1. Gilson Lima. Doutor em Sociologia das Ciências. Professor e Cientista Sênior. Pesquisador do Research Committee Logic & Methodology and at the Research Committee of the Clinical Sociology Association International Sociological (ISA).
E-mail: gilima@gmail.comBlog: http://glolima.blogspot.com
BRASIL: Aquém do público além do privado
Esse texto foi produzido em 1994. Gostaria de esclarecer que o título desse artigo, foi retirado literalmente de um suplemento publicado em 31 de maio de 1992 na Folha de São Paulo. Também, algumas pequenas passagens desenvolvidas na primeira parte e na conclusão foram inspiradas num pequeno texto de Renato Janine Ribeiro que se encontra publicado naquele suplemento.
Esse texto foi produzido em 1994. Gostaria de esclarecer que o título desse artigo, foi retirado literalmente de um suplemento publicado em 31 de maio de 1992 na Folha de São Paulo. Também, algumas pequenas passagens desenvolvidas na primeira parte e na conclusão foram inspiradas num pequeno texto de Renato Janine Ribeiro que se encontra publicado naquele suplemento.
Este texto aborda a complexa relação entre a esfera pública e a esfera privada, inserida na formação social, econômica e cultural brasileira..
Desenvolvemos o tema do seguinte modo:
1º.) Esboçando alguns elementos conceituais que marcam esta tensão a do público com o privado e, sempre que possível, situando-os em alguns autores que estudaram estes dilemas conceituais na história política do Brasil;
2º ) após este panorama geral, ainda que telegráfico, discorrendo sobre a figura pública do coronel ou, mais precisamente, quando o coronel se torna o próprio público;
3º.) questionando algumas "soluções" instrumentais da esfera pública, embutidas muitas vezes de progressistas e de esquerda, que fundiram mecanicamente o público no próprio Estado, uma fixação, no mínimo, criticável;
4º.) elaborando uma pequena conclusão.
Esta temática é extremamente complexa e muito pouco consensual; por isso, este texto não poderia ir além de uma rápida e pequena incursão sobre suas implicações.
1. QUAL PÚBLICO E QUE PRIVADO? Uma pequena incursão sobre a idéia de público e de privado na literatura política brasileira.
É o público uma esfera? Uma esfera pública? Sobre qual conceito se constitui essa esfera? Pensemos num espaço? Se é um espaço, sob que regras constitui a sua ocupação? Estas regras dizem respeito a que atores? A que meios tecnológicos utilizados? Exclui-se alguns? Poucos? Muitos? Quase todos? Que público participa do público?
Tratam-se de várias perguntas, e respondê-las não é uma tarefa fácil. A palavra público é geralmente associada a um espetáculo. De um lado existe os atores e de outro o público. O enredo do espetáculo pode ter um ou mais de um autor. O público, de modo geral, não é obrigado compulsoriamente a assistir ao espetáculo, é? Para se ter acesso como público a um espetáculo, temos muitas vezes que pagar ingresso; raramente um bom espetáculo, com bons atores é de graça.
Nessa pequena caricatura, já temos alguns problemas na constituição de um espetáculo. De um lado existem os atores, de outro lado o público. O público movido por um determinado interesse pode ser no máximo um bom espectador, atento? Apenas passivo em relação a trama que engendra o espetáculo? Os atores desenvolvem um roteiro que pode possuir um ou mais autores. Nessa caricatura há claramente uma dissociação entre autor e ator. Nesse espetáculo específico, o autor se comunica com o público indiretamente através dos atores que traduzem a sua criação. Para dar lógica e beleza ao espetáculo, existem vários suplementos (luzes, cenários, etc.). Há, também, uma organização que dá suporte ao espetáculo. Temos a figura do diretor, como um gerente capaz de dar eficácia na relação da criação do autor com o público através da trama desenvolvida pelos atores. Também temos a figura dos semi-artistas (maquiadores, estilistas, elaboradores de cenários e de figurinos); ainda temos os trabalhadores braçais, construtores de cenários, carregadores, responsáveis pela limpeza, pela portaria, pela bilheteria, etc. Isso demonstra que na construção de um espetáculo existe uma rede diferenciada de interesses e uma intrincada divisão de trabalho.
