terça-feira, 27 de outubro de 2020

EVOLUÇÃO SIMBIOGÊNICA => O corpo humano não é perfeito

 

Gilson Lima

 



 

Uma significativa implicação da ideia de evolução é a da ruptura de que nosso corpo humano não é perfeito. Assim, como produtos históricos de interação entre natureza e recursos disponibilizados onde acontecemos, também não fomos projetados,  a priori, para funcionar durante muito tempo e agora estamos obrigando nosso corpo a continuar em atividade muito depois de expirada a sua data de validade.

O corpo humano tem grande beleza artística, mas, do ponto de vista da engenharia, é uma rede complexa de ossos, músculos, tendões, válvulas e articulações que tem uma analogia direta com as polias, bombas, alavancas e dobradiças das máquinas,... (todas  falíveis).

Uma das mais complicadas façanhas da evolução é o nossa conquista ontogenética de ficarmos sobre os dois pés. Nos tornamos imperiais no Planeta. Somos uma espécie única com tamanha complexidade e adaptabilidade fisiológica. Até hoje, um dos momentos mais significativos da aprendizagem de uma criança humana é quando ela, deixa de engatinhar e entre tentativas e erros aprende a ficar  sobre os dois pés: torna-se um bípede.

No entanto, ser bípede, mesmo para os modernos humanos (cerca de 200.000 anos atrás), não é da nossa natureza filogenética. É uma conquista ontogenética da nossa adaptação à natureza onde acontecemos, mas é também um problema.

Os humanos ficaram de pé e adaptaram a postura bípede ereta num projeto corporal complexo e somos os únicos entre os mamíferos (mesmo entre os primatas). Não há dúvida de que, ao ficarmos de pé sobre as patas traseiras, promovemos o uso de novos instrumentos, aumentando significativamente a nossa inteligência.

Porém, os complexos processos fisiológicos da caminhada bípede geram também uma série de problemas. Por exemplo, o andar humano.

Embora a gravidade ajude, uma rede intrincada de tendões nos ajuda a conectar os órgãos à coluna vertebral, impedindo-os de cair e de imprensar uns aos outros. Nossa coluna vertebral teve que sofrer algumas adaptações: as vértebras inferiores ficaram maiores para suportar a maior pressão vertical, e nossa coluna curvou-se um pouco para nos impedir de cair para a frente. No decorrer de um único dia, os discos da parte inferior das costas são submetidos a pressões equivalentes a várias toneladas por centímetro quadrado. Ao longo da vida, toda essa pressão cobra o seu tributo.

Muitas das enfermidades debilitantes e até fatais do envelhecimento decorrem em parte de nossa locomoção bípede e da postura ereta. Cada passo que damos coloca uma pressão extraordinária em nossos pés, tornozelos, joelhos e costas – as estruturas que sustentam o peso de todo o corpo acima delas.

No decorrer de um único dia, os discos da parte inferior das costas são submetidos a pressões equivalentes a várias toneladas por centímetro quadrado. Ao longo da vida, toda essa pressão cobra o seu tributo, assim como o uso repetitivo de nossas articulações e o esforço constante que a gravidade impõe a nossos tecidos.

Quando jovens, nem sentimos suas imperfeições e, com o tempo, desgastamo-nos e de alguma outra forma os problemas de saúde se tornam mais comuns. A questão é como não ter tantos defeitos que nos deixarão ou nos deixam relativamente incapazes em nossos últimos anos. Nossa espécie está envelhecendo a passos rápidos e colocando novos desafios conquistados pelo conhecimento da própria teia da vida.

Com a conquista do envelhecimento, as doenças não podem ser evitadas apenas com pequenas orientações de comportamento, mas precisamos, então, de um novo design de cooperação corporal. Nossos corpos não foram projetados para durarem muito mais do que algumas poucas décadas. A vida é um sistema aberto e que acontece num ambiente adequado a receber e manter a vida, mas um rearranjo simples pode resolver problemas, mas criar outros.

