sábado, 31 de outubro de 2020

A TELEVISÃO PROVOCA VIOLÊNCIA: Cérebro, aprendizagem e violência na televisão?




 Saiu um artigo meu na Revista Sociologia  Número 73 nas Bancas. Título: A Televisão provoca violência?


“Saiba mais sobre o poder de 18 mil horas de TV em crianças e adolescentes"...; implicações nas modulações cerebrais. Começamos afirmando que as respostas não são assim tão fáceis. O cérebro está sempre aprendendo, também aprende no cinema, na televisão, na tela do computador, do celular e smartphone.
Desde os primórdios da tecnologia da comunicação humana foram criados que existem também expressões de violência neles. Encontramos expressões desde as primitivas pinturas dos humanódies nas cavernas hexâmetro à xilogravura, nas primeiras expressões pictográficas da escrita, na Bíblia, até ao vídeo e à expressão gráfica da Internet a www (World Wide Web). No entanto, gostaria de responder sobre qual a relação entre representação de violência em filmes ou televisão e a aprendizagem?”
http://www.escala.com.br/sociologia-ciencia---vida-ed--73/p
Gilson Lima




Gilson Lima

Desde que os meios de comunicação social existem, que existe também representações de violência neles. Em Homero e Shakespeare há representação de violência da mesma forma que na Bíblia ou em pinturas antigas desde o hexâmetro à xilogravura, até ao vídeo e à www (World Wide Web). No entanto, gostaria de responder sobre qual a relação entre representação de violência em filmes ou televisão (e re­centemente no computador) e a aprendizagem?
Infelizmente, as respostas não são assim tão fáceis. O cérebro está sempre a aprender, também aprende no cinema, na televisão e na tela do computador.
Concentrarei, sobretudo, num meio, a televisão, devido à sua ampla distribuição e sua grande abrangência e significado social.

Os dados abaixo publicados sobre violência na televisão utilizam, essencialmente, os dados dos EUA já consolidados e amplamente difundidos. Vejamos:  os estudantes americanos gastam, até final da escola secundária (ou seja, 12 anos escolares), aproximadamente 13 000 horas na escola e 25 000 horas em frente de um televisor. Calcula-se que, desse total, 18 000 horas podem ser designadas como «aprendizagem visual dominada pela violência» (Barry, 1997, p. 301).
A Associação Médica Americana calculou que uma criança, até final da escola básica, já viu mais de 8000 homicídios e mais de 100 000 cenas de violência. Foi também calculado que as crianças que vivem em casas com televisão por cabo, até aos 18 anos já viram 32 000 assassinatos e 40 000 tentativas de assassinato e que estes cálculos ainda são mais elevados para determinados grupos sociais nos grandes centros citadinos (Barry, 1997, p. 301).
Com este conjunto de dados, existem pesquisas pormenorizadas relativa­mente aos conteúdos mostrados na televisão. Assim, num dia típico da semana (quinta-feira, 2 de Abril, 1992), em Washington, foi escolhido o programa dos dez canais de televisão com mais audiência, das seis horas da manhã até à meia-noite e foi analisado o seu conteúdo. O total das 180 horas de televisão incluíram 1846 atos de violência explícita, dos quais 751 com situações de ameaça de morte e 175 com desfecho de morte.
Não só as próprias cenas de violência como também o seu contexto deve ser classificado como maximamente desfavorável para o desenvolvimento das crianças. Uma avaliação de cenas de violência num conjunto de 2500 horas de programas de televisão evidenciou que o culpado não foi punido em 73% dos casos (Wilson e col, 1997, p. 141). Mais de metade (58%) de todos os atos de violência foram apresentados sem qualquer consequência negativa relativa­mente a danos. Apenas em 4% dos casos, foram mostradas alternati­vas de resolução do problema sem recurso à violência (Wilson e col., p. 128).
O comportamento das crianças também foi avaliado de muitas formas, em grupos de controle, tanto por meio de observação em situações naturais de jogo como também por meio de perguntas aos professores, crianças e jovens. Verificou-se que nesse período de dois anos, nas comunidades em que tinha sido introduzida a televisão, de acordo com observa­ções e questionários, o nível de agressão aumentou: a agressividade verbal duplicou, a agressividade física quase que triplicou (um resultado altamente significativo). Isto verificou-se tanto em rapazes como em raparigas, em todas os níveis etários. Verificou-se uma relação entre o tempo que as crianças e os jovens tinham passado a ver televisão e a disposição para a violência. Pelo contrário, o nível de violência em ambas as comunidades de controlo ficou igual (Joy e col., 1986).
Também existem consequências, a longo prazo, da violência na televisão. Os dados mais importantes resultam das pesquisas de Eron e Huesmann (1986), que orientaram um estudo prospectivo, a longo prazo, em 875 jovens num período total de 22 anos (!), desde 1960 até 1981.
Os referidos jovens, que na primeira pesquisa, aos 8 anos, viam muitas cenas de violência na televisão, foram catalogados pelos seus professores como tendo maior probabilidade de serem cruéis e agressivos. Estes mesmos jovens, aos 19 anos, tinham maior probabilidade de ter situações de conflito e, aos 30 anos, tinham também maior probabilidade de serem julgados por atos criminosos violentos ou exerciam violência contra cônjuges e filhos.
O estudo mostrou claramente que a quantidade de cenas de violência que as crianças de 8 anos tinham visto na televisão permitiam predizer a violência destas crianças quando adultas. Mostrou também o seu efeito nas gerações seguintes, no sentido em que os jovens que aos 8 anos já tinham visto mais violência na televisão tinham maior probabilidade de agredirem mais tarde os seus filhos.
Os resultados destes estudos são importantes. Contudo, a questão sobre se a violência na televisão conduz a mais violência na vida real não é possível de responder com os referidos estudos, porque podem sempre ser incluídos, a nível puramente teórico, outros fatores, que talvez tenham uma influência que não foram controlados. Contudo, estas pesquisas muito bem orientadas metodologicamente permitem estabelecer esta relação com segurança. Este é particularmente o caso, quando consultamos os resultados de estudos, que foram orientados com outros pressupostos metodológicos de fundamentação. Estas novas metodologias de pesquisa do conhecimento são, por um lado, experiências de laboratório e, por outro lado, os chamados estudos de campo. Apresentamos em seguida exemplos dos dois tipos de
Centerwall (1989a,b) pesquisou a relação entre a introdução da televisão e a frequência de homicídios na população branca dos EUA, no conjunto da população do Canadá (97% branca) e na população branca da África do Sul. Depois de se ter introduzido a televisão nos EUA e no Canadá, na década de 1950, verificou-se uma duplicação dos homicídios num período de 10-15 anos. Durante o mesmo período de tempo, o número de homicídios na África do Sul diminuiu em 7%. Depois da introdução da televisão neste país, no ano de 1975, os homicídios aumentaram, até 1987, 130%. O autor comenta:

«Se a televisão nunca tivesse sido introduzida, existiriam atualmente, nos EUA, anualmente, menos 10 000 homicídios, menos 70 000 violações e menos 700 000 delitos com ferimentos noutras pessoas.» (Centerwall, 1992, p. 3061, tradução do autor.)
Outro autor compara a fixação da mente no ecrã com uma meditação budista, cujo alvo fosse esvaziar o espírito e libertar as preocupações terrenas:

«Um texto [budista] diz-nos que... devemos meditar por meio da concentração num arco-íris. Os acontecimentos entre o acordar e o [à noite] tempo de televisão são as nossas preocupações terrenas. A televisão é o nosso arco-íris. A televisão induz em nós um estado que se parece muito com a qualidade da meditação. Por isso vemos muita televisão.» (Fowles, 1992, p. 244; tradução do autor.)

A citação torna claro que, apesar dos resultados contraditórios de abuso de violência resultantes da investigação empírica, até hoje é argumentado, de forma ainda não contestada, que há um efeito positivo da televisão no potencial de violência.

Dessensibilização

Quando os organismos estão permanentemente expostos a um determinado estímulo ou a uma determinada classe de estímulos, a reação a estes estímulos vai sempre diminuindo. Falamos de dessensibilização. Trata-se também de uma forma de aprendizagem. O fenômeno existe em diferentes espécies e é relativo a diferentes classes de estímulos, entre outros, também, para a pessoa e a vio­lência.
As investigações mostraram, respectivamente, que quem vê sempre filmes de violência reage menos fortemente às cenas de violência nesse filmes (Cline e col, 1973). O comportamento é generalizado do filme para a realidade (Thomas e col., 1977). A observação permanente da violência na televisão leva a que as formas de comportamento violento no espectador subam mais do que o normal. Não só a experiência e as reacções vegetativas mas também o comportamento da pessoa mudam de forma correspondente, tal como, em 1992, a Associação Americana de Psicologia (American Psychological Association, APA) colocou a questão. Em resumo: a observação de violência leva a comportamentos de embotamento e de indiferença face à violência.

