GILSON LIMA. "O que em mim sente está pensando" (Fernando pessoa).
Esse texto foi publicado pela primeira vez numa internet da UNISINOS – Unversidade do Vale do Sinos no Sul do Brasil em 2001 onde trabalhei por quase 19 anos. Nesse período ele foi alvo de muitas aulas, discussões e polêmicas nessa universidade.
Esse texto foi refeito com algumas modificações e publicado definitivamente, mas de modo disperso nas prosas de meu livro: Nômades de Pedra, 2005. Coloco agora novamente a diposição pública psra quem quizer recordar e descobrir por onde eu andava em minhas abordagens sociológicas no início dos anos 2.000. Mantenho aqui a versão da época, sem alterações – inclusive - de alguns erros formais para meus leitores do blog. Espero que gostem.
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Introdução
Fala-se muito, hoje em dia, em sociedade do conhecimento. Falar muito sobre uma sociedade qualquer é tratar sobre algo socialmente produzido, ou seja, um modo social de produção. No entanto, infelizmente temos visto falas sobre a sociedade do conhecimento como se isso fosse apenas algo naturalizado. Pensamos também que efetivamente emerge um novo modo social de produção e que o conhecimento assume um novo papel no modo de produzir nossas sociedades contemporâneas, porém isso não nos dispensa de indagar sobre o que é esse conhecimento, de que tanto estamos a falar.
Para nós, o problema reside na ideia de que — em geral — o conceito de inteligência da sociedade da informação — ou do conhecimento — está muito especificamente modelado pelo que as máquinas e os programas provenientes da computação abstrata podem realizar. Também não queremos deixar de considerar o grandioso feito da computação abstrata na construção de máquinas e artefatos numéricos com habilidades lógicas que até ontem eram monopólio da mente humana, não se trata de pouca coisa a criação de máquinas e artefatos programáveis com cada vez maiores capacidades de manipulação de estoque/armazenamento, processamento e até mesmo de recuperação — ainda que de modo primário — de dados e informações também em volumes cada vez maiores. Assim, não são nada descartáveis os feitos da integração de ambientes hipermidiáticos digitais (sons, imagens em movimento e informações em caracteres) que amplificam nossas realidades vitais e as aproximam à realidade vital por antecipações em simulações também cada vez mais integradas em fluxos informacionais interativos de comunicação.
Considerando os grandes feitos de replicação das atividades rotineiras do processamento lógico do cérebro humano e da amplificação de nossas ressonâncias sensórias por sofisticados suportes ambientalizados por sistemas digitais de simulação e interação, não podemos concordar que os mesmos possam se tornar, através de uma reflexividade mimética (representação imitada), quase sinônimo de conhecimento complexo, ou seja, considerados como uma “nova modulação de conhecimento” e não como o que realmente são realmente,
redutores de complexidade[i]. Ao dar conta de modo extremamente preciso da redução da complexidade da realidade vital, possibilitam e facilitam que a produção do conhecimento na sociedade contemporânea possa agora ocupar efetivamente, na história de nossa civilização, um novo lugar no seu modo de produção social.
Aliás em muito processos da lógica cognitiva (computável) somos muito inferiores a essas máquinas que criamos. Para montar totalmente um simples computador de mesa que encontramos em nossas casas podemos reunir mais de uma dezena de cérebros humanos do nosso planeta. Podemos escolher entre todos os humanos os que mais conhecem e dominam arquitetura computacional e mesmo assim eles não serão capazes de realizar sozinhos tal façanha. Precisaremos também de outras máquinas - como finos e precisos robôs capazes de manipular materiais invisíveis a visão humana.
VEJAMOS UM EXEMPLO =>
EM MATÉRIA DE PROCESSOS COGNITIVOS COMPUTÁVEIS ESSAS SOFISTICADAS MÁQUINAS LÓGICAS REALIZAM TAREFAS MUITO MAIS PRECISAS E MUITO MAIS RÁPIDAS QUE UM CÉREBRO HUMANO.
É tentador examinar o sistema nervoso humano e ver o cérebro como uma espécie de processador central digital, com os nervos do sistema nervoso periférico atuando como canais de entrada e saída de dados.
O neurônio opera na escala de tempo dos milissegundos - isto é, geralmente são necessários alguns milissegundos para que um neurônio dispare, para que um sinal nervoso viaje ao longo de seu axônio e para que o sistema se reacomode a fim de disparar novamente. Por outro lado, um transistor comum como o que está presente em seu computador pessoal pode ser ligado e desligado em um bilionésimo de segundo (isto é, um milhão de vezes mais rápido do que os neurônios), e os modelos experimentais podem ser ligados e desligados mil vezes mais rápido do que isso.
Toda essa conversa de milissegundos e bilionésimos de segundo pode passar batido e sem nenhuma significação maior, mas veja:
Imagine que você tivesse uma pessoa que pudesse realizar uma dada tarefa em um dia, e outra que precisasse de um milhão de vezes mais dias para realizá-la. Se a primeira pessoa tivesse começado a tarefa há 24 horas, ele ou ela estaria terminando exatamente agora. Para que a pessoa mais lenta estivesse terminando a tarefa no mesmo tempo, ele ou ela teria de ter começado a tarefa por volta de 770 a.C. Essa é a diferença de velocidade entre um transistor comum e um neurônio!
Por outro lado, sabemos que o cérebro pode trabalhar muito rápido em algumas tarefas. Aqui está uma demonstração: levante sua cabeça e olhe ao redor, depois a incline. Ao fazer isso, a imagem visual que você tem do mundo permanece vertical - ela não se inclina como sua cabeça.
Esta operação simples é tão "automática" que é fácil perder de vista o fato de que ela constitui um desafio computacional enorme - apenas muito recentemente as máquinas mais modernas têm sido capazes de executá-la em tempo real. Isso porque a maneira tradicional de um computador analisar uma imagem é bem diferente da maneira como o cérebro humano faz.
O neurônio pode ser visto como uma chave interruptora em vez de como um transistor - ele está ligado ou desligado. Entretanto, essa analogia não resiste a um exame mais rigoroso. Um aspecto mais importante da natureza química do cérebro é que ele está ligado ao segundo principal modo de comunicação do corpo - o sistema endócrino. O cérebro, na verdade, está em um banho sempre em mudança de substâncias químicas, aquelas criadas no interior do próprio cérebro e as produzidas em outras partes do corpo. O neurônio e o encéfalo faz parte de uma sistema de singularidades vitais de um sistema muito mais complexo - incluindo a ecologia ambiental em que acontecemos no mundo - do que um circuito elétrico em alta velocidade operando uma instrução algorítmica.
