóxido de carbono e a da amônia emitem ondas de rádio que podem ser detectadas daqui da Terra, mesmo que as nuvens moleculares estejam ocultas sob densa poeira. Hoje, já foram identificadas mais de uma centena de espécies moleculares nessas nuvens. A mais complexa tem 13 átomos, mas a lista certamente está longe de ser completa. [11]

Conforme Matsuura, os elementos químicos mais abundantes no meio interestelar são, nessa ordem: hidrogênio, hélio, oxigênio, carbono, nitrogênio, neônio etc. Essa composição é semelhante à das estrelas. Desconsiderando-se os gases raros, os componentes químicos do corpo humano e dos organismos vivos assemelham-se à composição química interestelar, enquanto difere radicalmente do composto químico da crosta terrestre, onde os elementos mais abundantes são pesados (oxigênio, silício, alumínio e ferro). Esse fato torna a crosta terrestre um ambiente menos provável para a síntese das biomoléculas. [12]

Também os cometas são importantes na discussão da origem exógena da vida, porque representam verdadeiras relíquias do sistema solar primitivo. Os cometas, por permanecerem bem longe do Sol na maior parte do tempo, praticamente não sofrem aquecimento e vaporização. Também por serem relativamente pequenos, seus interiores nunca sofrem grandes pressões e aquecimentos, portanto sua matéria original manteve-se praticamente intacta. Já sabemos que os núcleos de cometas contêm amônia, metano, água e moléculas orgânicas. Há algumas indicações de que as moléculas complexas dos cometas teriam a mesma abundância relativa a que se encontra no meio interestelar, sugerindo que os gelos dos cometas já teriam se condensado nas nuvens moleculares e não na nebulosa solar primitiva. [13]

Segundo esse mesmo autor, a escassez de gases raros na atmosfera da Terra corrobora com a idéia de que ela não é primitiva. Isto é, produzida, principalmente, pelo degasamento, mas secundariamente pelo intenso bombardeamento de planetesimais ocorrido entre 4,1 e 3,9 bilhões de anos atrás. Portanto, para Matsuura, faz sentido imaginarmos que a atmosfera e a hidrosfera da Terra tenham sido trazidas por esses planetesimais de natureza cometária. A razão entre a abundância do isótopo deutério e o hidrogênio nas nuvens moleculares coincide com aquela encontrada na água dos oceanos da Terra e nos meteoritos condríticos carbonáceos. Talvez coincida também com a razão dos cometas. Esta, é menor no Sol, no meio interestelar em geral e nos planetas gigantes. Esses fatos estão de acordo com a idéia de que a água na Terra veio das nuvens moleculares. [14]

Meteoritos condríticos carbonáceos podem ser núcleos de cometas que perderam os gelos voláteis, ou fragmentos de asteróides que sempre conseguiram escapar de um aquecimento superior a 200ºK. De uma forma ou de outra, seriam remanescentes de planetesimais que se formaram e permaneceram sempre longe do Sol. Um exemplo que Matsuura alega é o meteorito de Murchison, que caiu na Austrália em 1969. Os compostos orgânicos solúveis desses meteoritos são aminoácidos (de uma variedade mais ampla do que a utilizada pelos seres vivos), bases nitrogenadas e ácidos graxos. O componente insolúvel contém substância aromática semelhante à hulha e estruturas organizadas semelhantes a microorganismos fossilizados.

Assim, os defensores do fenômeno exógeno para a origem da vida na Terra concluem que as biomoléculas podem ser encontradas nas nuvens interestelares, onde se formam novas estrelas com seus respectivos sistemas planetários. Planetesimais da natureza dos cometas e dos meteoritos condríticos carbonáceos podem ter transportado essas biomoléculas aos planetas recém-formados. Eles também defendem que fora do sistema solar, a vida pode ser procurada em outros sistemas planetários. Várias tentativas de contato foram realizadas com naves enviadas, principalmente pela NASA, desde 1970.

Não devemos esquecer de que uma viagem espacial para uma estrela à 150 anos-luz, a uma velocidade, hoje factível, de 50 km/s, demoraria um milhão de anos. Enquanto as viagens interplanetárias são proibitivas pela baixa velocidade das naves espaciais e conseqüentemente da enormidade de tempo demandado, uma possibilidade prática e barata é a captação passiva de sinais eletromagnéticos.

Para termos uma idéia dessa dificuldade, basta pensarmos que a radiação cósmica viaja na velocidade da luz. A estrela mais próxima de nós (excluindo o sol) é a Centauri. Apesar do adjetivo próxima, ele se encontra a quatro anos luz, ou seja, precisaríamos percorrer durante quatro anos, sob a  velocidade constante da luz, para chegarmos até ela. Não esqueçamos que a velocidade da luz é a maior velocidade conhecida pelo homem.

Segundo Eric Chaisson, um ano luz equivale à cerca de dez trilhões de quilômetros ou correspondente a trinta bilhões de quilômetros percorridos em um dia pela luz ou  por qualquer outra radiação. Uma velocidade respeitável, sem dúvida nenhuma.

Entretanto, esforços com artefatos espaciais não tripulados continuaram paralelamente visando a comunicação cósmica inteligente. As naves Voyager 1 e 2, lançadas em 1978, depois de explorarem o sistema solar, levaram para o meio interplanetário um disco fonográfico com vários sons naturais da Terra, saudações em várias línguas, trechos de músicas, além de imagens de pessoas, plantas, animais e paisagens.

A quarta explicação sobre a origem da vida que vamos rapidamente sintetizar é a da cosmologia evolutiva. Trata-se de outra posição sobre a origem da vida, muito próxima da visão exógena, anteriormente descrita, mas que desenvolveu muitas questões próprias e específicas. É a explicação da vida proveniente da cosmologia evolutiva.