Crianças em frente da televisão
Afirma-se muitas vezes que as crianças podem distinguir muito bem entre a realidade virtual e a real. Talvez possamos afirmar isto em relação às crianças mais velhas, mas não relativamente às mais pequenas, até aos 8 anos, que têm muitas dificuldades em distinguir a realidade da fantasia. Pesquisas americanas e canadianas, em crianças em idade escolar mostraram efeitos da aprendizagem tornam-se crônicos e permanecem até à idade adulta (Centerwall, 1992). Também as crianças mais velhas e, não menos importante, os adultos, podem aprender com as imagens televisivas como aprendem por meio de imagens reais.
A observação da violência é para nós um exercício de aprendizagem, tal como olhar borboletas ou folhas: quem já viu milhares delas, de fato já não as distingue, porque já conhece o processo. Para falar de violência na televisão, sejamos breves e pragmáticos: quem vê filmes de terror e de violência aprende horror e violência. A longo prazo, ele cruza-se, passo a passo, com o horror e a violência. Ainda mais: o aprendido influenciará o seu comportamento e, assim, a vida social na sociedade em geral.
Quem refere que as crianças e os jovens podem separar bem a televisão do mundo real, deve lembrar-se que também alguns adultos se transformam em atores, para responderem às questões da vida, não como espectadores, mas desempenhando na vida real os papéis que vêem na televisão - pai, médico, conselheiro - ou seja, personificando os papéis.

Conclusão: violência como poluição ambiente

É surpreendente que até hoje a relação entre violência na televisão e violência nas crianças seja contestada, cada vez mais, pelos jovens e mais tarde pelos adultos. Apesar da enorme controvérsia na discussão deste tema sensível, a reflexão dos métodos de investigação utilizados (e assim a fiabilidade dos resultados dos próprios estudos) é de grande significado. Podemos considerar, na perspectiva do design dos estudos, em princípio, três tipos de pesquisas diferentes: experiências de laboratório, estudos de campo e estudos em condi­ções naturais. Todos têm as suas vantagens e desvantagens.

Nas experiências de laboratório, em que um grupo via vídeos de violência entre crianças e o outro via vídeos sem violência, foi observado um claro efeito de aprendizagem de violência. Estas experiências apontam para razões-efeitos-relações entre a televisão e a violência, de forma clara. A desvantagem das experiências de laboratório são a «artificialidade» do setting, o que essencial­mente deveria conduzir a uma subavaliação do efeito real da televisão, pois em casa vê-se mais televisão do que no laboratório e no laboratório não são identificáveis os efeitos a longo prazo da televisão.