Na verdade, muitos fornecedores de juventude em receitas gostariam de nos fazer acreditar que os problemas médicos associados ao envelhecimento são culpa nossa, decorrentes principalmente de nosso modo de vida decadente.

É claro que qualquer pessoa pode diminuir a duração de sua vida por comportamentos sedentários, má alimentação, fumo,..., mas isso por si não é suficiente.

Nenhuma intervenção simples compensaria as inúmeras imperfeições espalhadas por toda a nossa anatomia. As ciências da vida, ao alterarem suas concepções não simbióticas da natureza vital, vão conquistar rapidamente avanços incríveis que vão compensar muitos dos defeitos de concepção contidos em todos nós.

Pensemos no olho e no ouvido. A versão humana da visão é uma maravilha evolutiva. Com a idade, nossa visão diminui à medida que o líquido protetor da córnea vai perdendo a transparência, os músculos que controlam a abertura da íris e a focalização das lentes atrofiam-se, a lente engrossa e amarela, reduz nossa precisão visual e a percepção das cores.

Algumas modificações anatômicas podem ajudar muito, e podemos manter com alterações tecnológicas a preservação da audição dos idosos. Podemos também criar sistemas mais precisos de visão e de audição que dos humanos médios.

Se os seres humanos tivessem sido feitos para durar mais, seríamos diferentes.
Para vivermos mais tempo, estamos cofabricando um corpo simbiótico distinto dos que a natureza nos desenhou com seus discos abaulados, ossos frágeis, quadris fraturados, ligamentos rompidos, veias varicosas, catarata, perda da audição, hérnias e hemorroidas: a lista das mazelas corporais que nos afligem à medida que envelhecemos é longa e muito familiar.

Estamos nos dirigindo para a emergência de uma nova espécie simbiótica altamente duradoura com partículas minúsculas dedicadas totalmente aos bilhões de esforços jeitosos e cooperativos necessários para nos manter intactos e que nos farão experimentar um estranhamento sobre o que conhecemos como existência ou sobre o que é o real movido pela nossa atual singularidade humana.

Se informação não é conhecimento, e se conhecimento não é sinônimo de sabedoria, não é preciso lembrar que essas conquistas geram riscos, desafios éticos e sociais imensos que julgamos não estarmos, ainda, à altura de enfrentá-los.

Temos, cada vez mais uma compreensão da importância da simbiogênese, não apenas a demonstrada nas nossas interações com os micro organismos (Margulis,xxx),  mas um borramento amplo de fronteiras entre o mundo físico, social e biológico, que, há décadas, Michel Foucault demonstrou com a emergência do biopoder, da transubstancialização do poder-corpo para o poder-vida.

Nossa hipótese da simbiogênêse social é que estamos – como espécie -  borrando uma passagem evolutiva da era simbiótica e não parabiótica.  Meus projetos de pesquisa acadêmicos ou industriais que coordenei com equipes interdisciplinares operados sempre em simbiose com as redes sociais são experimentais e demonstrativos e integram também o esforço de sistematização da Teoria Biossocial da Simbiogênese com as tecnologias assistivas e de assistência à vida[1].  

No lugar de transformar o mundo nós vamos agora mudar o próprio ser em evolução. Como disse antes: não somos humanos, estamos ainda apenas humanos, mas o futuro duradouro é do simbiótico e estamos a caminhos acelerados nessa direção. Caminhamos aceleradamente, com a manipulação molecular, para a saída da era neolítica, em que logramos a tarefa de dominar nosso ambiente, para uma nova era da programação simbiótica. As nossas próximas tarefas serão o domínio de nosso próprio corpo e dos organismos vivos em geral.