O falecido divulgador científico Carl Sagan, criou uma metáfora do calendário cósmico, muito didático, para compreendermos a evolução. Sagan convida-nos a imaginar a história do Universo comprimida num único ano. Pensamos, então, que o Universo começou em 1º de janeiro. Na primeira fase do Universo, a radiação dominava a matéria. Durante a Era da Radiação, nada haveria a observar além da luz intensa. As imensas quantidades de energia radiante produziram, nessa ocasião, uma bola de fogo espetacularmente brilhante, em cujo interior não se podiam formar átomos nem moléculas. Ao expandir-se, o Universo esfriou e se rarefez. Originando-se da radiação, a matéria, aos poucos, coagulou-se em átomos. Esse processo deu-se, segundo a cosmologia, há cerca de dez bilhões de anos.

No calendário cósmico, somente em maio a via-láctea se formou. Em junho, julho e agosto já podia haver sistemas planetários, mas o Sol e a Terra, só surgiram em meados de setembro (segundo Sagan, a Terra surgiu “apenas” 4,5 bilhões de anos atrás). Cada mês do calendário representa um bilhão e duzentos milhões de anos e cada dia 40 milhões de anos.

Ao inaugurar-se a Era da Matéria, esta passou a dominar sobre a radiação. E, desde então, continuou dominando e formando sucessivamente as galáxias, as estrelas, os planetas e a vida. De todos os agregados de matéria conhecidos no Universo, as formas vivas são, certamente, as mais fascinantes, especialmente as que gozam da condição de membros de civilizações tecnologicamente avançadas. Formas de vida tecnologicamente inteligentes diferem fundamentalmente das formas inferiores de vida e de outros blocos de matéria disseminados no Universo, não apenas por serem capazes de manipular a matéria como por poderem alterar o curso da evolução.

A emergência de vida tecnologicamente inteligente na Terra, como possivelmente em outros planetas, anuncia uma era inteiramente nova – a Era da Vida. A vida na Terra apareceu 15 anos após o Big Bang. Segundo Sagan, “apenas” há cerca de 3,5 bilhões de anos. O domínio de um sítio onde residem seres vivos com capacidade de incidir, através de tecnologias inteligentes sobre a evolução cósmica, permite acelerar o processo de controle e independência da vida sobre a matéria.

Uma coisa se pode ter como certa: a vida humana deixou de ser absolutamente centrada no corpo humano. Nietzsche e Foucault  ensinaram-nos que a forma homem  foi uma fabricação social e histórica. Quanta violência e crueldade foram necessárias para moldar a vida na forma atual de homem; quanto terror foi necessário para incrustar nesse animal um mínimo de civilidade, de memória, de culpa, de senso, de promessa e dívida, em suma, de moral. Entretanto nos diz Nietzsche, estamos cansados do homem. O homem  tornou-se uma forma medíocre e insossa de apequenamento da vida, acabou por se tornar uma meta de civilização. Entretanto, não há por que se desesperar com essa exclamação do filósofo, até porque, a forma homem é uma moldagem histórica complexa e mutante. [15]

Porém, penso que é necessário estar atento aos passos de Nietzsche, sobretudo, diante da idéia de que o homem aprisionou a vida e como nos diz o filósofo: é preciso livrar-se do homem para liberar a vida. O campo de batalha é o próprio corpo do homem; são travadas lutas cruéis e brutais sobre o corpo do homem, desde seus genes até os seus gestos, sua percepção, seus afetos. Apesar dessa radicalidade, Nietzsche nos diz que nada está decidido, pois o homem continua sendo conforme suas próprias palavras: o ainda não domado, o eternamente futuro. [16] Nietzsche também nos chama para uma possibilidade da forma da vida do homem como: um grande experimentar-se de si mesmo.[17]

Cada vez mais, a matéria corpórea deixa de ter o monopólio da vida. O mesmo homem, que na modernidade matou Deus e  trocou-o pela razão moderna, deixa de ser, gradativamente, a medida de todas as coisas. Hoje, manipulamos múltiplos fragmentos de vida “in vitro”, isto é, fora da matéria vegetal, do corpo animal e do corpo humano. O mesmo pode ser dito diante de novas técnicas de reprodução não presencial que alteram, em muito, o que nossos pais e avós  ensinaram-nos sobre a reprodução biológica e sobre a herança genética.

A confluência de todos esses fatores cristalizou-se no surgimento de uma comunidade científica de caráter interdisciplinar, durante a década de 1980, que se articulou em função do projeto denominado “Vida Artificial”. O nascimento oficial da Vida Artificial como uma nova disciplina científica pode ser datada do ano de 1987, coincidindo com a realização da primeira reunião internacional sobre o tema. A vida artificial é um contraponto da simbiogênese. Ela se define, segundo um dos seus principais fundadores, C. Langton, como sendo o estudo de sistemas construídos pelo homem que exibem comportamentos lifelike. Ou seja, aqueles comportamentos característicos dos seres vivos. Segundo essa perspectiva, o estudo e a compreensão dos mecanismos da vida, em seu sentido mais genérico e fundamental, é inseparável da criação artificial de sistemas vivos.[18]

Por isso, a Vida Artificial não seria, em sentido estrito, uma ciência, mas uma tecnociência, visto que, do seu ponto de vista, a compreensão dos mecanismos universais da vida, somente é possível através de sua própria fabricação não simbiótica da vida. Do mesmo modo que, para a Inteligência Artificial, a compreensão da inteligência passa pela construção de sistemas artificiais a-simbióticos que possam desenvolver capacidades cognitivas.

Deixemos nossa polêmica com os defensores a-simbióticos da vida artificial. [19] Voltemos para a questão da origem da vida. Uma questão parece certa. Disso tudo, nós seres humanos do planeta Terra, como tantas outras possíveis formas de vida tecnológica alhures no Universo estão “a pique” de experimentar o lento desligamento entre a vida e a matéria. É uma transição de significado astronômico, a aurora de uma fase (cósmica) inteiramente nova.

