quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Sobrevivemos a 2020. QUE VENHA 2021

Por que o novo é novo?
Gilson Lima

Fragmento de meu principal livro: Teoria da sociedade simbiogênica contada em prosas!


As raposas uma ou outra vez na história, ao serem tomadas por pulgas, submergem pouco a pouco na água para concentrar todas as suas pulgas nos seus focinhos e; com um rápido mergulho, livrarem-se delas. Assim, devemos diminuir nossa estranheza de que de tempos em tempos tenhamos que sacudir nossa própria cultura e ficarmos desnudos dela.
(Ortega Y Gasset).

 

É de Nietzsche a ideia de que o esquecimento é uma habilidade importantíssima para a vida.

Nietzsche, ao que nos parece, não está defendendo um elogio simplório do esquecimento, mas de uma crítica da relação moderna de submissão da vida à história, aos fatos, ao cronos e ao técno-poder sistêmico empobrecido. Uma crítica da relação a um passado com potência colonizadora sobre o presente e que castra e impede a criação do futuro.

É através do peso do passado que selecionamos as circunstâncias do presente. Para emergir o novo na vida precisamos, como defendeu Nietzsche, de certo esquecimento, de certa não-história, de liberação do fardo da história. Acessar o instante como fonte de criação que permite a emersão do novo, da novidade, sem a qual, apenas reproduziremos o curso natural colonizado por cartografias de pesadas lembranças acumuladas por um excesso de memória.

A potência criadora acontece na crença, na paixão desmedida e no gosto pela ilusão da particularidade e não na fria mensuração dos fatos, na sua pobre datação e nominação petrificante.

A vida é sempre interessada. Escolhemos sempre as circunstâncias que julgamos interessar-nos num determinado momento. É da injustiça da vida em relação ao nosso passado, a nossa história, que produzimos e criamos o novo.

A racionalização moderna ergueu suas cercas visando a transformação absoluta da quase infinita potência da escuta sensível da imaginação humana enclausurá-la num oceano já mensurado e congelado. É vital para uma dobra criativa que converta o instante em um novo futuro.

Trata-se de enfrentarmos radicalmente a ideia que conhecemos de fatalismo[1], o qual implica, nada mais nada menos, em um respeito incondicional à potência dos fatos, à crença determinante neles, nos seus encadeamentos históricos tal como a história nos inscreve. O respeito a essa potência factual é também o respeito aos interesses dos mandarins desses fatos. Trata-se de uma concepção que aborta o novo, o que está em vias de nascer. O novo quase sempre ofende o que existe, porque em geral ele é, inevitavelmente, impiedoso e injusto também com o passado.

É bom lembrarmos que a justiça do presente é a que ignora o instante como algo ainda não domado e de potencialidade e indeterminação sobre o futuro. É a que não permite que o homem se realize como um experimentar de si mesmo.

As grandes criações, as ações extraordinárias, as grandes invenções são exemplos cabais de instantes envolvidos pelas nuvens de esquecimento, uma gama de fragmentos extraordinários de traições e de injustiça diante da história.

O instante são fragmentos de vida que se desprenderam do círculo vicioso da memória do qual pode aflorar o surgimento do novo, sobretudo a partir de suas traições e injustiças sobre as crenças e fatos do passado, do rompimento com o ordinário e da realização do extraordinário na vida. O direito ao novo, que deve nascer da criação do que pode vir.

Assim, os seres vivos e potencialmente criativos necessitam estarem envoltos num véu de mistério, de vitalidade, de força, de garra, da ilusão necessária para enfrentarem as cegueiras, as parcialidades desconsideradas, desfazendo o pesado fardo que o passado impõe sobre o presente e o futuro.

O presente não é o instante; ele é o que é e não dá direitos ao que está vindo expressar-se na sua potencialidade inovadora. Apenas é o que é, ou seja, o instante que se relaciona muito mais com o futuro. É para o instante que dirigimos nossas forças, visando dobrá-lo, acolhê-lo no que de mais potente ele possui: a novidade criante.

A história está apenas acostumada a traduzir o novo como acúmulo e sucessão. A novidade precisa ser domada, explicada, decomposta, fazendo tudo para que o novo possa emergir como uma obra que tenha pouco efeito inventante. A novidade é assim, neutralizada, traduz o novo como uma reinauguração do velho, uma continuidade melhorada. O desenvolvimento. Não o novo, a melhoria, o mais rápido, o miniaturizado, o mais útil, mas um velho utilitário.

A modernidade congelou o instante e o presente ficou submetido ao trajeto unidirecional de uma flecha originária de um passado, de um acúmulo de encadeamentos factuais que progride em uma mono-direção ao futuro.

A história não pode transformar nossas vidas em um pesado fardo que nos transforma em funestos coveiros do presente. É necessária a atrofia da história para a imersão vital no presente e para o surgimento do novo e sua conversão em futuro.

A história factual mensuradora não só esvazia o novo e sua potência inventiva da vida, mas ainda reduz as novidades, “as linhas de fuga” presas em sequências de uma cadeia de causas históricas, como que se reencaixasse as intempestividades descarrilantes retornando sempre para o seguro trilho do trem da história. É o moderno desejo cientificista que pretende dar conta de tudo, deixando quase tudo de fora como se fosse apenas um nada que nada tenha.

Os velhos sábios hindus há muito tempo e a física quântica mais recentemente, nos dizem: “Prestem bem atenção! Há algo no nada, há algo nos zeros formais criados pelos árabes, há algo impalpável, imaterial e não é apenas um diminuto da solidez objetiva da matéria”. O mais estranho de tudo isso é que estamos também ali naquilo que antes era nada, estamos em profunda simbiose e ali estamos nós, mesmo estando também aqui simultaneamente.



[1] No sentido de fatal; uma espécie de mescla entre fato + ismo.

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