Nessa nova era de uma evolução borrada entre os recursos orgânicos e os inorgânicos em cooperação com a vida estaremos transferindo para as criaturas vivas e para as máquinas ou para matérias inorgânicas parte das suas propriedades singulares, um borramento de uma nova ecologia simbiótica. Isso já está demonstrado. Por exemplo, o marca-passo tem sido utilizado com sucesso na medicina desde 1958. Hoje, a taxa anual é da ordem de 400.000 implantes. Hoje, a taxa anual é da ordem de 400.000 implantes (KEMPF, 1998).[2]

Outros dispositivos, já foram demonstrados em diferentes experimentos e estão sendo também implantados no corpo humano ao largo dos últimos anos. Por exemplo, eletrodos para fazer conexão elétrica à espinha dorsal, de modo a estimular órgãos paralisados (utilizado em Larry Flynt, o famoso editor da revista pornográfica Hustler, para recuperar sua virilidade, após uma tentativa de assassinato que o deixou paraplégico) e o incrível implante de olhos artificiais (na verdade, câmeras CCD ligadas a processadores de imagens) para os cegos, projeto desenvolvido pelos oftalmologistas norte-americanos John Wyatt e Joseph Rizzo. (LIMA, 2005)[3]

A vida tecnologicamente inteligente está constituindo uma potente beta natureza (seca, inorgânica) e gerando um novo recurso simbiótico com a alfa natureza (úmida e orgânica). São exatamente os recursos da ciência e da tecnologia modelados por uma sociedade do conhecimento que estão nos impelindo para entrar numa nova era da evolução. Estamos iniciando a embarcação de uma nova era simbiótica. (LIMA, 2005)[4]

Nossa indicação final é que não vivemos apenas uma nova convergência neurodigital ou uma nova emergência do pós-humano, ou pós-evolutiva, ao contrário, estamos deixando para trás o humano demasiadamente humano e emergindo novos seres simbióticos modelados por uma aceleração envolta de uma evolução simbiótica, uma evolução geradora de seres bióticos mais duradouros numa nova ecologia simbiótica, mais recursiva, ou seja, com novos e potentes recursos e sentidos parabióticos.

Nos últimos anos, artistas como Stelarc [5] se dedicaram à discussão cultural e política da possibilidade de ultrapassar o humano através de radicais intervenções cirúrgicas, de interfaces entre a carne e a eletrônica, ou ainda de próteses robóticas para complementar ou expandir as potencialidades do corpo biológico. Mais que apenas antecipar profundas mudanças em nossa percepção, em nossa concepção de mundo e na reorganização de nossos sistemas sociopolíticos, esses pioneiros anteciparam transformações fundamentais em nossa própria espécie. Essas transformações poderão inclusive alterar nosso código genético e reorientar o processo darwiniano de evolução.

[1] Para saber, alguns dos projetos mais conhecidos: 1. Redescoberta da Mente na Educação (Pós graduação em reabilitação e inclusão); 2) Projeto de Pesquisa Simbiogênese aplicada em processo de reabilitação. reabilitação sócio-educacional interdisciplinar. Coordenadores: Dr. Gilson Lima, 2009, 3) Projeto CNPQ – Processo Número: 400750/2009. Coordenador: Dr. Gilson Lima. 4) Relatório projeto 400750 A broad interdisciplinary convergence of knowledge for rehabilitation and inclusive education: a case study, 2011; 5) Coordenação do experimento de Exoesqueleto Muscular – não robótico: Demonstração do record de caminhada plana e com apoio de andador por um paraplégico acoplado num exoesqueleto muscular (Tutor Argo 1979) em Porto Alegre, 2009. Foram quinhentos e doze passos sequenciais. Vide: http://glolima.blogspot.com.br/2011/07/exoesqueleto-para-alem-da-cadeira-de.html 3)Produção e exposição em Feira Hospitalar de um KIT de inclusão digital integrado à uma cadeira postural para usuários tetraplégicos com lesão neural severa com programas gratuitos e livres distribuídos pela rede e – alguns com mais dezenas de milhares de downloads pelo mundo inteiro (São Paulo, 2012, 2013).

[2] KEMPF, Hervé. La Révolution Biolithique: Humains Artificiels et Machines Animées. Paris: Albin Michel, 1998. 

[3] LIMA, Gilson. Nômades de pedra: teoria da sociedade simbiogênica contada em prosas. Porto Alegre: Escritos, 2005.

[4] LIMA, Gilson. Nômades de pedra: teoria da sociedade simbiogênica contada em prosas. Porto Alegre: Escritos, 2005.

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