Outra demonstração didática criada por Carl Sagan, para ajudar-nos a entender a evolução cósmica é a da espacialização do calendário cósmico, acima referido. Sagan nos pede para imaginar o tamanho do cosmos como o de um campo oficial de futebol. Ali, nesse espaço imaginário, toda a história da vida humana ocuparia o tamanho correspondente ao de uma palma da mão. Toda a história da escrita ocuparia apenas os últimos segundos, do último minuto, do último dia do calendário cósmico (31 de dezembro). Os primeiros seres humanos vieram ao universo às 22h 30min do dia 31 de dezembro. Portanto, 14 minutos depois de chegarem ao Universo, os seres humanos já tinham conquistado o fogo. Às 23h 59min 20s da noite do último dia do ano cósmico surge a agricultura e a criação doméstica de animais. Às 23h59 min 35s as comunidades agrícolas evoluem, tornando-se habitantes das primeiras cidades.

Nós, os seres humanos, aparecemos recentemente na história cósmica. Tão recentemente que nossa história ocupa somente os últimos segundos do último minuto de 31 de dezembro do calendário cósmico de Sagan. No vasto oceano que esse calendário representa, todas as nossas memórias estão confinadas num pequeno quadradinho.

Todas as pessoas que já ouvimos falar viveram num ponto deste quadradinho. Todos os reis, todas as batalhas, as guerras, tudo que existe em livros, filmes, aconteceu nos últimos 10 segundos do calendário cósmico.

Enfim, seria muito conveniente se houvesse uma definição consensual de vida, mas não há. Os astrônomos já estão fazendo algumas tentativas sérias para identificar planetas de outros sistemas cósmicos capazes de abrigar seres vivos. Eles perguntam-se como poderemos dizer se um planeta é capaz de sustentar a vida, se ainda não sabemos como ela surgiu no fosso do nosso próprio planeta? O melhor que se tem feito, neste sentido, é a especificação das condições que devem compor os elementos de uma dada estruturação complexa para serem entendidos como seres vivos. Entretanto, ao fazermos isso, cada vez mais, nos damos conta de que, quase todo o ser vivo, é uma exceção do ecossistema.

Por exemplo:

1. Podemos definir vida como: organizações complexas, capazes de se auto-reproduzirem fielmente. Mas a palavra “fielmente” pode ter vários significados. Uma espécie que se reproduza com excessiva fidelidade (ou seja, com pouca variabilidade darwiniana) não conseguirá sobreviver nem mesmo a uma pequena mudança no ambiente.

2. Podemos entender os seres vivos como entidades complexas, auto-suficientes, capazes de se sustentar apenas com substâncias recolhidas do ambiente. [20]

Porém, logo perceberemos que os vírus serão excluídos dessas categorizações de seres vivos, pois eles, na sua totalidade, não são capazes de reproduzirem-se sem a ajuda de células intactas. Os biólogos possuem uma grande lista de microorganismos chamados de microbactérias,  que não encontramos no tecido planetário, e que são parasitas dos mamíferos - e tão incapazes quanto os vírus, de sobreviverem sozinhos (as microbactérias são responsáveis por várias infecções humanas).

Segundo a simbiogênese, todos os organismos que hoje habitam a Terra dependem, em maior ou menor grau, de outros organismos. Os animais precisam dos vegetais, as árvores precisam das bactérias para fixar o nitrogênio do ar, e, a maioria das plantas, precisa dos insetos para polinizar as flores. É por isso que o complexo de seres vivos, a biosfera, é às vezes chamado de “teia da vida”.[21] Dos organismos modernos, talvez, apenas algumas bactérias e algas marinhas unicelulares atendam aos critérios de fidelidade de reprodução e auto-suficiência.

A vida na Terra baseia-se fundamentalmente em: (1) estruturas moleculares formadas por ligações covalentes do átomo de carbono; (2) na presença de água, no estado líquido proporcionando um meio propício para as reações biomoleculares e controlando a solubilidade de outras moléculas; (3) na presença de elementos, tais como o nitrogênio, o fósforo e o enxofre. Geralmente alguns biólogos utilizam a sigla CHONSP, para indicar: carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio, enxofre e fósforo. Além desses elementos, também o cálcio e o ferro fazem parte das biomoléculas (moléculas dos seres vivos).

De acordo com as ciências da vida, todos os seres vivos modernos funcionam com os mesmos princípios sendo que as provas encontram-se na biologia molecular, desde 1953. [22] Por exemplo: o código genético especifica de que forma a seqüência de nucleotídeos em uma molécula de DNA determina a seqüência de aminoácidos nas proteínas fabricadas pelas células. Com raras exceções, o código é o mesmo para todos os organismos.

A estrutura espacial do DNA, descoberta em 1953 por James Watson e Francis Crick, através de estudos de difração de raios-X, tem a forma de uma dupla hélice, a famosa "escada helicoidal".[23] Se desenrolássemos estes fios e os ligássemos em série, eles formariam um frágil cordão, com cerca de 1 metro e meio de comprimento, e apenas 20 trilionésimos de largura! Este fantástico cordão que encerra o código genético é, na verdade, constituído por uma gigantesca biomolécula, conhecida como ácido desoxirribonucléico — o DNA.

Os biólogos defendem que as cadeias de nucleotídeos formam os genes, são porções do DNA que controlam a síntese das proteínas e determinam as características dos organismos. Os genes também transportam as características hereditárias de uma geração para outra. Podemos considerar as biomoléculas, como sendo: 20 aminoácidos, mais as cinco bases, mais duas de açúcar (ribose e glucose), a do ácido graxo (ácido palmítico), a do álcool (glicerol) e a do aminoálcool (colina), constituindo, assim, em 30 biomoléculas no geral. Como vimos, praticamente em todos os seres vivos a interação entre os ácidos nucléicos e as proteínas é governada por um código genético comum que relaciona, de forma única, cada um dos 20 aminoácidos dos seres vivos com uma seqüência específica de três nucleotídeos.[24]

Segundo estimativas recentes o corpo humano contém cerca de 100 trilhões de células. Na maioria das células existe um núcleo, onde se encontra algo essencial: o genoma humano, uma estrutura contendo o projeto de construção e funcionamento do corpo. O genoma é encontrado no núcleo das células sob a forma de 46 filamentos enrolados em pacotes chamados cromossomos, que incluem também moléculas de proteínas associadas.