O cérebro humano pesa em média cerca de 1,4 kg e representa cerca de 2% do peso do corpo. Difere em tamanho de homens e mulheres e também de funcionamento, mas isso não é assunto para esse artigo. Contudo, o modesto tamanho do cérebro, consome mais de 22% de energia de todo o corpo. Dos alimentos que ingerimos, um quinto vai para o cérebro. Em momentos de escassez de alimentos, o cérebro é para nos um luxo impensável. Como ao longo da evolução da raça humana houve épocas de grande escassez, o cérebro tinha de oferecer vantagens que compensassem o seu principal inconveniente: o seu elevado consumo de energia. Parece que para quem tivesse fome e tivesse de procurar raízes e frutos, seria melhor não ter cérebro, pois precisaria procurar menos 22%.
No entanto, apesar de toda essa energia consumida nosso cérebro é muito econômico em termos de energia. O cérebro humano vive sendo comparado a um computador, mas certamente ele não o é. O modelo computacional do cérebro humano que os cientistas da informação e suas máquinas cognitivas insistem em afirmar como sendo idênticos, não resiste a modestas comparações. O cérebro trabalha a uma potência de apenas 22 Watts, bem menos do que a lâmpada que ilumina seu escritório ou seu quarto.
Um outro complicador para o conhecimento complexo é a emergência das explicações da sociedade da informação por abordagens neopositivistas sistêmicas cada vez mais presentes em nossas universidades. Suas explicações estão impressas num determinismo tecnológico eufórico e de baixa ou nula densidade crítica. Uma das expressões mais presentes em nosso contexto é a dos seguidores do escritor das tecnologias da informação, o francês Pierre Lèvy.
Lèvy, em sua obra mais densa,
As Tecnologias da Inteligência: o futuro do pensamento na era da informática[ii], ainda guarda alguma reserva de abordagem complexa, que pouco a pouco vai desaparecendo de suas obras mais recentes
[iii]. Em
Tecnologias da Inteligência, Lèvy desenvolveu a tese evolucionista de que as tecnologias intelectuais condicionam a história da inteligência humana. Para o autor, as inteligências integradas em novos contextos sociais e tecnológicos, formam o que o autor chamou de ecologia cognitiva. Porém, adotando posteriormente o conceito de ciberespaço de Willian Gibson utilizado num romance de ficção para jovens adolescentes
[iv], ele constrói a maravilhosa tese da Internet como inteligência coletiva e da fusão do conhecimento vital num dualismo da virtualidade ciberespacial.
Esta falácia do ciberpitagorismo desconsidera que a mente humana é um fenômeno quintessencialmente
dinâmico, e parece absurdo sugerir que ambientes digitalizados ou até mesmo a Internet possam ser promovidos, num fechado sistema (autopoiético
[v]), definido agora como inteligência coletiva que pudesse apreender (encapsular em redes digitais), numa complexidade superior à própria realidade vital.
Vou abrir um parêntese, evocando carona também na literatura ficcionista. Diferentemente de Lèvy, vamos nos ater em Sherlock Holmes para ilustrar um pouco a questão do conhecimento. Conan Doyle, criador do famoso personagem Sherlock Holmes, era um médico britânico educado por jesuítas de formação católica e com toda sua genialidade criativa também se enganou diante de como nossa mente opera a memória e o conhecimento. Holmes, sua criação, era um investigador eficiente, sempre munido de um vasto espectro de informações potencialmente relevantes. Ao lermos atentamente as histórias de Sherlock Holmes, veremos que para Conan Doyle a capacidade intelectual de Holmes estava fortemente relacionada com sua habilidosa capacidade de memorização. Assim, vejamos:
“O cérebro de um homem é semelhante a um pequeno ático vazio, que pode ser povoado com a mobília que desejar. Um tolo abarrota-o com toda espécie de traste que encontra pela frente, de modo que o conhecimento que lhe pode ser útil fica de fora ou, quando muito, soterrado no meio de muitas outras coisas, tornando-se assim muito difícil o acesso a ele... É um equívoco acreditar que aquele pequeno cômodo possui paredes elásticas e que podem ser esticadas em qualquer extensão... É da maior importância não acumular fatos inúteis que possam obstruir o acesso aos que interessam”.
[vi]
Doyle queria trazer a metodologia científica da investigação para o mundo policial, pois, segundo ele, os males do falso conhecimento advêm da aceitação das coisas que não podem ser comprovadas. Pensamos que as investigações sherlockianas nos permitem muito a refletir sobretudo na perspectiva da abdução [teoria do “advinho”]
[vii]. Assim, mesmo que a visão neurocerebral exposta didaticamente acima fosse uma visão cientificamente bem fundada e compartilhada na época, hoje ela já se encontra descartada pelas pesquisas neurológicas mais avançadas. Ao contrário, já sabemos hoje que não guardamos nossos registros mentais como arquivos de computadores. Os eventos e dados encapsulados na mente não possuem nomes e não são ordenados em pastas. Eles são acessados não por um nome, mas pelo conteúdo afetivado. Até mesmo a própria moderna computação definiu um conceito de recuperação de dados aproximado e parecido com o modo de a mente humana organizar as informações; trata-se de um processo chamado
lifestream. [viii]
As novas pesquisas das ciências do cérebro e da mente têm apontado que nosso misterioso cérebro, ao contrário da memória digital, não armazena os dados e imagens sob a forma de fotografias fac-similares de objetos, de acontecimentos, de palavras ou de frases. O cérebro, como indicam as novas e revolucionárias descobertas neurológicas, não arquiva a realidade como se fosse uma máquina de fotografia polaroid que registra pessoas, paisagens, caracteres ou objetos. Nosso cérebro não armazena a realidade em fitas magnéticas sonoras de ruídos, de músicas ou falas. Nosso cérebro não armazena filmes de cenas da vida ou de contextos existenciais
[ix].
As novas descobertas da neurologia demonstraram que não parece existirem imagens que sejam retidas no cérebro mesmo em miniatura, em microarquivos ou outro tipo de representação. Pela enorme capacidade de conhecimento que adquirimos, qualquer processo de armazenamento fac-similar daria campo a problemas insuperáveis de capacidade. Nossa cabeça deveria ser do tamanho de Júpiter. É bom lembrarmos de que Júpiter é o maior planeta do sistema solar, e que graças a sua
“incompetência” em não se tornar uma estrela é que a
vida reina na Terra.