A partir dessas indagações em tom irônico, podemos penetrar um pouco nessa complicada problemática e heterogênea rede de relações entre a esfera pública e a esfera privada, pegando uma carona com alguns estudiosos da história política brasileira que se dispuseram a enfrentar o tema.
Uma associação geralmente muito utilizada na noção de público é a sua contraposição ao privado. Assim, temos que o privado que é o que é meu, o que está sob a minha inteira governabilidade individual; para alguns, essa governabilidade pode estar implicada com a extensão limitada do eu para a perspectiva do que é "minha" família, "minhas" propriedades, “meus e minhas” amigas, minha corporação 2.
2. Nesse sentido, se sou um grande proprietário de terras, o público não poderá ser a construção de um poder comum entre todos os proprietários de terras que tenha por objetivo garantir que as minhas propriedades continuem sendo minhas?
2. Nesse sentido, se sou um grande proprietário de terras, o público não poderá ser a construção de um poder comum entre todos os proprietários de terras que tenha por objetivo garantir que as minhas propriedades continuem sendo minhas?
Portanto, numa sociedade com vários e diferentes privados, o poder público não poderá atender apenas uma pequena parcela privada de interesses. A construção de um poder público numa rede complexa de interesses privados seria bem mais extensiva do que uma espécie de sindicato de proprietários de terras por exemplo.
É essa questão que encontramos em Duarte (1965) quando esse autor constata a privatização da organização política nacional, mesmo que não venhamos a concordar com algumas de suas conclusões.
Dentro dessa mesma lógica, quando uma determinada parcela de atores buscam associar seus interesses particulares com o interesse público, universalizando para todos os valores, a cultura e os interesses particulares que são apenas seus, temos uma absoluta substituição do público pelo privado. Nessa abordagem, o público é um espaço onde quem participa é ao mesmo tempo ator e público . Perguntaríamos então: quem dará o suporte organizacional e os meios para realização deste espaço público? A não ser que não exista mais a esfera privada e que toda ela tenha se fundido na esfera pública, onde o público como um não-privado deixou de existir, não necessitaríamos de um suporte organizacional para sua realização.
Aqui podemos inserir a preocupação teórica de Faoro (1991) quando afirma que, por decorrências históricas e culturais que se originam na especificidade da formação social portuguesa colonizadora, um estamento burocrático no Brasil privatizou o poder e determina as regras, convida quem quer para os espetáculos, ele é o dono do poder público.
É possível um espaço público neutro capaz de possibilitar o trânsito de todos os interesses particulares e conflituosos? Os responsáveis pela construção e execução desta esfera pública não estão também sujeitos a interesses particulares e, neste sentido, não teria Faoro uma boa dose de razão?
Um outro ângulo de ver a questão, que pode ser levantado, é o de existirem duas posições que diversos autores assumem quando abordam a problemática da relação entre público e privado. A primeira é a de ver o público como uma simples extensão do privado. A segunda, geralmente a mais abordada, é a de existir um corte, uma ruptura no espaço público em relação ao espaço privado, tendo este espaço público autonomia e regras próprias. Essa segunda posição é bem presente em Diniz e Boschi (1991) e também, está muito clara nas abordagens teóricas das elites ou de circulação de elites no poder público, principalmente em Carvalho (1980), sobretudo em seu brilhante trabalho "A Construção da Ordem".
Outra abordagem geralmente utilizada nesta questão da problematização do público com o privado e que me parece importante ressaltar é a perspectiva, muitas vezes heurística, marcada pela lógica da construção de uma esfera pública como projeção teórica e não-histórica concreta. Neste sentido, o público ou a esfera pública torna-se para muitos um dever ser daquilo que concretamente não existe - uma projeção finalística. A questão passa pela simples explicação de que a esfera pública é um recurso heurístico para a construção crítica de uma realidade limitante. Muitos autores passam a considerar a esfera pública como dada: ela é simplesmente pública; portanto, não necessita de maiores explicações. A partir daí, discorrem pela não-realização concreta e histórica daquela esfera pública que já está dada heuristicamente e cuja única coisa da qual conhecemos é a sua não-realização histórica perfeita.