É como se fosse uma escada flexível formada por duas cordas torcidas, ligadas por degraus muito estreitos. Cada "corda" é um arranjo linear de unidades semelhantes que se repetem, chamadas nucleotídeos, e se compõem de açúcar, fosfato e uma base nitrogenada.

Os biólogos indicam existir quatro bases nitrogenadas no DNA, as quais se unem aos pares para formar os "degraus" da escada: adenina (A), timina (T), guanina (G) e citosina (C). Um dado fundamental no mecanismo de funcionamento do DNA é o fato de que A e T se atraem mutuamente, da mesma forma que C e G. Elas obedecem rigorosamente a regra de que só podem se unir destas duas maneiras: A se liga a T e G se liga a C. Não pode existir no DNA um par de bases formado de adenina e citosina, ou de timina e guanina, por exemplo. A ordem particular em que as bases se alinham ao longo da cadeia de açúcar e fosfato é chamado de seqüência nucleotídica do DNA. Essa seqüência é característica para cada organismo e encerra milhões de sinais que a célula consegue interpretar como instruções para a fabricação de proteínas, como veremos a seguir.

O corpo humano conta também com 20 aminoácidos diferentes, que se unem em diferentes seqüências, para constituir as diferentes proteínas necessárias à sua estrutura e funcionamento. O organismo humano pode sintetizar pelo menos 80 mil diferentes proteínas.

A instrução para que as células fabriquem uma proteína específica é dada por um segmento da cadeia de DNA contendo uma seqüência específica de bases. Isso é o que constitui o gene: um segmento de DNA que contém a mensagem completa para a síntese de uma proteína. Na linguagem química do código genético, um gene funciona como uma "sentença", cujas letras seriam as quatro bases A, C, G e T. Cada conjunto de 3 bases (codons), na seqüência ao longo da "corda" do DNA, seriam as "palavras", as quais sinalizam às células um determinado aminoácido a ser usado na síntese da proteína. Por exemplo, a seqüência de bases ATG codifica o aminoácido metionina. Um fragmento do DNA com a seqüência GAGATGGCA codifica uma seqüência de três aminoácidos, que são, respectivamente, ácido glutâmico, metionina e alanina.

Desvendar o seqüenciamento das bases dentro do DNA, para cada organismo é, para os geneticistas, o mesmo que desvendar o "segredo" de sua formação e do seu funcionamento, pois o DNA é o "manual de instruções" usado pela célula (chamado pelos cientistas da vida de processo de desvendamento do código genético da vida). Entretanto, é bom lembrarmos que a visão funcionalista e mecanicista dos geneticistas tem sido extremamente bem sucedida no campo da biologia, culminando na compreensão da natureza química dos genes, nas unidades básicas da heterogeneidade e conquistando êxitos parciais na revelação do código genético, ela tem, não obstante, sérias limitações diante de conceitos integrativos da vida que continuam para nós sendo um mistério profundo. [25]

Assim o conceito corrente e simplificado de gene como o de uma seqüência de DNA no genoma de um organismo que "codifica" uma proteína. Quer dizer, a fileira de "letras" (bases nitrogenadas) com a "informação" necessária para a célula sintetizar dada proteína, encadeando centenas ou milhares de aminoácidos na ordem correta para que ela possa realizar uma dada função.

Se a série de aspas no parágrafo anterior lhe causa incômodo, é proposital. Elas servem para indicar que não passam de metáforas essas noções lingüísticas sobrepostas à de gene, embora pareçam hoje intuitivas até para o público leigo. Lenny Moss, professor de filosofia da Universidade de Notre Dame (EUA), combinando sua formação em biologia celular com sociologia e filosofia, afirma da necessidade de desenredarmos desse emaranhado de conceitos, em que realidades celulares e bioquímicas se entretecem com simbologias de sabor pré-formacionista e até esotérico, como na popular idéia de que o genoma é o Livro da Vida. O destino não está nos genes, que não são nem texto, nem programa de computador. O resultado desse desenredo seria então, uma desconstrução da noção de gene que deveria constituir leitura obrigatória no primeiro ano de todas as faculdades de biociências.

Moss afirma que o problema está na mescla de dois conceitos. Um ele chamou de Gene-P (de "pré-formacionista"), essa idéia de que na coleção de genes se encontra "tudo que é necessário para construir um ser humano". É a nova encarnação da noção antiga de que o plano completo do organismo que se desenvolve do ovo já está contido nele ou num dos gametas que lhe deram origem. O ícone dessa concepção é o homúnculo agachado na cabeça de um espermatozóide, uma das "provas" no clássico debate dos séculos 17 e 18 entre pré-formacionistas e epigenesistas (adeptos do surgimento espontâneo de estruturas ao longo do processo de desenvolvimento). [26]

O outro conceito isolado por Moss é justamente o de Gene-D (de "desenvolvimento"). Ou seja, aquele em que a seqüência do DNA representa só um recurso necessário para o desenvolvimento de um organismo, do ovo ao adulto. Necessário, mas não suficiente, pois seria um recurso desenvolvimental entre outros, como a maquinaria celular provida pelo citoplasma do gameta feminino (óvulo), o cuidado parental, ou o nicho ecológico.
Esse seria o conceito operacionalmente vivo nos laboratórios, segundo Moss. A mistura dos dois conceitos só serviria a uma coisa: inflar retoricamente e ilusoriamente a potencialidade da genômica.