A nova concepção da neurologia aponta na direção de que possuímos, de fato, uma
memória reconstrutiva. As nossas sensações existenciais compartilhadas vão sendo evocadas e brotam de nossos sentidos e provocam na mente surgimentos de imagens, tentativas de réplicas de padrões mentais que um dia já foram experimentados afetivamente.
[x]
O culto determinista ao computador deixa a impressão mágica da crença num determinismo tecnológico de que um
"progresso" está surgindo sem sujeitos dotados de inteligência complexa.
[xi].
Um computador, na verdade, está integrado num complexo sistema simbólico, sob todos os aspectos. Trata-se de uma máquina abstrata composta por programações capazes de transformar pulsos de eletricidade em símbolos que não apenas representam zeros e uns, mas que transformam simples conjuntos de instruções numéricas em representações de palavras ou imagens, planilhas e mensagens interativas. O enorme poder da computação abstrata contemporânea, inclusive, depende dessa capacidade de auto-representação computacional. A própria palavra interface evoca imagens de desenho animado de ícones coloridos e lixeiras que se mexem, bem como os inevitáveis clicks de acessibilidade ao usuário.
Voltando ao conceito de ciberespaço da inteligência coletiva, não é tão assombroso que essa visão possa emergir atualmente no domínio da ciência e da tecnologia como se fôssemos novos portadores de uma ciberalma. Podemos encontrar a integração desta idéia numa antiga tradição que há muito vem dando forma à ciência ocidental, há mais de dois mil anos: trata-se da curiosa mistura de matemática e misticismo, cujas origens remontam ao século VI a.C. e ao enigmático filósofo grego Pitágoras de Samos. Quer se dêem conta disso ou não, os paladinos contemporâneos do
download da mente não só seguem uma tradição cristã (agora como
cibercéu) como, sobretudo, são os herdeiros do mestre de Samos
[xii].
A Pitágoras se credita à introdução dos gregos na matemática, e ele foi um dos fundadores do empreendimento científico ocidental. Ao mesmo tempo, era um religioso fanático que conseguiu fundir matemática e misticismo numa das sínteses mais intrigantes da história intelectual. Contemporâneo do Buda na Índia, de Zoroastro na Pérsia e de Confúcio e Lao-Tsé na China, Pitágoras foi um místico de uma estirpe ocidental singular. Meio milênio antes do nascimento de Cristo, formulou uma filosofia radicalmente dualista da natureza que continua a repercutir nas visões cibernáuticas de hoje. Segundo o sábio de Samos, a essência da realidade reside não na matéria — no que se consideravam seus quatro elementos: terra, ar, fogo e água —, mas na mágica imaterial dos
números. Para Pitágoras, os números eram literalmente deuses, e associou-os com os deuses do panteon grego. A verdadeira realidade, segundo ele, não era o plano da matéria, mas a esfera transcendente desses deuses-números
[xiii].
Para Pitágoras e os pitagóricos, os números não só constituem a base do domínio divino, como servem de arquétipos para o domínio material. O ciberespaço é, mais uma vez, a reconstituição desta visão refletida pelos contemporâneos. Segundo Pitágoras, os números literalmente conformavam o mundo da matéria. Ele foi levado a esta conclusão pela observação de que os próprios números têm formas e diferentes variedades de formas a partir disso, Pitágoras raciocinou: não poderiam todas as formas ter número? Não poderia o número ser a própria essência da forma? Dois mil e quinhentos anos depois, o ciberespaço está sendo construído sobre essa premissa. A própria idéia de uma simulação ou modelo digitais baseados em computador pressupõe que a forma pode ser apreendida na dança efêmera dos números. Esta é a “essência” da preconizada realidade “ciberespacial”.
O que se transfere para computadores, seja lá o que for, deve ser necessariamente expresso em termos de números — para sermos precisos, em termos dos números “zero” e “um”. Uma codificação ao mesmo tempo simples e no entanto infinitamente maleável de zeros e uns compõe os blocos de que todos os construtos do ciberespaço são feitos. Sob sonhos de download da mente ou da alma está, portanto, uma atitude profundamente pitagórica. Como os antigos pitagóricos, os paladinos do download, não só do conhecimento mas da alma e da mente de hoje, vêem a “essência” do homem como algo numericamente redutível; como a alma pitagórica, sua “ciberalma” não é o domínio da “carne”, mas o domínio eterno dos dados digitais.
Temos aqui, portanto, o que Eliade chama de uma “cripto-religião”, um sistema quase religioso em que o ciberespaço reencena o papel outrora atribuído ao espaço divino dos antigos deuses-números pitagóricos
[xiv].
A nova ciberalma, entretanto, diferentemente da tradição pitagórica, não tem nenhum contexto moral. As fantasias ciberespaciais não envolvem nenhuma demanda ética, nenhuma responsabilidade moral. Obtém-se acesso a uma religião que promete muito pela conversão digital, mas sem nenhuma das obrigações morais da tradição. Para Pitágoras, que acreditava que os próprios números tinham qualidades éticas, a idéia de uma crença numérica dissociada de alguma estrutura moral teria sido aterradora. No pitagorismo original, eliminar o contexto moral teria equivalido a arruinar espiritualmente todo o sistema, porém, isso é efetivamente o que o novo ciberpitagorismo faz.
Tal perspectiva pressupõe corretamente que o conhecimento deve ser cada vez mais regido pela comunicação e em superação à visão tradicional da disciplinarização dos corpos, e que devemos romper com o monopólio do acesso ao conhecimento pelas salas de aula e suas inflexíveis grades curriculares. Verifica-se corretamente que os computadores e seus programas potencializavam a imersão num mundo da supervalorização do pensar, e com a crescente complexificação da heterogeneização e personalização despadronizante dos agentes em rígidas estruturações , ao contrário, emerge uma nova e complexa divisão do trabalho já há muito destacada embrionariamente pela perspectiva durkaniana e complementada pelos estudos da modernização reflexiva de Ulrich Beck
, Anthony Giddens e também Scott
Lasch.
[xv] Nas sociedades contemporâneas, o trabalho pensante e reflexivo vai se destacando cada vez mais e a abstração simbólica amplia-se de modo tão surpreendente, pois não é possível conhecer complexificadamente a realidade sem compartilhamento de suportes da computação abstrata. Os benefícios das tecnologias da informação e da comunicação são inegáveis em simplicidade operacional, em precisão lógica e em programação e potencialização reflexiva realizada por nódulos informacionais integrados com a realidade vital.
Porém, diante disso, deduzir que essa potencialização da ação reflexiva, tanto na aprendizagem como no conhecimento complexo, submetidos por suporte da tecnologia da informação e comunicação, possam reduzir o conhecimento aos seus processos, é como transformar meios e suportes comunicacionais como os novos sujeitos do próprio processo comunicacional.