Outro aspecto a ressaltar é que para alguns autores que enfrentam esta temática com diferentes nuanças, a realização do público passa pela construção de uma racionalidade universal. Estes autores estão influenciados pelas posições de Weber, na relação com a criação de mecanismos racionais e impessoais para procedimentos e regras a serem executadas por uma burocracia moderna. Para esses autores, a crítica das manifestações privatistas da esfera pública no Brasil se dá pela ausência ou não desta burocracia moderna capaz de superar o patrimonialismo, o coronelismo, etc. Esta perspectiva marca muito a obra de Uricoechea (O Minotauro Imperial, 1978), bem como, a análise de Faoro (1991) que discorre sobre a incapacidade universal do estamento burocrático.
Na complexa relação entre o privado e o público encontramos posições de autores que discorrem sobre a incapacidade da realização de uma ordem burguesa e liberal no Brasil. Esta questão está presente nos textos de Santos (1978) e do próprio Carvalho (1991), onde se encontra implicitamente, e também no texto de Diniz e Boschi (1991).
Outro aspecto fundamental a ser considerado é a relação da construção da esfera pública com as complexidades regionais desenvolvidas mais explicitamente por Schwartzman (1975).
Essas são algumas tensões fundamentais na abordagem do problema trabalhadas por alguns autores na história política brasileira.
Por fim, cabe lembrar que existem outros autores que desenvolvem importantes questões sobre a construção de uma esfera pública no Brasil como: a construção do espaço público e a sua relação com a construção nacional ou mais precisamente com a própria construção da nação brasileira, questão essa desenvolvida por Oliveira (1990); a posição dos comunistas no Brasil na tentativa da "conquista" do poder público, ainda que marcada por um determinado período histórico, trabalhada por Pinheiro (1991); os aspectos culturais do homem cordial brasileiro levantados por Holanda (1963); a questão democrática na relação com a construção da esfera pública, desenvolvida em vários textos da historiografia política do Brasil que trabalharam temas como representação partidária, liberalismo político no Brasil e outros. De fato, as questões que abarcam esta temática são tantas que se faz necessário hierarquizar algumas delas para podermos desenvolvê-las. O importante é termos claro de qual público e de qual privado estamos nos referindo e sobretudo estarmos atento para a heterogeneidade de abordagens conceituais que envolvem esta temática.
O fato de ter sido através de um título militar, "O Coronel", a vinculação de um chefe político de uma determinada comuna local com o governo do Império é um gesto significativamente marcante. O coronel é um posto da hierarquia militar. A criação da esfera pública a nível local surge sob a marca da coerção militarizada, do medo da autonomia e da soberania popular do local perante a fragmentação do território nacional. Um coronel nomeado pela Guarda Nacional não podia ser preso e sujeito a um processo criminal. Surge uma figura pública acima dos mortais comuns sem, entretanto, a delegação dos mortais do local. O coronel é, no local, representante da unificação do Império. O coronel não era qualquer um do povo, era geralmente um grande e próspero fazendeiro ou um grande comerciante conhecido como o "dono do local". A posterior extinção formal da figura do coronel fardado vinculado à Guarda Nacional não impediu a continuidade do que os analistas políticos denominam de coronelismo nas atividades políticas e sobretudo partidárias existentes até hoje em algumas regiões rurais do país.
O coronel político era, também, um coronel patriarcal na sua fazenda. Era assim chamado pela sua família e seus empregados. A atividade pública do coronel se dava onde ele se encontrasse, independente de um cenário específico. O título não era concebido de forma temporária: um coronel não tinha mandato. Enquanto fosse senhor do local, continuaria a ser um coronel.
Estar próximo do coronel era estar próximo do poder. O coronel não era e não significava apenas armas e coerção; era, padrinho de batismo ou de casamento de diversos subalternos e era também um protetor da prole. Seu vínculo com um poder central e distante significava o acesso a benfeitorias. O acesso ao poder central não era para qualquer um: era necessário ter prestígio e para obtê-lo era preciso força econômica e militar.
Uma importante questão é levantada por Leal (1976) sobre o coronelismo e seu impacto frente a autonomia municipal. O coronelismo acaba por ser uma negação da autonomia municipal e uma afirmação da fazenda do coronel.