Nos estudos em condições naturais, foram pesquisados, por exemplo, os efeitos da introdução da televisão numa comunidade ou num país. Às vantagens das condições de um estudo em ambiente natural e prováveis grandes números de casos, opõe-se a desvantagem de não controlo de muitas condições de pesquisa.
Entre as experiências de laboratório e os estudos em ambiente natural, ficam os estudos de campo. Através de uma divisão aleatória de grupos, eles possuem uma melhor significância (através da eliminação de uma influência de seleção disjuntiva), do que os estudos em ambiente natural e, pela obser­vação no mundo real (vê-se televisão ou não; o comportamento é observado e avaliado nas condições normais de vida), a artificialidade do laboratório é evitada. Contudo, também os estudos de campo têm as suas desvantagens, pelo que todos se devem complementar reciprocamente. O método de labora­tório permite a precisão, olhar o comportamento ao microscópio; contrariamente aos estudos de campo e aos estudos em condições naturais, há uma correspondência entre os dados obtidos no laboratório e o mundo real.
Os resultados obtidos com os referidos métodos são claros: há uma relação manifesta entre a observação de violência na televisão e a violência no mundo real. O que é perverso nesta relação - à semelhança da relação entre o fumar e as doenças pulmonares - é o atraso de pelo menos um ano. Se a violência aumentar, já será muito tarde.
Na perspectiva neurobiológica, a violência fala de procedimentos instintivos de dedicação da atenção, embora as crianças não possam mostrar mais nada além destes conteúdos que deveriam ser eliminados. A neuroplasticidade do cérebro, fortemente impregnada na idade infantil, causa portanto a construção de representações correspondentes nos mapas corticais portadores de sentido a nível superior nos adolescentes, que precisamente desta forma ficam instala­dos para operar efetivamente nos comportamentos futuros.
Também é muito significativo que nos organismos em que estão instalados de forma permanente um determinado estímulo ou uma determinada classe de estímulos, a reacção emocional a esses estímulos vai decrescendo cada vez mais. Falamos de dessensibilização. O fenômeno é válido para diversas espécies e em diversas classes de estímulos, entre os quais também as pessoas e a violência. Os estudos empíricos podem mostrar: 1) quem vê continuamente filmes de violência reage menos às cenas de violência apresentadas nos filmes; 2) o com­portamento generaliza-se do filme para a realidade; 3) a permanente observação de violência na televisão leva a que as formas de comportamento violentas aumentem no observador mais do que o normal; 4) o comportamento da pessoa muda no mesmo sentido. Em resumo: a violência na televisão leva a uma funda­mentação da nossa disposição neurobiológica para mais violência no mundo.
O que se segue? Virá o tempo em que nós vamos ouvir negar sistematica­mente estas relações. Devemos compreender que a violência na televisão tem o mesmo valor na nossa sociedade, que, por exemplo, a poluição: se os compor­tamentos de produção abandonarem o mercado livre, sobrevive quem produzir mais barato, o que significa o mesmo que produzir da forma mais suja. Ninguém quer um ambiente poluído, mas sem vontades políticas de todos e sem regras adequadas, só sobreviverão no mercado aqueles que produzirem mais barato na opinião mundial. O mesmo se passará com o comportamento com os negócios de televisão, que vivem de contributos mundiais e são avaliados por quotas de audiência. A violência mostrada capta uma quota elevada de audiên­cias, o que leva a que, a longo prazo, só sobrevivam no mercado aqueles que chamam a atenção do espectador com esses meios.
Os países ocidentais industrializados tomaram conhecimento de que devem ser tomadas medidas sobre aspectos do meio ambiente - poluição ambiente, micropoeiras ou DDT - que têm efeitos complexos e a longo prazo, mas que podem controlar o nosso meio ambiente e, em última análise, a nossa vida. A continuidade da violência nos meios de comunicação, nos nossos mapas corticais não é - como acima indicado - menos dramática. Haverá tempo que nós teremos de refletir numa perspectiva de austeridade de alimentação visual-mental das nossas crianças, de uma forma séria. Não devemos minimizar o assunto.
E ainda o seguinte: quem, como reação aos 16 mortos de Erfurt em 26 de Abril de 2002, continua a utilizar armas, está errado. Facas de cozinha, navalhas ou aviões de passageiros não podem ser proibidos, e no entanto também podem ser utilizados, letalmente, como acontece com as pistolas e outras armas. De facto e de forma duradoura podemos lutar contra a violência quando oferecer­mos às pessoas uma perspectiva mais alargada de possibilidades de resolução de conflitos, certamente um material de aprendizagem muito melhor do que aquele que é fornecido pelos meios de comunicação.
A indústria (Hollywood, proprietários de redes televisivas, realizadores de programas, etc.) fala de autocontrole voluntário, da responsabilidade dos pais e afirma defender o direito de liberdade de opinião. Os próprios meios de comunicação disfarçam as circunstâncias e minimizam a miséria. Poucas semanas antes dos acontecimentos em Erfurt, a Focus (n.° 12; 18 de Março de 2002) publicou um artigo sob o tema: «As crianças devem ver televisão». Nele argumentava-se que as crianças que não veem televisão podem ser marginali­zadas nos grupos. Mas quando, como a academia pediátrica americana referiu, as crianças até aos 18 anos, nos EUA, já viram 200 000 atos de violência, só na televisão, talvez fosse melhor que todos nós fôssemos marginalizados!