Assim, Lévy, além de magia, alimenta e difunde uma velha perspectiva de cunho “neopositivista”, já presente em Lhumann
[xvi], e restringe a construção da comunicação e do conhecimento em função do método de encapsulamento dos conteúdos e interações, ou melhor, por procedimentos lógicos-formais da computação abstrata.
Um sistema digital ou não oferece, pois, orientações comportamentais que facilitam a redução da complexidade, exonerando o ator da obrigação de fazer uma escolha entre as múltiplas alternativas possíveis. Porém, isso só é possível porque ele é uma expressão da própria “redução de complexidade vital”.
O velho combatente do neopositivismo alemão Jurgüen Habermas ressaltou dois problemas vinculados a essa interpretação da realidade:
a indistinção entre realidade e sua representação, por um lado, e, por outro,
a dificuldade de captar as funções que assegurem a permanência do sistema quando este não apresenta redução de complexidade ou quando se desenvolve justamente em sentido contrário, aumentando a sua complexidade[xvii].
A visão de tráfego probabilístico dos processos de informar e conhecer (implícita ou explicitamente) como solução típica da complexidade sistêmica digital transforma as relações e expressões sociais apenas em redutores de freqüências sociais, em expressões do condicionamento factual das ações, com grau muito restrito de liberdade. A indistinção dualista ou a fusão mecanicista entre a realidade e sua representação, inerente ao próprio conceito de sistema, tem, portanto, efeito conservador.
A cultura da Interface: a emergência do espaço-informação
Uma grande possibilidade desta confusão, presente em muitos deterministas tecnológicos, deve-se ao fato da grande revolução interfacial que a microcomputação abstrata promoveu. Numa visão simplificada, a revolução digital se deve ao surgimento dos próprios computadores e seus programas numéricos (sistemas/ambientes digitais) e a que eles são os efetivos aceleradores desta macrorrevolução informacional. Entretanto, o computador é uma invenção que existe teoricamente desde 1929 (máquina de Turing) e efetivamente no final da Segunda Guerra Mundial. A revolução efetiva da informação digital ocorreu de fato com a criação de uma modesta palavrinha chamada interface. Quando da criação e humanização das máquinas computacionais através de interfaces gráficas (pixels) e seu processamento distribuído em descentralizadas micromáquinas, emerge uma nova cultura, amplia-se, como nunca tinha ocorrido antes, a camada da interface dos usuários amadores em detrimento do monopólio perital da programação maquínica (codificação algorítimica). É por isso que existe hoje a Web, por exemplo. Somente quando se torna possível construir uma integração entre cultura e interface é que emergiu a revolução da microinformática.
Neste sentido, Steven Johnson descreve um relato que nos ajuda a entender a importância da revolução da microinformática pela cultura da interface. Diz ele:
“No outono de 1968 um homem de meia-idade e poucos encantos chamado Doug Engelbart se postou diante de uma platéia heterogênea de matemáticos, diletantes e hippies, no San Francisco Civic Auditorium, e fez uma demonstração de produto que mudou o curso da história.
Era um cenário improvável numa convenção de Jornada nas Estrelas, ou na exposição maravilhosamente kitsch de detetives particulares e ‘especialistas em segurança´ de A conversação, de Coppola. O próprio Engelbart estava longe de evocar imagens de Lutero a martelar reformas em portas de igreja. Mas daqui a uma centena de anos historiadores vão provavelmente atribuir a esse evento o mesmo peso e a mesma significação que hoje conferimos aos toscos experimentos de Benjamin Franklin ou à conversa telefônica acidental de Alexander Graham Bell com Watson. A demonstração de 30 minutos feita por Engelbart foi nosso primeiro vislumbre público do espaço-informação — e até hoje estamos vivendo à sua sombra.
A idéia de espaço-informação esteve no ar por milhares de anos, mas até que houvesse a demonstração de Engelbart foi sobretudo exatamente isso: uma idéia. Mas que idéia! O poeta grego Simônides, nascido seis séculos antes de Cristo, era famoso por sua fantástica capacidade de construir o que os retóricos chamam de ‘palácios de memória´. Foram esses os espaços-informação originais: as histórias convertiam-se em arquitetura, conceitos abstratos transformados em vastas — e meticulosamente decoradas — casas imaginárias. O estratagema de Simônides baseava-se numa peculiaridade da mente humana: nossa memória visual é muito mais duradoura que a memória textual. É por isso que temos muito mais facilidade de esquecer um nome que um rosto, e nos lembramos meses mais tarde de que certa citação aparecia no canto superior esquerdo de uma página, mesmo que tenhamos esquecido as palavras da própria citação
[xviii].
O que Engelbart fez foi possibilitar nessa demonstração, pela primeira vez na história, uma tradução interfaciada da informação digital numa expressão visual dinâmica no computador. A partir da leitura de um texto escrito por um cientista militar, “As We May Think” — que descrevia um processador de informação teórico, chamado Memex, que permitia ao usuário “abrir caminho” por grandes coleções de dados, quase como um navegador da Web atual
[xix] —, Engelbart se fascinou completamente pela idéia e a perseguiu até demonstrar pela primeira vez na história um produto em condições de funcionamento em pixels que se arrastava pelas telas, permitia abrirem-se janelas, nascendo ali uma mudança radical do tratamento da interface comunicacional de dados digitais. Para nós, hoje, arrastar uma janela de um canto de uma tela, mudando seu lugar sem alterar a integridade dos dados armazenados através de comandos simples de interfaces com um apontador clicável, pode ser algo banal, mas isso provocou uma grande revolução no mundo da informação digital. Foi o nascimento da cultura da interface para além e muito além da programação dirigida apenas para a máquina abstrata. Agora toda uma dobra subjetiva e externa à máquina se colocava na agenda com uma intensidade jamais imaginada pelos fundacionistas da computação abstrata.