O município, a cidade geradora da cidadania clássica do liberalismo, tem um aspecto meramente assessório à fazenda, ao latifúndio.
Também a questão regional será muito marcada pelo fenômeno do coronelismo. O Estado não se constitui de uma rede de municípios autônomos, mas de uma rede de coronéis influentes em determinadas localidades. Este vínculo determinará, segundo o autor, conseqüências desastrosas na conquista da autonomia municipal, sempre dependente das concessões estaduais ou do governo central. As relações políticas com as outras esferas governamentais sempre dependerão da vinculação do coronel da localidade com esta rede de patriarcas. As divergências de coronéis entre si serão mais marcantes do que suas posições ideológicas e políticas.
Em relação ao poder político centralizado do Império, Carvalho (1980), dentro de sua lógica teórica das elites, defenderá, de forma provocadora, que o bacharelismo, geralmente cursado por filhos de velhos coronéis nas Universidades de Coimbra e seus anexos tupiniquins, permitirá formar uma elite imperial pública de funcionários e carreiristas políticos mais elegantes e fortemente marcados por uma homogeneidade ideológica.
Esta elite política do poder central tem, para Carvalho (1980), uma lógica própria e não se confunde com a figura do velho coronel, ou seja, esta elite não se movimenta pelo simples reflexo dos interesses dos latifundiários. Carvalho está imbuído da perspectiva de uma esfera pública autônoma em relação ao privado, sendo que as elites políticas são apenas influenciadas pelos interesses dominantes, porém possuem uma reserva de poder específico para impor suas determinações.
Dentro desta posição, podemos concluir que o coronelismo seria muito mais uma marca específica do localismo político, apenas capaz de reproduzir no local a unidade do Governo Imperial. Carvalho (1980) poderia ir um pouco mais devagar nas suas afirmações.
Tudo bem, não podemos reduzir a "ordem pública" a um reflexo do poder econômico dos coronéis. Porém, não era esta mesma elite bacharelada filhos de coronéis? Passaram ou não pela formação patriarcal do coronel? Tiveram seus estudos sustentados pelos coronéis? Não seria, entretanto, necessário irmos com mais cautela na afirmação deste projeto próprio e autônomo (ainda que dependente) da elite letrada frente aos interesses dos coronéis?
Não é possível reduzir simplesmente o Estado Imperial a um escritório de negócios dos latifundiários. é necessário atentar mais para as questões que impediram uma relação maior da autonomia dos municípios com outras esferas mais centralizadas do poder governamental, bem como desenvolver um pouco mais a especificidade da relação da cidade com a fazenda e da escravidão com a cidade para melhor clarificar estas questões (todos estes aspectos, logicamente, não poderão ser desenvolvidos aqui).
Leal (1976) nos dá uma série de pistas, mas é importante, também, desenvolver os aspectos específicos de cada região do país para melhor compreender uma heterogeneidade na constituição da figura pública do coronel. Nisso Leal deixa a desejar e é preciso recorrer a Schwartzman (1975).
Segundo Schwartzman, podemos dividir o país em quatro grandes regiões:
1ª.) Uma região mais moderna, que sediou os governos centrais (em Salvador e Rio de Janeiro), onde ocorreu um contato mais direto com a Europa, sobretudo no Rio de Janeiro a partir da transferência de toda a Corte Portuguesa para o Rio;
2ª.) Minas Gerais e o Nordeste decadente: o tradicionalismo, para o autor, tem muito mais a ver com áreas que experimentaram um progresso no passado sofrendo depois um brusco declínio. É o caso do Nordeste com a cana-de-açúcar e de Minas Gerais com o apogeu e a queda do ciclo do ouro.
Minas Gerais, esgotado o ciclo da mineração, ficou uma província com a maior população da época, sem a atividade econômica de alta lucratividade experimentada. Porém, a tradição da estrutura burocrática da administração portuguesa ficou, o que, segundo o autor, é o berço da vocação política de Minas Gerais.