A partir dessa rápida incursão em torno do debate da vida em nosso planeta, vamos agora ao que mais nos interessa, diante dessas informações iniciais.

 Quando li o livro O Planeta simbiótico, que contém a proposta de concepção revolucionária da vida, de Lynn Margulis[27], imediatamente descobri que ali tínhamos um grande insight de compreensão e também de explicação, não apenas da evolução da vida, mas de ressignificação das explicações e compreensões e das interligações entre o mundo orgânico e inorgânico das tecnologias e da vida sobre nossas complexas sociedades contemporâneas, fundadas cada vez mais, sob o princípio da simbiogênese.

Para que se entenda profundamente essa nossa perspectiva entre simbiogênese e tecnologia, é necessário romper com a velha abordagem dualista: realidade úmida (orgânica) versus realidade seca (inorgânica), que nos acompanhou no entendimento e no entrelaçamento das coisas do mundo com a vida, envolvendo-nos em simplificadoras versões entre realidade vital versus realidade virtual.

Acreditamos que a abordagem da simbiogênese, proveniente da Genética Molecular, pode nos ajudar nessa tarefa de decifração da esfinge informacional. Assim, simbiose, simbiótica e simbiogênese constituem, para nós, conceitos fundamentais para entendermos o impacto sofrido pelas velhas relações sociais polarizadas por realidades físicas delimitadas no indivíduo. Pensamos, dessa forma, explicar e compreender a interação entre as informações e a estrutura reflexiva de comunicação imaterial das redes digitais como mediações simbióticas que expressam a emergente complexidade entre as relações do mundo orgânico com o inorgânico. Igualmente, a simbiogênese é mais adequada para explicar o impacto sofrido pela sociedade em decorrência do fenômeno da aceleração tecnológica, a qual, cada vez mais, está submetida ao domínio da polaridade dinâmica da informação genética.

A simbiogênese, como vimos, originalmente tratou de uma abordagem original para a microbiologia. Lynn Margulis indagou-se à cerca do modo de evolução das formas superiores de vida. A própria autora respondeu a essa pergunta, ao descobrir um caminho, totalmente inesperado de evolução, que traz implicações profundas para todos os ramos da Biologia e da ciência em geral.

Darwin publicou sua teoria em 1859, na sua obra monumental On the Origin of Species e a completou doze anos mais tarde com The Descent of Man. Darwin baseou sua teoria em duas idéias fundamentais: variações casuais, que foi posteriormente denominada de mutação aleatória, e a seleção natural.

Em 1982, Lynn Margulis lançou a idéia de que as mitocôndrias descendiam de bactérias especializadas em conversão de energia que eram parasitas de bactérias maiores e, com o tempo, passaram a fazer parte dessas bactérias. A conclusão óbvia é que houve um estágio na evolução da vida em que havia pelo menos dois códigos genéticos diferentes numa mesma complexidade organizada, ressaltando a importância do parasitismo mutuamente benéfico (conhecido pelo nome de simbiose) como forma de um organismo adquirir novas funções.

Os microbiologistas têm sabido, desde há algum tempo, que a divisão mais fundamental entre todas as formas de vida não é aquela entre plantas e animais, como a maioria das pessoas presume, mas entre dois tipos de células — células com e células sem um núcleo.*

Margulis ficou intrigada com o fato de que, nem todos os genes numa célula nucleada, encontravam-se dentro do núcleo celular.

 

Fomos todos ensinados que os genes se encontravam no núcleo e que o núcleo é o controle central da célula. No começo dos meus estudos de genética, tornei-me ciente de que existem outros sistemas genéticos, com diferentes padrões de herança. Desde o princípio, fiquei curiosa a respeito desses genes indisciplinados que não estavam nos núcleos. [28]

 

À medida que estudava minuciosamente esse fenômeno, Margulis descobriu que quase todos os genes indisciplinados” derivavam de bactérias e, aos poucos, compreendeu que eles pertenciam a diferentes organismos vivos, pequenas células vivas que residem dentro de grandes células vivas.

A simbiose – tendência de diferentes organismos para viver em estreita associação uns com os outros e, com freqüência, dentro uns dos outros (como as bactérias dos nossos intestinos) –, é um fenômeno difundido e bem conhecido. Margulis, no entanto, deu um passo além e propôs a hipótese de que simbioses de longa duração, envolvendo bactérias e outros micro-organismos que vivem dentro de células maiores, levaram, e continuam a levar, a novas formas de vida.

Margulis publicou, pela primeira vez, sua hipótese revolucionária em meados da década de 60 e, ao longo dos anos, criou uma teoria madura, hoje conhecida como “simbiogênese”, que vê a criação de novas formas de vida por meio de arranjos simbióticos permanentes como o principal caminho de evolução para todos os organismos superiores. [29] Nessa época, sua tese teve pouco impacto, dado que essa constatação contrariaria um dos pilares básicos do entendimento da evolução até então vigente.

A evidência mais notável para a evolução por meio de simbiose é encontrada nas assim chamadas mitocôndrias em uma espécie de casas de força internas à maioria das suas células nucleadas. Essas partes vitais das células animais e vegetais, responsáveis pela respiração celular, contêm seus próprios materiais genéticos, reproduzindo-se de maneira independente e em tempos diferentes com relação ao restante da célula. Segundo Margulis, as mitocôndrias poderiam ter sido, originalmente, bactérias que flutuariam livremente e que, em antigos tempos, teriam invadido outros microorganismos e estabelecido residência permanente dentro deles: “Os organismos mesclados iriam se desenvolver em formas de vida mais complexas, que respiram oxigênio [...] Aqui, portanto, havia um mecanismo evolutivo mais inesperado do que a mutação: uma aliança simbiótica que se tornou permanente”.  [30]

A teoria da simbiogênese elaborada por Margulis implicaria, então, em uma mudança radical de percepção no pensamento evolutivo. Enquanto a teoria convencional concebe o desdobramento da vida como um processo, no qual as espécies apenas divergem umas da outras, Lynn Margulis alega que a formação de novas entidades compostas por meio da simbiose de organismos, antes considerados independentes, tem sido a mais poderosa e mais importante das forças da evolução.