Doug Engelbart foi, é claro, um dos primeiríssimos a apreender o quanto guias de informação se tornariam essenciais, e sua concepção de como esses guias iriam operar — concepção delineada naquela demonstração de 1968 — definiu o projeto básico da interface contemporânea. Como a maior parte das revoluções tecnológicas, o espaço-informação de Engelbart envolvia vários e amplos componentes-chave. Havia, antes de mais nada, a interessante idéia de mapeamento de bits (tecnicamente refinada pelos idealizadores do Xerox PARC nos anos seguintes)
[xx]. Engelbart sugeria até então uma provável aliança de cartografia e código binário, um guia do explorador para a nova fronteira da informação. Cada pixel na tela do computador era referido a um pequeno naco da memória do computador: numa tela simples, preto-e-branco, esse naco seria um único bit, um O ou um 1; se o pixel fosse iluminado, o valor do bit serial; se ficasse escuro, seu valor era 0. Em outras palavras, o computador imaginava a tela como uma grade de pixels, um espaço bidimensional. Os dados, pela primeira vez, teriam uma localização física — ou melhor, uma localização física e
uma localização simulada graficamente por elétrons em vaivéns entre o processador e sua imagem espelhada na tela.
Porém, a grande investida de Engelbart não parou por aí, envolveu o principio da
manipulação direta. Representar um documento de texto como uma janela ou um ícone era uma coisa limitada, a menos que o usuário tivesse algum controle sobre essas imagens e não apenas como uma ilusão remota projetada a poucos fotogramas por segundo. Para que a ilusão de espaço-informação funcionasse, devíamos poder sujar as mãos, mexer as coisas de um lado para outro, fazer coisas acontecerem. Foi aí que entrou a
manipulação direta. Em vez de teclar comandos obscuros, o usuário podia simplesmente apontar para alguma coisa e expandir seus conteúdos, ou arrastá-la através da tela. Em vez de programar instruções complexas de lógica no computador para executar uma tarefa especifica — “abra este arquivo” —, os usuários pareciam fazê-lo eles próprios. A manipulação direta tinha uma qualidade estranhamente paradoxal: na realidade, a interface gráfica havia acrescentado uma outra camada entre o usuário e sua informação. Mas a imediatez táctil da ilusão dava a impressão de que agora a informação estava mais próxima, em vez de mais afastada. Sentimos, assim, que estamos fazendo alguma coisa diretamente com nossos dados, em vez de dizer ao computador que a fizesse por nós
[xxi].
Porém, para isso precisaríamos, é claro, de uma boa ferramenta para fazer todo esse trabalho recém-descoberto. Engelbart inventou duas. A primeira foi um engenhoso substituto para o teclado QWERTY, que usava um sistema de “acordes” de toques, em que cada símbolo era representado por várias teclas premidas simultaneamente. Era consideravelmente mais rápido que um teclado tradicional, sobretudo quando usado com um software otimizado para ele. Infelizmente, exigia que aprendêssemos a datilografar de uma maneira inteiramente nova, exigência que se revelou excessiva para que o dispositivo um dia chegasse a atrair um grande público. Mas a outra ferramenta de input que Engelbart usou naquela tarde de outono em São Francisco acabou por revolucionar o mundo do tratamento da informação reflexiva, embora apenas tenha levado mais de uma década para ganhar forma. Trata-se do que Engelbart chamou de
mouse[xxii].
Como nos computadores atuais, o mouse de Engelbart fazia o papel intermediário de representar tanto o usuário como o espaço de dados. O software operava uma coordenação entre os movimentos da mão do usuário e um ponteiro na tela, permitindo a Engelbar clicar em janelas ou ícones, abrir e fechar coisas, reorganizar o espaço-informação no monitor do tubo catódico. O ponteiro correndo pela tela era o
doppelgänger — o duplo virtual & usuário. O feedback visual dava à experiência seu caráter imediato, direto: se o mouse
fosse movido um centímetro ou dois à direita, o ponteiro na tela faria mesmo. Sem esse vínculo direto, toda a experiência mais pareceria com a de
ver televisão, onde ficamos circunscritos à influência de um fluxo constante de imagens que são mantidas separadas, distintas de nós. O mouse permitia ao usuário entra naquele mundo e manipular realmente as coisas dentro dele, sendo por isso
muito mais que um mero dispositivo apontador[xxiii].
Com sua integração inconsútil de infoespaço mapeado por bits, manipulação direta e o mouse, a demonstração de Engelbart eletrizou a platéia. Aquelas pessoas nunca tinham visto nada parecido, e muitas delas iriam esperar anos para ver algo equivalente. O mundo novo e luminoso do espaço-informação havia despontado de repente, e estava claro que o futuro da computação mudara irreversivelmente. Howard Rheingold foi quem melhor descreveu essa revelação, em Tools for Thought:
“O território que vemos através da janela ampliada em nosso novo veículo não é paisagem habitual de planícies, árvores e oceanos, mas uma paisagem de informação cujos marcos são palavras, números, gráficos, imagens, conceitos, parágrafos, raciocínios, fórmulas, diagramas, provas, corpos de literatura e escolas de crítica. De início o efeito é vertiginoso. Nas palavras de Doug, todos os nossos velhos hábitos de organizar informação são “detonados” pela exposição a um sistema que tem por modelo não o lápis ou máquinas impressoras, mas o modo como a mente humana processa a informação”.
[xxiv]
O significado da Internet
É a partir da emergência de uma cultura da interface que a ascensão da Internet se torna definitivamente importante. A primeira geração de interfaces gráficas (como o Mac ou o Windows) parece tão desproporcional em relação às nossas noções atuais de interatividade porque as tarefas que se apresentam na tela são cada vez mais relativamente simples. Uma interface eficiente permite a um usuário isolado navegar intuitivamente através de seus documentos e aplicações, comunicando-se ocasionalmente ou não com o mundo externo através de módulos de comunicação informacional. A simplicidade da interface reflete a simplicidade das ferramentas que o próprio computador oferece. Nos últimos anos, porém, surgiram no horizonte novas ferramentas, que vão transformando nossos pressupostos básicos com relação ao computador e seu papel social de modo muito mais amplo.
De fato, “ferramenta” não parece ser mais a palavra para isso, pois o que está emergindo agora de fato se assemelha mais a imersões em ambientes/espaços informacionais digitais, como praças, shopping centers, assistentes pessoais, bancos, informações noticiosas, entretenimento, salas de estar, gabinetes, trabalho, seja parado ou em movimento integrado a rotinas locais ou deslocadas de seu meio natural... À medida que nossas máquinas vão sendo cada vez mais plugadas em redes globais de informação, vai se tornando mais difícil imaginar o espaço de dados na ponta dos nossos dedos, e visualizamos reflexivamente uma nova gama de complexidade. Isso nos leva a um nível de abstração que paulatinamente nos induz a esquecermos que estamos, na verdade, mapeando cognitiva e esteticamente o mundo real e vital por ambientes interfaciados de espaços informacionais digitais, e não vivendo como se esses ambientes digitalizados fossem ou esgotassem a complexidade da nossa própria imersão no mundo vital.