3ª) São Paulo: foge da regra geral. O núcleo de colonização se voltou da costa marítima para o interior, sempre com maior independência da administração centralizada. Em 1940, São Paulo já é o Estado mais populoso, a principal fonte de arrecadação de impostos do governo central e o maior foco de industrialização do país. Entretanto, politicamente, sempre desempenhou um papel inferior ao seu peso econômico e populacional.
4ª) Rio Grande do Sul: num paradoxo totalmente diferente de São Paulo, esta região sempre desempenhou importante papel na política nacional, desde o fim do século XIX. Desproporcional, inclusive, ao seu peso econômico. No Rio Grande do Sul, ao contrário, ocorreu um compromisso da tradição política com a estagnação econômica.
Região muito influenciada pela sua geopolítica de fronteira, onde a questão militar teve um peso preponderante, resultou numa mescla muito grande entre política e militarismo. O Rio Grande do Sul era na colônia uma espécie de posto militar de fronteira. Foi nesta região que surgiu intensamente o positivismo vinculado à tradição militar e vinculado também à forte oligarquia estadual. A região forneceu importantes quadros ao exército nacional. Desde a criação do Partido Republicano, o Rio Grande do Sul desempenhou um papel político importante no país e esteve muito presente nos momentos mais marcantes da política brasileira (na derrubada do Império, em 1930 com Vargas; em 1961 com Goulart, sem falar em nomes como Costa e Silva, Médici, Geisel, etc.).
Apesar de economicamente a imigração européia ser muito marcante no Estado, foi a tradição militar, caudilhista, "revolucionária" e oligárquica que desempenhou um papel preponderante na política do Estado a nível nacional.
Sempre chamou muita atenção a especificidade do coronel gaúcho. Latifundiário e corajoso conquistador militar, envolvido religiosamente numa disciplina partidária, características que até hoje marcam profundamente a cultura política da região.
O coronel como expressão e realização do público constitui marca histórica profunda na construção da esfera pública brasileira. Primeiro, porque o coronel é o dono, o pai, o proprietário e protetor do público. Segundo, porque é pela pessoa, pela personalidade, pela influência pessoal do coronel que o público se realiza. Terceiro, é que a realização do público, além de ser restrita à figura do coronel, está também muito marcada pela perspectiva da coerção militar. O nosso estadista já nasce fardado; não é um general, porém não é um soldado, é um coronel, tem suas armas, suas condecorações e seu pequeno exército de subalternos. O coronel não é uma figura do povo, não é qualquer um. Para ele a lei não vale; vale a sua vontade privada. O coronel é coronel sempre, mesmo quando está de pijama dormindo em sua fazenda. É uma figura pública permanente e sem mandato, sem delegação popular, mas delegado por um poder central inatingível aos simples mortais. Isso tudo já seria suficientemente importante para, no mínimo, considerar as especificidades marcantes na formação do "público" tupiniquim. Um "público" constituído historicamente e não heuristicamente como pretendem alguns.
3. QUANDO O ESTADO É O PÚBLICO
Um dos trabalhos mais criativos da política brasileira é a obra de José Murilo de Carvalho (1991), " Os Bestializados ".
A ideia de Aristides Lobo (apud Carvalho, 1991) de que o povo assistiu bestializado Proclamação da República (como se fosse uma parada militar da qual ninguém sabia o que estava acontecendo), ideia que Carvalho (1991) questiona, é significativa para desenvolvermos uma reflexão.
A noção de que a sociedade civil é composta por bestas incapazes de um autogoverno está muito presente na cultura política brasileira.
A decorrência deste fato é a necessidade de uma elite civilizada no Estado que tem como missão histórica salvar e civilizar o país. O Estado passa a ser um ente, que por imanência é progressista, e moderno pela sua própria natureza.
A social democracia viu no Estado um espaço com possibilidade de realizar uma condensação de forças capaz de fundir o social no próprio Estado. Neste sentido, a questão social era uma questão do Estado. Porém, esta condensação de forças é produto de uma tríade pactualizada com um forte sindicalismo nacional, de agentes econômicos oligopolizados e de uma burocracia estatal centralizada e competente o suficiente para dar "funcionalidade" e socializar os ganhos do processo de industrialização, entretanto, sem ferir os interesses que pudessem decompor este pacto.