Essa nova visão tem forçado biólogos e deterministas tecnológicos a reconhecerem a importância vital da cooperação no processo evolutivo. Os darwinistas sociais do século XIX viam somente competição na natureza, de uma natureza, vermelha em dentes e em garras – como expressou o poeta Tennyson —, mas agora estamos começando a reconhecer a cooperação contínua e a dependência mútua entre todas as formas de vida como aspectos centrais da evolução. A vida não se apossa do globo pelo combate, mas, sim, pela formação de redes simbióticas.[31]

O desdobramento evolutivo da vida ao longo de bilhões de anos constitui uma história empolgante, que acionada pela criatividade inerente a todos os sistemas vivos expressa, ao longo de três caminhos distintos mutações, intercâmbios de genes e simbioses aguçada pela seleção natural, a pátina viva do planeta expandiu-se e intensificou-se em formas de diversidade sempre crescente.

Não há evidência de algum plano, objetivo ou propósito no processo evolutivo global e, portanto, não há comprovação de progresso; não obstante, há padrões de desenvolvimento reconhecíveis. Um deles, conhecido como convergência, constitui-se na tendência de os organismos desenvolverem semelhantes formas para enfrentarem desafios análogos (mesmo que carreguem histórias ancestrais diferentes). Desse modo, os olhos evoluíram, muitas vezes, ao longo de diferentes caminhos – nas minhocas, nas lesmas, nos insetos e nos vertebrados –, assim como as asas desenvolveram-se independentemente em insetos, em répteis, em mamíferos e em pássaros. Parece que a criatividade da natureza é ilimitada.

Outro padrão notável se expressa pela ocorrência de catástrofes – que talvez sejam pontos de bifurcação planetária – seguida por intensos períodos de crescimento e de inovação. Desse modo, a redução desastrosa da quantidade de hidrogênio na atmosfera da Terra (há mais de dois bilhões de anos) levou a uma das maiores inovações evolutivas: o uso da água na fotossíntese. Aliás, a fotossíntese é processo que sustenta as plantas modernas começou a funcionar “a pleno vapor” há cerca de 2,7 bilhões de anos. (Este é outro marco na evolução da vida). Não dá para esquecermos que muitos organismos dependem da fotossíntese apenas de forma indireta. Por exemplo, os organismos da luxuriante fauna bacteriana que habita o intestino humano nunca vêem a luz do Sol.

Há milhões de anos, esse novo processo extremamente bem-sucedido produziu uma crise ambiental, ao ocasionar a poluição catastrófica por meio do acúmulo de grandes quantidades de oxigênio tóxico na atmosfera. A crise do oxigênio, por sua vez, induziu a evolução de bactérias que respiravam hidrogênio (outra das espetaculares inovações da vida). Mais recentemente, há 245 milhões, as mais devastadoras extinções em massa que o mundo já viu foram seguidas rapidamente pela evolução dos mamíferos, e, 66 milhões de anos atrás, a catástrofe que eliminou os dinossauros da face da Terra abriu caminho para a evolução dos primeiros primatas e, finalmente, para o surgimento da espécie humana.

Por fim, as temáticas complexas exigem níveis mais profundos e detalhados de investigação, comuns às marcas de tendências intelectuais e culturais modernas e evolutivas das quais participamos. Quando alguém tem uma nova idéia, ela será adotada por algum outro inovador que, de início, pensa sobre ela no mesmo contexto que seu criador, porém, depois, percebe que há margem para aperfeiçoá-la e transplantar a sua essência para um outro contexto. A idéia evoluiu. Foi dominada por uma nova mente. Assim, pensamos que vivemos numa sociedade cada vez mais simbiogênica.

Por que não podemos começar a falar que, na atualidade, a humanidade está se dividindo, não mais em classes sociais moldadas pelo seu papel na produção econômica e social? Porque, verificamos que entre os velhos humanóides produzidos pela lenta evolução natural, emerge numa nova espécie, envolvida numa complexa simbiose. Estes últimos encontram-se em rápida aceleração evolutiva, produto de uma nova sociedade simbiônica, tecida, cada vez mais, por uma intensa cadeia de mediações simbiogênicas.

Hoje, mesmo que, na maioria das vezes, expressando uma perspectiva simplista de determinismo tecnológico, que desconsidera a força, a resistência e a herança da matéria e da realidade orgânica, diante da emergente realidade imaterial das redes digitais, encontramos tanto na literatura científica, como em filmes de ficção, sinais da emergência da sociedade simbiogênica. Cito como exemplo a da defesa do homem simbiótico de Rosnay (1997),[32] e os filmes de ficção: Matrix e Gattaga: a experiência genética. Este último relata o conflito entre uma aristocracia formada por seres de matriz humana geneticamente melhorados, ou seja, evoluídos pela intervenção da simbiogênese e os decadentes seres humanos submetidos à evolução meramente biológica. Nesse sentido, compartilhamos da hipótese implícita nesses filmes de que o pólo dinâmico da informação digital migra para a informação genética e que, provavelmente, os avanços das tecnologias da informação e da comunicação interativa permitirão a eclosão de uma nova possibilidade de evolução da vida, diferente daquela prevista pelo darwinismo. A vida biológica mesclar-se-á, numa simbiose cada vez mais intensa, com as tecnologias de informação integradas em redes e artefatos bioinformacionais (orgânicos e inorgânicos).