No início da década de 1960, McLuhan fez a célebre observação de que viver com tecnologias elétricas e mecânicas ao mesmo tempo era o drama peculiar do século XX. Para McLuhan, o grande drama do século XXI iria se desdobrar sob as estrelas cruzadas entre o analógico e o digital. Como se filtros de informação fossem nos guiar através dessa transição, traduzindo os zeros e os uns da linguagem digital às imagens mais conhecidas, analógicas, da vida cotidiana. Essas metaformas, os mapeamentos de bits, virão agora para ocupar praticamente todas as facetas da sociedade contemporânea, surgindo uma estranha nova zona entre o meio e a mensagem. Essa zona é a interface
[xxv].
Pensamos que a dificuldade de entender este fenômeno do interfaciamento como mais uma mediação da redução da complexidade, como já dissemos, é que faz que o impaciente espírito desdobre-se em crendices pelos meios intelectuais, expandindo confusões e armadilhas entre os agentes reflexivos a sua imprecisão e a indistinção não resolvida entre vida social e sistema social ou socializado. A sobre abstração induzida pela potente ação da computação abstrata, interfaciada por poderosos agenciamentos maquínicos/simbólicos atuais, torna quase que invisível e até mesmo para muitos passa como verdadeira esta distinção, ocorrendo o aprisionamento da representação digital da realidade e onde o agente reflexivo acaba sendo encapsulado como aquele inseto que logo após ser aprisionado nas armadilhas da rede feita pela aranha é encapsulado para posterior alimento pela mesma.
Essa questão é tematizada com muita propriedade por Zygmunt Baumann como a emergência de um novo e acelerado processo de individualização proveniente das novas sociedades reflexivas contemporâneas, em que o autor indaga sobre como lidar nesta sociedade de:
“crianças que pesam que são adolescentes e adolescentes que se recusam a se tornar adultos”...
[xxvi]
A complexidade informacional
Enfatizar a contraditória relação entre a realidade e as formas sistêmicas de representação sempre foi um dos papéis fundamentais da sociologia e do conhecimento complexo, ou seja, uma determinada modalidade de expectativa para captarmos a dinâmica da história deve ser encarada como nada mais, nada menos que um redutor da complexidade vital. Isso porque, por mais interativo que seja um sistema digital, por mais amplificadas que sejam suas modalidades de compartilhamento com a realidade humana e vital de pensar e criar a imaginação sobre o mundo vital, e mesmo que gere novas possibilidades e potencialidades de amplificações reflexivas, ele sempre será um redutor de complexidade e também sempre restringirá novas possibilidades de significação que não estejam vinculadas aos seus parâmetros, bem como, não possibilitará de imediato a implementação de outras normas e valores (recursos reflexivos) que possam ser consensualmente estabelecidos, criados ou criticados. A teoria sistêmica não tem condições de explicar como normas e procedimentos encapsulados se autonomizam, por exemplo, de valores que emergem junto ao sistema e passam a regulamentar as suas interações.
Para admitir que essa contradição entre realidade sistêmica e realidade vital não aconteça, os neopositivistas deveriam abrir mão da categoria de sistema (ambiente digital) — poderiam, por exemplo, falar de rotinas interativas digitais esparsas ou abertas. Porém, isso não altera a perspectiva de interações de baixa constituição de significados na interação dialógica, frente à constituição de significados previamente estabelecidos que, por um lado, precisam
ser internalizados pelos atores para que eles possam comportar-se de acordo com as orientações sugeridas, e, por outro,
institucionalizarem-se em papéis previamente instituídos, mesmo que através de procedimentos de elevada reflexividade, pois sem isso não seria possível que os mesmos tenham validade social. Enfim, sem esta clareza na distinção entre representação sistêmica da realidade e realidade vital, trata-se, dentro de uma formulação habermasiana, de apenas mais uma nova expressão da modalidade de colonização da racionalidade instrumental sobre o mundo da vida
[xxvii].
O conhecimento só pode emergir de modo emancipatório e complexo em situações dialógicas, em que ego e alter atribuem significados às coisas, às pessoas e às suas relações com significados que são consensualmente elaborados e em que, mesmo ocorrendo relações sociais sem rosto (não diretamente presencial), que são cada vez mais importantes no mundo contemporâneo, sejam também reciprocamente respeitados a autoconstrução consensual dos processos significantes, e para que possa ocorrer a emancipação reflexiva é necessário um grau elevado de liberdade inadmissível para a concepção sistêmica. Estou convencido de que os conceitos de sistema/ambiente neopositivista e o de informação complexa são incompatíveis em muitos aspectos.
A indistinção entre representação e realidade, a mecânica substituição do conceito de informação ou interação informacional pelo de conhecimento, a indistinção entre relações sociais com rosto e sem rosto e suas implicações para a construção do conhecimento complexo e a definição prioritária da função sistêmica como “redução de complexidade” (ambientes/espaços de informação), constituem muitos dos temas vulneráveis da teorização da nova modulação determinista de conhecimento sistêmico programável proveniente das tecnologias de informação e comunicação.
Para libertar-se do saber disciplinar não necessitamos adquirir e produzir sistemas/ambientes de encapsulamento, e sim implantar procedimentos e processos sociais com ou sem rosto que constituam e aprimorem efetivamente a emergência de uma nova cultura para acesso e construção do conhecimento reflexivo e complexo, que incentive novos papéis de trocas e reflexividades em ambientes semipresenciais ou presenciais. Que (des)disciplinizem, que (des)asfixiem o conhecimento, que (des)controlem e flexibilizem suas estruturas de controle racional e normatizadas para que possam emergir novos agentes reflexivos, o que Giddens chamou apropriadamente de substituição da idéia de controle racional pela de monitoramento reflexivo
[xxviii]. Necessita-se, também, potencializar a ampliação sensória da subjetividade, do lúdico, permitindo o crescimento afetivo/emocional e maduro também da inteligência não-cognitiva (reflexividade estética)
[xxix].
Uma perspectiva meramente fenomenológica das interações entre os redutores da complexidade se satisfaria apenas com os fenômenos advindos da experiência primeira dessas interações, emergindo um saber e um agir pouco reflexivos. Além disso, uma perspectiva sistêmica não permite sequer darmos conta satisfatoriamente das novas emergentes subjetividades que o tratamento digital da realidade potencializa. As próprias pesquisas de identidade na rede digital indicam um caminho contrário, em que as interações digitais, a partir da integração entre cultura e interface, permitem um alargamento da dobra subjetiva, uma expansão desterritorializada do(s) eu(s) e da realidade em rede com os outros, que podem, inclusive, possuir também múltiplos eus realizados por interações não-presenciais.