No Brasil, certamente isto não ocorreu. O Estado foi um dos motores fundamentais de realização de uma infraestrutura industrial. A velha noção planificadora onde existe um Estado que é sujeito e uma sociedade que é objeto implicou uma relação autoritária com a sociedade civil.
Muito do viés do estatismo autoritário da cultura comunista e socialista vem desta lógica imanente e progressista do Estado, a ponto de muitas vezes querer reduzir a estratégia política do socialismo a um simples ataque frontal ao Estado, para impor um novo perfil no processo político do país.
A conseqüência desta lógica é a criação ilusória de uma racionalidade anticapitalista do Estado brasileiro, como se este fosse uma realização do não-mercado, capaz de impor um controle total e absoluto ao "desenvolvimento moderno" frente ao arcaísmo vigente no país. Uma "racionalidade" capaz de impor, regular e tutelar a sociedade civil. Esta lógica, marcou profundamente a formação cultural do projeto de modernização industrial e inclusive a cultura política socialista do país.
Esta fusão mecânica do público no Estado permite indagar se a solução autoritária da esfera pública no Brasil não é muito mais uma consequência da ausência de uma sólida cultura democrática no país.
Neste sentido, o trabalho de Wanderley Guilherme dos Santos é profundamente original. O autor, indagando sobre o período de crise do governo Goulart comenta: "(...) os objetivos visados pela nova versão do autoritarismo instrumental eram a intervenção do Estado, o nacionalismo e o maior avanço possível em direção ao socialismo." (Santos, 1978. p 107) (grifos do autor do trabalho)
No Brasil, até mesmo para ser democrata, era necessário instaurar um regime político autoritário. Segundo os princípios dos liberais doutrinários, mas também para os socialistas autoritários, um regime forte seria um instrumento da modernização para uns e a consolidação da democracia política para outros, porém num indeterminado futuro próximo. O conceito de Santos (1978), do autoritarismo instrumental, marca a predominância de uma racionalidade que separa meios de fins, que normatiza impositivamente os conflitos sociais e que impede a construção de uma esfera pública democrática no país.
Apesar disto, discordamos do autor quando diz: " constituiria grosseira simplificação supor que a burocracia pública está aí para abandonar-se a dinâmica do privatismo" (Santos, 1978. p 116). E diz ser: "improvável que a visão estritamente capitalista venha se impor monoliticamente" (Santos, 1978. p 116). Também discordamos de Carvalho (1980) quando defende a impossibilidade de a elite política (mesmo a imperial) ser um mero reflexo dos interesses econômicos. É necessário proceder com maior cautela sobre estas afirmações. Não cremos ser a burocracia ou a "elite" no Estado um ator com tanta autonomia assim. Longe de considerar o Estado um simples escritório gestor dos interesses privados, devemos nos conduzir sobre esta vinculação com pressupostos mais convincentes em relação a essa autonomia do corporativismo estatal.
Quais seriam estes pressupostos? Desenvolvê-los não é tarefa fácil. As pistas dadas por Diniz e Boschi (1981) permitem afirmar que o corporativismo estatal tem uma autonomia muito mais relativa do que se supõe, e suas decisões são processos de pressões estruturados em conflitos existentes na sociedade brasileira. O modo através do qual os canais se encontram fechados para os trabalhadores e, sobretudo, para amplas parcelas de uma economia clandestina e subterrânea impôs uma institucionalização do público que consagrou o que os autores chamam de "desigualdade estrutural" no acesso dos processos de tomada de decisões "públicas".
A própria articulação direta entre os interesses do corporativismo estatal com a sociedade civil impossibilitou e fragilizou as mediações intermediárias que seria, segundo os autores, um papel a ser realizado pelos partidos políticos. Discordamos dessa afirmação, entretanto pensamos que podemos seguir as pistas de Diniz e Boschi (1981) que elas poderão levar-nos a algumas novas revelações e distanciarmos em relação às proposições de Santos sobre a burocracia estatal e de Carvalho sobre a elite imperial, mesmo que Carvalho (1980) e Diniz e Boschi estejam tratando de períodos distintos, historicamente determinados.