Esse processo incidirá com muita intensidade sobre as instituições modernas e industriais. Viveremos ainda mais num ascendente império cada vez mais presente na velocidade do tempo real em detrimento do tempo histórico. Assim, viveremos a perda da centralidade normativa, o desmonte da moderna transformação da vida em maquinaria racional e a desmaterialização do poder, corroendo as físicas instituições e seus territórios funcionais de competência. Isto é, viveremos o fim da existência do monopólio da representação e regulamentação normativa e das físicas instituições modernas. Finalmente, esse processo acelerará ainda um dos paradoxos mais radicais da contemporaneidade, que é o destronamento do princípio da centralidade do trabalho na vida humana.

Tudo isso pode parecer, à primeira vista, muito estranho. Em geral, “compreendemos” e emitimos juízos e convicções com base em situações do nosso cotidiano, seja em nível emocional, racional no plano físico. De modo geral, lidamos com situações que estão dentro de nossa experiência sensorial direta, palpável. Entretanto, com um pouco de esforço, não é difícil compreender que a experiência complexa da simbiogênese em nossas sociedades faz sentido para um futuro próximo e nos convida a preparar-nos para enfrentá-lo, ao invés de negá-lo cegamente ou de continuar a iludir-nos pelas falsas promessas dos deterministas tecnológicos que enriquecem a uns poucos num mundo que exclui e precariza os muitos primatas da vida humana na sociedade.

As diversas conquistas das novas tecnologias inteligentes permitiram a construção de um compartilhamento sensório e cognitivo em interação humana com máquinas integradas em redes imateriais, de âmbito local e global, dotadas de ampla capacidade de receber, estocar, represar, alterar, transmitir e retransmitir dados, sons e imagens estáticas ou em movimento, ampliando nossa capacidade de comunicação inteligente. No entanto, apesar da grandiosidade e complexidade que essas conquistas tecnológicas imprimem nos fenômenos sociais, ainda vivemos uma fase primitiva da simbiogênese da vida humana interligada ao processo de aceleração tecnológica e científica. Na verdade, estamos recém começando a viver a sociedade simbiogênica, e ela desde já nos aponta imensos desafios da vida em sociedade que, até então, ainda não tínhamos experimentado em profundidade.

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Gilson Lima. [1] Cientista aposentado depois de décadas de atuação independente sobre múltiplos campos da vida e da tecnologia na complexidade, criou a teoria não natural da simbiogênese cooperativa na evolução cérebro, máquinas, corpos e sociedade. Foi por vários anos pesquisador acadêmico e industrial coordenando bancadas de pesquisas de ciência de ponta, tecnologia e protocolos de neurorreabilitação em diferentes cidades e diferentes países principalmente, europeus. 

Tem formação original humanística e foi voltando seus estudos e pesquisas desde o início dos anos 90 para a abordagem da complexidade nas metodologias informacionais, depois na nanotecnologia e nos últimos 15 anos de carreira focou na neuroaprendizagem e reabilitação envolvendo a simbiogênese e interfaces colaborativas entre cérebro, corpos e displays.

Inventor de várias tecnologias, softwares e protocolos clínicos.

Escritor. Muitas de suas atividades e textos estão disponíveis no blog: http://glolima.blogspot.com/

Atualmente retomou sua atividade como músico compositor, cantor que atuava na adolescência produzindo atualmente suas canções e coordenando a Banda Seu Kowalsky e os Nômades de Pedra. Suas músicas e shows vídeos podem ser acessadas no canal do youtube. https://www.youtube.com/c/seukowalskyeosnomadesdepedra

Último Livro: 

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[1] Como veremos mais adiante, simbiogênese trata-se de um conceito proveniente da genética molecular. Uma abordagem evolutiva proposta por Lynn Margulis. A teoria da simbiogênese implica uma mudança radical de percepção no pensamento evolutivo. Enquanto a teoria convencional concebe o desdobramento da vida como um processo no qual as espécies apenas divergem umas das outras, Lynn Margulis alega que a formação de novas entidades, compostas por meio da simbiose de organismos, antes independentes, tem sido a mais poderosa e mais importante das forças da evolução. Essa nova visão tem forçado biólogos a reconhecer a importância vital da cooperação no processo evolutivo. Pensamos que a abordagem e a ressignificação da simbiogênese constitui um recurso teórico importantíssimo para darmos conta do dilema e da complexidade provenientes da emergência da esfinge informacional e das interações orgânicas e inorgânicas entre as máquinas, redes e a vida humana em sociedade em simbiose com nossa eco-natureza.

[2] CHAISSON, Eric. A Aurora Cósmica. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984. p. 295-296

[3] Ibid., id.

[4] HELMAN, Hal. Grandes debates da ciência: dez das maiores contendas de todos os tempos. São Paulo: Unesp, 1999. p. 121.

[5] A reação de Darwin aos múltiplos ataques sobre a publicação A origem das espécies, foi tomada de muita ansiedade. Seus biógrafos Adrian Desmond e James Moore deram a sua biografia de 1991 o subtítulo “A Vida de um Evolucionista Atormentado”. O que mais preocupava Darwin era a angústia de sua amada esposa, que tinha grande dificuldade em tentar conciliar sua profunda fé religiosa com o amor e respeito a seu marido. Quando o establisment religioso o atacava, maior era a aflição que ela sentia. Ver: HELMAN, Hal. Grandes debates da ciência: dez das maiores contendas de todos os tempos. São Paulo : Unesp, 1999. p. 120-121.

[6] MADDOX,, John. “O que Falta Descobrir?”  Rio de Janeiro: Campus, p. 126.  John Madox é editor emérito da mundialmente famosa Revista Científica: Nature.

[7] Segundo a literatura científica, no nosso pequeno planeta, tanto as florestas, como os prados, os oceanos e até mesmo os céus foram colonizados e, de certa forma, conquistados e dominados por algumas espécies de mamíferos. Existem diferentes mamíferos dominantes, que há tempos os geólogos referem-se à era geológica atual, como a Era dos Mamíferos. No entanto, a assim chamada Era tem sido a ordem reinante das coisas, por apenas uma breve fração da existência da vida nesta Terra. De fato, o registro fóssil nos diz que os mamíferos estiveram por aqui há 250 milhões de anos. Porém, como entidades vivas e dominantes do planeta, apenas nos últimos 50 milhões desse longo período.