[xxx].
Porém, a ação interativa não é apenas uma combinação de
“atos”. Como nos disse Giddens, os “atos” são constituídos apenas por um momento discursivo de atenção à
durée da experiência vivida
( a estratificação do
self) . Assim a durée trata-se da forma especificamente reflexiva da cognoscitividade dos agentes humanos, que está mais profundamente envolvida na ordenação recursiva das práticas sociais. A continuidade de práticas presume reflexividade, mas esta, por sua vez, só é possível devido à continuidade de práticas que a tornam nitidamente “a mesma” através do espaço e do tempo (o que retém não como apenas registro físico ou algorítmico de memória). Logo, a “reflexividade” deve ser entendida não meramente como “autoconsciência”, mas como o caráter monitorado do fluxo contínuo da vida social. Para Giddens, o ser humano é potencialmente um agente intencional, que tem razões para suas atividades e também está apto, se solicitado, a elaborar discursivamente essas razões (inclusive mentindo a respeito delas)
[xxxi].
Assim, para Giddens, os atores não só controlam e regulam continuamente o fluxo de suas atividades e esperam que outros façam o mesmo por sua própria conta, mas também monitoram rotineiramente aspectos sociais e físicos, dos contextos em que se movem. (Monitoramento reflexivo — autonarrativa.)
Em circunstâncias de interação — encontros e episódios —, a monitoração reflexiva da ação incorpora tipicamente, e uma vez mais rotineiramente, a monitoração do cenário onde essa interação se desenrola; esse fenômeno é básico para a interpolação da ação dentro das relações espaço-temporais do que Giddens designa parafraseando a fenomenologia como “co-presença”. A monitoração reflexiva da ação depende da complexificação da ação e é entendida aqui mais como um processo do que como um estado funcional para o controle racional ou normativo do velho estruturalismo.
A confusão entre a criação de sofisticados redutores reflexivos para representar e permitir explicarmos os fenômenos sociais e naturais do cosmos, do universo, das sociedades pelo conhecimento complexo e a sua fusão como crença sobre se seriam eles mesmos a própria realidade que esses redutores de complexidade pretendiam explicar, não é monopólio dos neopositivistas ingênuos da atualidade. Esse processo esteve presente durante quase toda a longa história do pensamento humano, em que os redutores de complexidade transformaram-se, com freqüência, em imagens mentais que nos dizem muito pouco sobre o universo e a realidade, e muito mais sobre interações de fenômenos ocorridos nessas sociedades em que essas mesmas imagens estão imersas no seu contexto e circunstâncias.
Vejamos alguns exemplos históricos dessa confusão:
· Para alguns pensadores gregos antigos que criaram uma perspectiva teleológica sobre o mundo como produto dos primeiros estudos sistemáticos das coisas vivas, o universo era um grande organismo; para outros pensadores gregos, que julgavam que a geometria devia ser reverenciada acima de todas as demais categorias de pensamento, o universo era uma harmonia geométrica de formas perfeitas.
· Mais tarde, na época em que foram criados os primeiros relógios mecânicos e mecanismos de pêndulo, a imagem do universo pós-newtoniano era vista como um preciso mecanismo funcional e tornou-se dominante por longos e longos anos. Mil naves apologéticas partiram em busca de decifrar o relojoeiro cósmico.
· Para os vitorianos da Revolução Industrial, o paradigma preponderante foi a máquina a vapor, e as questões físicas e filosóficas que ela suscitava, em relação às leis da termodinâmica e ao destino final do universo e da vida, levavam essa marca de uma época de máquinas geniais.
O relógio, o motor a vapor e o computador inspiraram arcabouços metafóricos para a ciência. Newton descreveu o universo em termos do movimento governado por forças, da mesma forma como as partes móveis do mecanismo de um relógio eram acionadas por um sistema de pesos e roldanas. Essa visão mecanicista constituía um referencial conveniente para explicar por que as coisas acontecem e de que forma as coisas mudam, sejam “maçãs caindo na cabeça de pessoas” ou planetas e luas eclipsando uns aos outros. A idéia básica de força constituiu, portanto, o fundamento no qual outras ciências podiam se apoiar.
Assim, em nossos dias, talvez a imagem do universo e da vida como um computador ou a metáfora da rede nada mais sejam que o último prolongamento previsível de nossos hábitos de pensamento, de querermos construir redutores que assumam a crença por parte de toda uma geração civilizatória, de substituir a realidade, o universo por uma representação redutora. Não devemos esquecer que, ao mantermos tal hábito, amanhã o paradigma de hoje poderá ser outro. Na emergência do novo milênio (ao que parece), a lógica digital vem tentando impor-se como um novo redutor-modelo de explicação do cosmos, seja através da metáfora computacional, seja através da metáfora da Rede.
Pierre Lèvy não está sozinho; podemos também encontrar essa posição na mais recente obra do sociólogo contemporâneo Manuel Castells. Apesar de nos brindar com um imenso catálogo de dados e fenômenos, vinculados sobre a emergência no mundo das tecnologias de informação nas diferentes sociedades do planeta, esse sociólogo –—diferentemente de Lèvy —, apesar de refletir e pesquisar sobre a emergência do fenômeno informacional contemporâneo, foca sua abordagem numa perspectiva macrossocial, desconsiderando o determinismo tecnológico. Porém, ele também se encontra envolto na metáfora da rede, dando-nos a entender uma dificuldade de distinção entre redutor/rede como representação da realidade e o entendimento dessa mesma realidade que se pretende explicar. Para Castells, vivemos uma revolução tecnológica concentrada nas tecnologias da informação, que está remodelando a base material da sociedade em ritmo acelerado
[xxxii]. Em suas próprias palavras:
“Nossas sociedades estão cada vez mais estruturadas em uma oposição bipolar entre Rede e Ser”.[xxxiii]
O ser/rede de Castells são estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada, integrando novas modalidades de comunicação interativa através de nódulos informacionais de comunicação aberta, desde que, para isso, compartilhemos os mesmos códigos. A rede, para Castells, é uma estrutura social com base em redes, um sistema aberto altamente dinâmico, suscetível de inovação sem ameaças ao seu equilíbrio. Redes são instrumentos apropriados para a economia capitalista baseada na inovação, globalização, concentração e desconcentração, e, também, desconcentração e descentralização; para o trabalho, trabalhadores e empresas voltados para a flexibilidade e adaptabilidade; para uma cultura de desconstrução e reconstrução contínuas; para uma política destinada ao processamento instantâneo de novos valores e humores públicos; e para uma organização social que vise à suplantação do espaço e invalidação do tempo.