Retornemos a Nestor Duarte. Não pretendemos simplificar a inexistência de uma esfera pública no país apenas pela confusão do público com o privado, porém esta esfera pública no Brasil sempre foi um espetáculo onde participava ativamente um público muito reduzido. Neste sentido, as preocupações de Duarte (1965) são importantes, não pelo fato de universalizarmos simplificadamente o patrimonialismo para todas as regiões do país, mas por atentarmos para sua preocupação principal, que é a privatização da esfera pública no país.
Quando os neoliberais tupiniquins afirmam, com todas as letras, "vamos privatizar o público no Brasil" (entendendo este apenas como ação econômica do Estado no mercado empresarial), as coisas ficam no mínimo um pouco engraçadas. Como é possível privatizar ainda mais o público no país?
Talvez, se a cultura política socialista rompesse suas relações mal resolvidas com a democracia e sua rigidêz moralista frente a ideia de mercado, ficaria certamente em melhor posição para defender uma construção ampliada e democrática da esfera pública no Brasil em contraposição ao projeto neoliberal. Enquanto a cultura socialista estiver amarrada a uma racionalidade imanente da realização do não-mercado no Estado, estará impotente para responder com profundidade aos problemas levantados pelo neoliberalismo, problemas a que este último responde superficialmente, como se existisse um único e uma única lógica de mercado através do qual, pelo equilíbrio da oferta e da procura, encontrar-se-ia a solução mágica da "nova" modernidade e do próprio fim da história.
CONCLUSÃO
Dezenas de anos atrás, uma senhora chamada Leda Collor veio num espaço público não-estatal, à revista Veja, pedir que os seus leitores apoiassem “num apelo ao filho” para que o Presidente da República desistisse de praticar esportes perigosos. Renato Janine Ribeiro comenta este episódio lastimando que seja a mãe e não a opinião pública que esteja protestando: "Nada indica melhor a fragilidade de nossa dimensão pública do que isso: quem vem a público (...) é a figura que tradicionalmente melhor exprime a força da vida privada, a mulher que deu a luz." (Ribeiro, 1992. p 4) (grifo do autor do trabalho)
No espetáculo da privatização da esfera pública brasileira, o diretor que muitas vezes consegue com eficácia traduzir para o público a mensagem do autor é a moderna televisão. Isso ficou muito evidente na campanha presidencial que elegeu o Príncipe das Alagoas. O candidato alugou uma sigla para concorrer e, seu real partido, foi a publicidade. O público foi convidado a assistir a um espetáculo produzido pela mídia eletrônica; a política trocou o público pela publicidade. Os recursos publicitários deixaram de ser meios de uma proposta para se tornarem o próprio conteúdo.
Alguns interpretaram essa súbita privatização do público por causa dos resquícios na Região Norte e Nordeste do que Gramsci denominou, a questão meridional, ainda que o nordeste não esteja geograficamente situado no meridional do país3. Essa foi uma hipótese levantada para a súbita criação do Príncipe degolador de marajás. Pensamos porém que essa hipótese não é suficiente para explicar a rápida entrada e saída de cena do Príncipe das Alagoas. É certo que o Nordeste possui explícitos resquícios de nossa privatização do público, sobretudo através do patrimonialismo político dominante "naquela região", porém não acreditamos que essa expressão cultural seja um monopólio do nordeste nesse particular. Tudo bem, não vamos mecanicamente universalizar o patrimonialismo regional para um país que tem pólos “mais dinâmicos e modernos”. Entretanto, por que mesmo em São Paulo, muitas das maiores e mais importantes empresas continuam sendo geridas como se fossem uma extensão da família? O carro da família é o mesmo da empresa, a conta particular do "dono" continua sendo a mesma do presidente da empresa. Por que raramente encontramos no país um empresário que profissionalizou sua empresa? Por que quando isto ocorre, "a figura"escreve um livro sobre sua experiência e fica famosa por ser um empresário desviante?4
Seria muito apressado desconsiderar a privatização do espaço público construído no Brasil. Por mais complexo que pareça nosso país, por mais moderno que possam parecer alguns pólos de infra-estrutura industrial e, até mesmo, como pretendem alguns, pós-industrial, a construção da esfera pública no Brasil se deu através de regras e acessos muito reduzidos. Em contrapartida, o gigante não estava adormecido, continuou vivo e sobrevivendo. Portanto, no país existe uma enorme rede pública não-estatal, bem como diversos e diferentes mercados clandestinos à legalidade oficial que se encontram desconhecidos da literatura Política.