Pos scriptum: jogos de computador - aprender pela ação

Há cerca de 25 anos, surgiram os videojogos como uma coisa inofensiva; jogávamos amigavelmente pingue pongue, Tetris ou Pacman. Isto alterou-se num período de apenas 10 anos, com o desenvolvimento sempre crescente do computador. Em 1993, durante a época do Natal, a festa da paz e do amor, apareceu à venda nas lojas um videojogo de violência muito realista, que foi um êxito de vendas. O herói não disparava apenas contra discos voadores virtuais; não, ele decapitava os seus inimigos e arrancava-lhes o coração do corpo. Em jogos como Mortal Kombat, a morte do inimigo é claramente o alvo. Como uma análise comparativa de 33 videojogos Nintendo e Sega evidenciou, temos conteúdos de aproximadamente 80% de violência e agressão, sendo 20% de conteúdos explícitos de violência contra mulheres (Dietz, 1998).
Ao contrário do número enorme de estudos empíricos relativos ao efeito de apresentação de violência na televisão, a literatura científica sobre jogos de computador e de vídeo ainda é muito vaga. Também aqui, na perspectiva dos jogos de computador é sempre alegado que - contrariamente ao que é verificado claramente sobre a televisão - «os jogos de vídeo podem ser úteis e podem ajudar a que as energias agressivas sejam reprimidas» (Emes, 1997, p. 413; tradução do autor).
Neste preciso cenário de fundo, a pesquisa descrita a seguir, de Anderson e Dill (2000), tem grande significado, pois ela mostra como uma das mais significativas formas de ocupação de tempos livres da nova geração funciona sobre o seu pensamento, sentimentos e comportamentos. Os autores referem que jogos repetidos de violência levam, a longo prazo, à aprendizagem de emoções, pensamentos e disposição para comportamentos correspondentes. Eles descrevem-nos como segue:
«Os efeitos a longo prazo da violência nos meios de comunicação são o resultado do desenvolvimento, da sobre aprendizagem e do fortalecimento de estruturas de conhecimento dos que exercem a agressão. [...] De cada vez que as pessoas jogam jogos de vídeo violentos, repetem programas de comporta­mento agressivo, que ensinam e intensificam a atenção contra o inimigo, no sentido de uma mudança perceptiva. Por vezes, aquilo que foi aprendido e intensificado transforma-se em ações agressivas contra os outros, expectativas de que outros actos agressivos sejam realizados e que a resolução de conflitos com recurso à violência seja significativa e eficaz. A exposição repetida a situações visuais de violência conduz em direção a um embotamento face à violência. A criação e automatização de estruturas de identificação com o agressor, tal como a dessensibilização, levam por fim a uma mudança de personalidade.» (Anderson e Dill, 2000, p. 774, tradução do autor.)
Os autores orientaram duas pesquisas com metodologias complementares diferentes. Numa primeira pesquisa, foi avaliada a relação entre violência e não violência no jogo de vídeo e uma série de variáveis - como irritabilidade, agressividade, delinquência, opinião subjetiva sobre criminalidade e segurança pessoal - numa sequência de estudo em 227 colegas estudantes (78 homens, 149 mulheres), com idades médias de 18,5 anos.
Verificou-se que 207 estudantes (91%) no momento da pesquisa jogavam videojogos no seu tempo livre, num tempo médio semanal de 2,14 horas. Este tempo foi menor do que durante a fase escolar, para os sujeitos a quem foi pedido o mesmo: eles jogavam 5,45 horas, durante a escola secundária: 3,69 horas no início e 2,68 horas no seu final. Entre os 20 não jogadores, estavam 18 mulheres. Os jogos classificados pêlos estudantes foram, aproximadamen­te, um quinto com violência expressa e um quinto com violência acentuada. O jogo com videojogos de violência foi correlacionado de forma significativa­mente positiva com a delinquência agressiva (r = 0,46) e com a delinquência não agressiva (r = 0,31), tal como com o traço de personalidade agressiva (r = = 0,22).
Também mostrou que o jogo com jogos de vídeo violentos se correlaciona de forma baixa e significativamente negativa com a produtividade no estudo (r = - 0,08) e que o tempo gasto com videojogos tem uma correlação negativa significativa (r = - 0,2). Tal como os estudos acima referidos sobre a violência na televisão, as correlações nada dizem sobre a causas. Pode acontecer que os delinquentes tendam para videojogos violentos (e não, pelo contrário, estes jogos induzam comportamentos delinquentes). Para pesquisar as ligações causais é preciso, como acima discutimos, estudos experimentais adequados.
Assim, os autores conduziram, em 210 estudantes do ensino superior (104 mulheres e 106 homens), a seguinte experiência. Homens e mulheres jogavam um videojogo violento (Wolfenstein 3D) ou um não violento (Myst). Foi tam­bém pesquisado em todos os sujeitos o seu fator de personalidade irritabilidade (alta versus baixa), tal como a existência anterior de comportamentos agressivos e ideias e sentimentos agressivos. O comportamento agressivo foi assim pesqui­sado em laboratório e os sujeitos jogadores podiam ajustar a duração e a intensi­dade de som de alarme na sala do jogador supostamente adversário, quando este tivesse supostamente perdido. Sob determinadas circunstâncias, este tempo aumentava sobretudo mais nos jogadores de jogos violentos. O pensamento agressivo foi medido com uma experiência de leitura de palavras, na qual foi medido o tempo de reação na leitura de um conjunto de 192 palavras de conteúdo neutro ou agressivo. Verificou-se uma diminuição altamente signifi­cativa do tempo de reação em palavras com conteúdo agressivo depois de jogar com jogos agressivos no sentido de um efeito de via de abertura. Nos estudos experimentais, verificamos assim efeitos de comportamento e cogni­tivos, que falam claramente sobre um efeito de exigência de videojogos agressivos para que surja uma disposição dos jogadores para a violência.
Há boas razões para aceitar que os videojogos têm efeitos sobre a disposição para a violência; que, no caso da televisão, são ainda mais claros. Assim, Stickgold e colaboradores (2000) descobriram que nos episódios de sono, depois de um jogo de vídeo prolongado (foi jogado o jogo Tetris, não agressivo), aumentavam as componentes pictóricas do jogo. Curiosamente, isto diz respeito não aos aspectos triviais do jogo, como, por exemplo, o ecrã de computador ou o teclado, mas sim às características visuais dos estímulos que eram relevantes para o jogo. Discutimos anteriormente as relações entre os episódios para as ocorrências de aprendizagem, para reativar o aprendido e para consolidar os vestígios de lembranças. Destas descobertas experimentais, devemos assumir que também os conteúdos dos videojogos «são trabalhados durante» o sono e assim são consolidados.
Quem ainda duvida que os videojogos podem ter consequências devastadoras, traduzi para eles o seguinte excerto do trabalho de Anderson e Dill (2000, p. 772), que talvez mostre, mais claramente do que as estatísticas, para onde pode conduzir a violência nos videojogos:


«Em 20 de Abril de 1999, Eric Harris e Dylan Klebold desencadearam um ataque de terror na Escola Columbus, em Littleton, Colorado: assassinaram 13 colegas e feriram 23, antes de apontar as armas a si próprios. Apesar de não ser possível termos a certeza do que levou estes adolescentes a atacar o seu profes­sor e os seus colegas de escola, há certamente vários factores envolvidos. Um desses factores são os videojogos violentos. Harris e Klebold gostavam muito de jogar o sangrento Doom, um jogo que foi licenciado e introduzido pêlos militares dos EUA para instruir os soldados para matarem os inimigos. Nos arquivos do centro Simon-Wiesenthal, uma instituição que tem como alvo os indícios de ódio e violência na Internet, foi encontrada uma cópia, no website de Harris, que continha uma versão formatada personalizada do jogo Doom. Nesta versão, havia dois soldados, carregados com armas extra e com um número ilimitado de munições, e inimigos que estavam indefesos. Como trabalho de projecto no âmbito do ensino, Harris e Klebold tinham produzido essa versão personalizada do Doom. Neste vídeo, Harris e Klebold usam gabardinas, estão armados e assassinam, colegas de escola. Menos de um ano depois, actualizaram na vida real esta simulação de vídeo. Como o investigador do Centro Wiesenthal disse, Harris e Klebold "jogaram o seu jogo na modalidade Deus".»

terça-feira, 27 de outubro de 2020

EVOLUÇÃO SIMBIOGÊNICA => O corpo humano não é perfeito

 

Gilson Lima

 



 

Uma significativa implicação da ideia de evolução é a da ruptura de que nosso corpo humano não é perfeito. Assim, como produtos históricos de interação entre natureza e recursos disponibilizados onde acontecemos, também não fomos projetados,  a priori, para funcionar durante muito tempo e agora estamos obrigando nosso corpo a continuar em atividade muito depois de expirada a sua data de validade.

O corpo humano tem grande beleza artística, mas, do ponto de vista da engenharia, é uma rede complexa de ossos, músculos, tendões, válvulas e articulações que tem uma analogia direta com as polias, bombas, alavancas e dobradiças das máquinas,... (todas  falíveis).

Uma das mais complicadas façanhas da evolução é o nossa conquista ontogenética de ficarmos sobre os dois pés. Nos tornamos imperiais no Planeta. Somos uma espécie única com tamanha complexidade e adaptabilidade fisiológica. Até hoje, um dos momentos mais significativos da aprendizagem de uma criança humana é quando ela, deixa de engatinhar e entre tentativas e erros aprende a ficar  sobre os dois pés: torna-se um bípede.

No entanto, ser bípede, mesmo para os modernos humanos (cerca de 200.000 anos atrás), não é da nossa natureza filogenética. É uma conquista ontogenética da nossa adaptação à natureza onde acontecemos, mas é também um problema.

Os humanos ficaram de pé e adaptaram a postura bípede ereta num projeto corporal complexo e somos os únicos entre os mamíferos (mesmo entre os primatas). Não há dúvida de que, ao ficarmos de pé sobre as patas traseiras, promovemos o uso de novos instrumentos, aumentando significativamente a nossa inteligência.

Porém, os complexos processos fisiológicos da caminhada bípede geram também uma série de problemas. Por exemplo, o andar humano.

Embora a gravidade ajude, uma rede intrincada de tendões nos ajuda a conectar os órgãos à coluna vertebral, impedindo-os de cair e de imprensar uns aos outros. Nossa coluna vertebral teve que sofrer algumas adaptações: as vértebras inferiores ficaram maiores para suportar a maior pressão vertical, e nossa coluna curvou-se um pouco para nos impedir de cair para a frente. No decorrer de um único dia, os discos da parte inferior das costas são submetidos a pressões equivalentes a várias toneladas por centímetro quadrado. Ao longo da vida, toda essa pressão cobra o seu tributo.

Muitas das enfermidades debilitantes e até fatais do envelhecimento decorrem em parte de nossa locomoção bípede e da postura ereta. Cada passo que damos coloca uma pressão extraordinária em nossos pés, tornozelos, joelhos e costas – as estruturas que sustentam o peso de todo o corpo acima delas.