[8] Ainda se discute muito a respeito da composição da atmosfera primitiva da Terra, em parte devido às incertezas quanto à formação do núcleo do planeta, composto basicamente por ferro, mas também quanto ao argumento de que a radiação solar teria reduzido as concentrações de amônia (NH3) e metano (CH4) na atmosfera. Também foi observado recentemente que a atmosfera de Júpiter há menos água do que se esperava e que do se imaginava estar presente na Terra há quatro bilhões de anos. Ver: Maddox, John. “O que Falta Descobrir?” Rio de Janeiro: Campus, p. 126 e p. 359. 

[9] MATSUURA, Oscar T. Estrelas: Formação. Meio interestelar. Ficha de Astro­nomia Número 20, MAST/MCT, jul./1999.

[10] MATSUURA, Oscar T. A vida veio das nuvens interestelares. São Paulo : Revista de Ensino de Física, 1980.

[11] Ver: MATSUURA, Oscar T. Estrelas: Formação. Meio interestelar. Ficha de Astro­nomia Número 20, MAST/MCT, jul./1999.

[12]Ver também: MATSUURA, Oscar T. O que é vida? In: Para entender a biologia do século XXI – organizadores - Charbel Nino El-Hani & Antônio Augusto Passos Videira. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

[13] MATSUURA, Oscar T. Cometas: do mito à ciência. São Paulo: Ícone Editora, 1985. Ver também do mesmo autor: A busca por novos sistemas planetários. In: Ciência Hoje. São Paulo: Revista Ciência Hoje, l998.

[14] MATSUURA, Oscar T. Vida Extraterrestre. In: El-Hani e Videira (orgs.) O que é Vida? Para entender a biologia do século XXI. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 281-282.

[15] Aqui podemos dizer também que estamos cansados do homem sujeito. Lembramos de Hegel que definiu sujeito como: “o que pode reter em si a própria contradição”.  Ver nesse sentido, PELBART, Peter Paul.  A vertigem por um fio: políticas da subjetividade contemporânea. Iluminuras: São Paulo, 2000. p. 15.

[16] Ibid., p. 13.

[17] Ibid. id.

[18] Ver: MORENO, Álvaro & FERNANDES, Júlio. A Vida Artificial como Projeto de Criação de uma nova biologia universal. In: El-Hani e Videira (orgs.) O que é Vida? Para entender a biologia do século XXI. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 257-271.

[19] Para quem quiser saber mais sobre vida artificial, principalmente, do ponto de vista de seus defensores Ver: ANTUNES, Barone (org.). Sociedades Artificais: A nova Fronteira da Inteligência nas Máquinas. Porto Alegre: Bookmann, 2003.

[20] Ver nesse sentido: MATURANA, Humberto Romesín; VARELA, Francisco J. Garcia. De máquinas e seres vivos. Autopoiese: a organização do vivo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. Ver também dos mesmos autores: A árvore do conhecimento. Campinas: Editorial Psy, 1995.

[21] Ver nesse sentido: CAPRA, Fritjof. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1998.

[22] A biologia molecular revelou que a vida na Terra depende de apenas umas poucas dezenas de moléculas básicas. Um grupo dessas moléculas são os aminoácidos. De uns 70 aminoácidos catalogados, a vida só faz uso de 20. As proteínas, cadeias de aminoácidos, controlam o metabolismo, que consiste no aproveitamento dos nutrientes e da energia, e mantêm as atividades vitais de todos os organismos.  Ver: POLLACK, Robert.”Signos da vida”. Rio de Janeiro: Editora Rocco, (1997).

[23] Para conhecer mais sobre o ambiente na Escola de Biologia de Cambridge que deu origem a decifração da estrutura do DNA, veja: Gilda Morelli e Gabriella Natoli. In: DE MASI, Domenico (org.). A Emoção e a Regra: grupos criativos na Europa de 1850 a 1950. Rio de Janeiro: José Olympio. 1997. p. 337- 358.

[24] MATSUURA, Oscar T. in: O que é vida? ? In: Para entender a biologia do século XXI – organizadores - Charbel Nino El-Hani & Antônio Augusto Passos Videira. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 276.

[25] CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix, 1994. p.96.

[26] Ver: MOSS, Lenny. What Genes Can't Do (o que os genes não podem fazer). Boston: Editora do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT, 2002.

[27] MARGULIS, Lynn. O Planeta Simbiótico: nova perspectiva da evolução. Rio de Janeiro : (Editora) , 2001. Sobre o mesmo assunto, veja também: MARGULIS, Lynn. Microcosmos. New York: Summit, 1986 e também: Margulis, Lynn; Dorion Sagan: O que é a vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

*As bactérias, as formas de vida mais simples, não têm núcleos celulares e são, por isso, chamadas de procariotes (“células não-nucleadas”), enquanto que todas as outras células têm núcleos e são denominadas eucariotes (“células nucleadas”). Todas as células dos organismos superiores são nucleadas e os eucariotes também aparecem como micro-organismos não-bacterianos de uma só célula.

[28]CAPRA, Fritjof. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1998. p. 184. Ver também: MARGULIS, Lynn; SAGAN, Dorion. “Symbiosis in evolution”. San Francisco: Freeman, 1993. Dos mesmos autores ver ainda: O que é vida? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

[29] CAPRA, Fritjof. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1998. p. 185.

[30] MARGULIS, Lynn. ; SAGAN, Dorion. Microcosmos. New York: Summit, 1986. P. 17.

[31] MARGULIS, Lynn; SAGAN, Dorion. O que é vida? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 245.

[32] ROSNAY, Joël de. Homem simbiótico. Petrópolis: Vozes, 1997.