Por estar muito preocupada com a trama do poder constituído, a maioria dos autores que trabalharam a problematização do público no país esqueceu de um detalhe. Onde estavam as bestas, os bestializados? Será que passaram o tempo todo assistindo passivamente a um espetáculo que os excluía? Será que não fizeram nem um pequeno intervalo perante a seriedade da trama pública que eram convidados a assistir? Falta-nos atentar para este pequeno equívoco. Por que o público não gosta de eleições? Quais são as origens deste descontentamento? Por que a política é entendida no senso comum como um negócio privado? Quais são as redes de associações informais que sobrevivem na sociedade perante essa exclusão? Qual o segredo de o Estado ser visto como uma autoridade paterna, que autoriza, que reprime, que tutela e que impõe? Em síntese, por que é tão débil nossa cultura democrática? Qual a importância da nova indústria simbólica e comunicacional? Quem são as novas elites cosmopolistas? O que pretendem? Porque estão tão preocupadas em desmontar com os Estados Nações? Quais os novos tipos de mercados realizados pela ampla e moderna exclusão multi-empresarial?
1. Gilson Lima. Doutor em Sociologia das Ciências. Professor e Cientista Sênior. Pesquisador do Research Committee Logic & Methodology and at the Research Committee of the Clinical Sociology Association International Sociological (ISA).
E-mail: gilima@gmail.com Blog: http://glolima.blogspot.com
2 Durante muito tempo o estudo sobre a corporação foi empreendido dentro de uma perspectiva pejorativa. No Brasil, se acreditou e muito ainda se acredita, que a forte tendência a agregação corporativa encontrada nesse país se devia a implementação da Consolidação da Leis Trabalhistas (CLT), normativamente imposta por Getúlio Vargas, que copiou a Carta Del Lavoro de Benedito Mussolini. Isso fez com que a literatura crítica sobre o corporativismo o associasse ao fascismo. Por outro lado, os racionalistas que sempre buscaram uma inspiração européia de razão ocidental moderna para explicar o domínio e ascensão dos países industriais, sempre o associavam com uma incapacidade de universalização, tendendo sempre a um limitado particularismo. A questão é que para entendermos o corporativismo no Brasil e na América Latina, devemos ter um pouco mais claro que suas raízes são longínquas e se interpenetra ao pensamento cristão missionário da Idade Medieval. Os missionários foram os primeiros responsáveis pela constituição axiológica na colônia realizada através da catequese tencionando suas opções humanistas com a tarefa de legitimação da colonização. Também é importante nos atermos a influência da Universidade de Coimbra na formação da primeira geração culta da elite nativa do país. Por outro lado, a concepção que é hegemônica nos Estados Unidos da América entende que as especificidades nativas dos países Latino Americanos são obstáculos culturais que impedem esses países de realizarem uma universalização cosmopolita, dentro dos marcos atuais das regras defendidas pelo “mercado global multi-empresarial ”. Essa posição foi colocada em questão com a rápida ascensão do Japão na renda bruta mundial, que ao contrário, realizou esse feito potencializando suas especificidades nativas.
BIBLIOGRAFIA
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___________. Os Bestializados (O Rio de Janeiro e a República que não foi). São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
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SCHWARTZMAN, Simon. São Paulo e o Estado Nacional. São Paulo: Difel, 1975.
URICOECHEA, Fernando. O Minotauro Imperial (A Burocratização do Estado Patrimonial Brasileiro no Século XIX). São Paulo: Difel, 1978.
Esse texto foi produzido em 1994. Gostaria de esclarecer que o título desse artigo, foi retirado literalmente de um suplemento publicado em 31 de maio de 1992 na Folha de São Paulo. Também, algumas pequenas passagens desenvolvidas na primeira parte e na conclusão foram inspiradas num pequeno texto de Renato Janine Ribeiro que se encontra publicado naquele suplemento.