No decorrer de um único dia, os discos da parte inferior das costas são submetidos a pressões equivalentes a várias toneladas por centímetro quadrado. Ao longo da vida, toda essa pressão cobra o seu tributo, assim como o uso repetitivo de nossas articulações e o esforço constante que a gravidade impõe a nossos tecidos.

Quando jovens, nem sentimos suas imperfeições e, com o tempo, desgastamo-nos e de alguma outra forma os problemas de saúde se tornam mais comuns. A questão é como não ter tantos defeitos que nos deixarão ou nos deixam relativamente incapazes em nossos últimos anos. Nossa espécie está envelhecendo a passos rápidos e colocando novos desafios conquistados pelo conhecimento da própria teia da vida.

Com a conquista do envelhecimento, as doenças não podem ser evitadas apenas com pequenas orientações de comportamento, mas precisamos, então, de um novo design de cooperação corporal. Nossos corpos não foram projetados para durarem muito mais do que algumas poucas décadas. A vida é um sistema aberto e que acontece num ambiente adequado a receber e manter a vida, mas um rearranjo simples pode resolver problemas, mas criar outros.

Na verdade, muitos fornecedores de juventude em receitas gostariam de nos fazer acreditar que os problemas médicos associados ao envelhecimento são culpa nossa, decorrentes principalmente de nosso modo de vida decadente.

É claro que qualquer pessoa pode diminuir a duração de sua vida por comportamentos sedentários, má alimentação, fumo,..., mas isso por si não é suficiente.

Nenhuma intervenção simples compensaria as inúmeras imperfeições espalhadas por toda a nossa anatomia. As ciências da vida, ao alterarem suas concepções não simbióticas da natureza vital, vão conquistar rapidamente avanços incríveis que vão compensar muitos dos defeitos de concepção contidos em todos nós.

Pensemos no olho e no ouvido. A versão humana da visão é uma maravilha evolutiva. Com a idade, nossa visão diminui à medida que o líquido protetor da córnea vai perdendo a transparência, os músculos que controlam a abertura da íris e a focalização das lentes atrofiam-se, a lente engrossa e amarela, reduz nossa precisão visual e a percepção das cores.

Algumas modificações anatômicas podem ajudar muito, e podemos manter com alterações tecnológicas a preservação da audição dos idosos. Podemos também criar sistemas mais precisos de visão e de audição que dos humanos médios.

Se os seres humanos tivessem sido feitos para durar mais, seríamos diferentes.
Para vivermos mais tempo, estamos cofabricando um corpo simbiótico distinto dos que a natureza nos desenhou com seus discos abaulados, ossos frágeis, quadris fraturados, ligamentos rompidos, veias varicosas, catarata, perda da audição, hérnias e hemorroidas: a lista das mazelas corporais que nos afligem à medida que envelhecemos é longa e muito familiar.

Estamos nos dirigindo para a emergência de uma nova espécie simbiótica altamente duradoura com partículas minúsculas dedicadas totalmente aos bilhões de esforços jeitosos e cooperativos necessários para nos manter intactos e que nos farão experimentar um estranhamento sobre o que conhecemos como existência ou sobre o que é o real movido pela nossa atual singularidade humana.

Se informação não é conhecimento, e se conhecimento não é sinônimo de sabedoria, não é preciso lembrar que essas conquistas geram riscos, desafios éticos e sociais imensos que julgamos não estarmos, ainda, à altura de enfrentá-los.

Temos, cada vez mais uma compreensão da importância da simbiogênese, não apenas a demonstrada nas nossas interações com os micro organismos (Margulis,xxx),  mas um borramento amplo de fronteiras entre o mundo físico, social e biológico, que, há décadas, Michel Foucault demonstrou com a emergência do biopoder, da transubstancialização do poder-corpo para o poder-vida.

Nossa hipótese da simbiogênêse social é que estamos – como espécie -  borrando uma passagem evolutiva da era simbiótica e não parabiótica.  Meus projetos de pesquisa acadêmicos ou industriais que coordenei com equipes interdisciplinares operados sempre em simbiose com as redes sociais são experimentais e demonstrativos e integram também o esforço de sistematização da Teoria Biossocial da Simbiogênese com as tecnologias assistivas e de assistência à vida[1].  

No lugar de transformar o mundo nós vamos agora mudar o próprio ser em evolução. Como disse antes: não somos humanos, estamos ainda apenas humanos, mas o futuro duradouro é do simbiótico e estamos a caminhos acelerados nessa direção. Caminhamos aceleradamente, com a manipulação molecular, para a saída da era neolítica, em que logramos a tarefa de dominar nosso ambiente, para uma nova era da programação simbiótica. As nossas próximas tarefas serão o domínio de nosso próprio corpo e dos organismos vivos em geral.

Nessa nova era de uma evolução borrada entre os recursos orgânicos e os inorgânicos em cooperação com a vida estaremos transferindo para as criaturas vivas e para as máquinas ou para matérias inorgânicas parte das suas propriedades singulares, um borramento de uma nova ecologia simbiótica. Isso já está demonstrado. Por exemplo, o marca-passo tem sido utilizado com sucesso na medicina desde 1958. Hoje, a taxa anual é da ordem de 400.000 implantes. Hoje, a taxa anual é da ordem de 400.000 implantes (KEMPF, 1998).[2]

Outros dispositivos, já foram demonstrados em diferentes experimentos e estão sendo também implantados no corpo humano ao largo dos últimos anos. Por exemplo, eletrodos para fazer conexão elétrica à espinha dorsal, de modo a estimular órgãos paralisados (utilizado em Larry Flynt, o famoso editor da revista pornográfica Hustler, para recuperar sua virilidade, após uma tentativa de assassinato que o deixou paraplégico) e o incrível implante de olhos artificiais (na verdade, câmeras CCD ligadas a processadores de imagens) para os cegos, projeto desenvolvido pelos oftalmologistas norte-americanos John Wyatt e Joseph Rizzo. (LIMA, 2005)[3]

A vida tecnologicamente inteligente está constituindo uma potente beta natureza (seca, inorgânica) e gerando um novo recurso simbiótico com a alfa natureza (úmida e orgânica). São exatamente os recursos da ciência e da tecnologia modelados por uma sociedade do conhecimento que estão nos impelindo para entrar numa nova era da evolução. Estamos iniciando a embarcação de uma nova era simbiótica. (LIMA, 2005)[4]

Nossa indicação final é que não vivemos apenas uma nova convergência neurodigital ou uma nova emergência do pós-humano, ou pós-evolutiva, ao contrário, estamos deixando para trás o humano demasiadamente humano e emergindo novos seres simbióticos modelados por uma aceleração envolta de uma evolução simbiótica, uma evolução geradora de seres bióticos mais duradouros numa nova ecologia simbiótica, mais recursiva, ou seja, com novos e potentes recursos e sentidos parabióticos.

Nos últimos anos, artistas como Stelarc [5] se dedicaram à discussão cultural e política da possibilidade de ultrapassar o humano através de radicais intervenções cirúrgicas, de interfaces entre a carne e a eletrônica, ou ainda de próteses robóticas para complementar ou expandir as potencialidades do corpo biológico. Mais que apenas antecipar profundas mudanças em nossa percepção, em nossa concepção de mundo e na reorganização de nossos sistemas sociopolíticos, esses pioneiros anteciparam transformações fundamentais em nossa própria espécie. Essas transformações poderão inclusive alterar nosso código genético e reorientar o processo darwiniano de evolução.

[1] Para saber, alguns dos projetos mais conhecidos: 1. Redescoberta da Mente na Educação (Pós graduação em reabilitação e inclusão); 2) Projeto de Pesquisa Simbiogênese aplicada em processo de reabilitação. reabilitação sócio-educacional interdisciplinar. Coordenadores: Dr. Gilson Lima, 2009, 3) Projeto CNPQ – Processo Número: 400750/2009. Coordenador: Dr. Gilson Lima. 4) Relatório projeto 400750 A broad interdisciplinary convergence of knowledge for rehabilitation and inclusive education: a case study, 2011; 5) Coordenação do experimento de Exoesqueleto Muscular – não robótico: Demonstração do record de caminhada plana e com apoio de andador por um paraplégico acoplado num exoesqueleto muscular (Tutor Argo 1979) em Porto Alegre, 2009. Foram quinhentos e doze passos sequenciais. Vide: http://glolima.blogspot.com.br/2011/07/exoesqueleto-para-alem-da-cadeira-de.html 3)Produção e exposição em Feira Hospitalar de um KIT de inclusão digital integrado à uma cadeira postural para usuários tetraplégicos com lesão neural severa com programas gratuitos e livres distribuídos pela rede e – alguns com mais dezenas de milhares de downloads pelo mundo inteiro (São Paulo, 2012, 2013).

[2] KEMPF, Hervé. La Révolution Biolithique: Humains Artificiels et Machines Animées. Paris: Albin Michel, 1998. 

[3] LIMA, Gilson. Nômades de pedra: teoria da sociedade simbiogênica contada em prosas. Porto Alegre: Escritos, 2005.

[4] LIMA, Gilson. Nômades de pedra: teoria da sociedade simbiogênica contada em prosas. Porto Alegre: Escritos, 2005.