Porém, diferentemente dos neopositivistas, Castells adverte que a morfologia da rede também é uma fonte de drástica reorganização das relações de poder. As conexões que ligam as redes (por exemplo, fluxos financeiros assumindo o controle de impérios da mídia que influenciam os processos políticos) representam os instrumentos privilegiados do poder. Assim, os conectores são os detentores do poder. Uma vez que as redes são múltiplas, os códigos interoperacionais e as conexões entre redes tornam-se as fontes fundamentais da formação, orientação e desorientação das sociedades. A convergência da evolução social e das tecnologias da informação criou — para o autor — uma nova base material para o desempenho de atividades em toda a estrutura social. Essa base material construída em redes define, para ele, os processos sociais predominantes, conseqüentemente dando forma à própria estrutura social.
Castells mantém sem explicitar claramente a perspectiva marxiana de síntese capitalista, cunhada agora por ele como modo capitalista de produzir o conhecimento. O autor demonstra que o capitalismo industrial, ainda que continuando a ser capitalismo, passa a ser agora cada vez mais capitalismo informacional. Trata-se de uma análise da perspectiva informacional de inflexão marxista, muito próxima da abordagem de Jean Lojkine realizada anteriormente em seu livro
A Revolução Informacional[xxxiv], em que, entre muitas questões analíticas, o autor especifica uma abordagem estrutural da revolução informacional, precisando muito detalhadamente o que ele defende ser a relação entre forças produtivas e revolução informacional (sistemas sociotécnicos). Castells, ainda que um pouco mais distanciado da proposição clássica das forças produtivas, apresenta sua tese da sociedade em rede, dentro da abordagem que distingue
modo de produção de
modo de desenvolvimento. Ele trata o impacto informacional como um modo de desenvolvimento dentro do modo de produção capitalista.
No seu projeto, Castells quer enfrentar tanto os profetas do determinismo tecnológico como as culturas pós-modernas com suas várias formas de niilismo intelectual
[xxxv]. Para ele, essas duas perspectivas acabam num reducionismo mágico da captura individualista ou do fundamentalismo. Ele utiliza como procedimento para este enfrentamento um esforço analítico com base em dados disponíveis e em uma teoria exploratória
[xxxvi].
Para Castells, o primeiro passo para a sociologia dar conta das mutações contemporâneas seria romper com a gênese moldadora de uma identidade industrial e levar a tecnologia a sério. É claro que, como ele afirma: “A tecnologia não determina a sociedade... dado que a tecnologia é a sociedade”
[xxxvii]. Assim, o dilema do determinismo tecnológico é infundado, pois “a sociedade não pode ser entendida ou representada sem suas ferramentas tecnológicas”
[xxxviii].
Para o autor, a revolução da tecnologia da informação foi essencial para a reestruturação do “sistema capitalista” a partir da década de 80. Castells cita os esforços de outros analistas com tradição nas teorias pós-industrialistas, como Daniel Bell e Alain Touraine, para dar conta desta problemática. Porém, diferentemente desses analistas, Castells distingue o pré-industrialismo do industrialismo e do informacionalismo (e não pós-industrialismo). Castells, no entanto, mantém como fundamental para o entendimento da complexidade societal atual uma distância analítica mas inter-relacionada empiricamente com os modos de produção (capitalismo, estatismo) e os modos de desenvolvimento (industrialismo e informacionalismo)
[xxxix].
O informacionalismo enquanto modo de desenvolvimento é que impulsiona uma nova estrutura social, manifestada sob várias formas conforme a diversidade das culturas e instituições em todo o planeta, mas esse modo de desenvolvimento está historicamente moldado na reestruturação do modo capitalista de produção
[xl]. Assim, para Castells, os processos de transformação social sintetizados na nova sociedade em rede ultrapassam a esfera de relações sociais e técnicas e afetam a cultura e o poder de forma profunda.
Castells descreve assim os três tipos de padrões encontrados na história da experiência humana:
“O primeiro modelo de relação entre esses dois pólos fundamentais da existência humana foi caracterizado, há milênios, pela dominação da Natureza sobre a Cultura...
O segundo modelo de relação, estabelecido nas origens da Era Moderna e associado à Revolução Industrial e ao triunfo da Razão Moderna, (ainda que compreendendo e formando-se uma sociedade a partir do processo de trabalho por meio do qual a Humanidade encontrou tanto sua libertação das forças naturais quanto a submissão aos próprios abismos de opressão e exploração).
Estamos entrando em um novo estágio, em que a Cultura refere-se à Cultura, tendo suplantado a Natureza a ponto de a Natureza ser renovada (´preservada´) artificialmente como uma forma cultural; de fato, este é o sentido do movimento ambiental, reconstruir a Natureza como uma forma cultural ideal. Em razão da convergência da evolução histórica e da transformação tecnológica, entramos em um modelo genuinamente cultural de interação e organização social. Por isso é que a informação representa o principal ingrediente de nossa organização social, e os fluxos de mensagens e imagens entre as redes constituem o encadeamento básico de nossa estrutura social...
É o começo de uma nova existência e, sem dúvida, o início de uma nova era, a era da informação, marcada pela autonomia da cultura
vis-à-vis às bases materiais de nossa existência. Mas este não é necessariamente um momento animador, porque, finalmente sozinhos em nosso mundo de humanos, teremos de olhar-nos no espelho da realidade histórica. E talvez não gostemos da imagem refletida” (grifos nossos).
[xli]
Infelizmente a sistematização da volumosa pesquisa e obra realizadas por Castells ainda indica uma dificuldade do autor em diferenciar-se claramente entre as reduções de complexidade presentes na
compressão formal (bit) e
compreensão do significado de informações. Conforme nos indica a perspectiva da complexidade de Edgar Morin, não podemos nos prender mecanicamente a mediações de baixa complexidade frente à complexa problemática da
compreensão do significado de informações (sejam elas alfanuméricas, textuais, segmentos de imagens em movimento ou não)
[xlii].
Nesse sentido, entendemos que a compressão executada com ajuda de uma máquina de processamento de informação é muito potente e precisa, sobretudo e praticamente no âmbito da computabilidade e da listabilidade. Daí resulta uma questão ligada a que compreensão de diferentes modalidades de dados não é necessariamente compressão algorítmica/computacional, e que interatividade na investigação e na produção do conhecimento e do saber sociológico não se restringe ao tratamento digital da informação potencializada ou não por novas camadas de nódulos reflexivos de interação.
Para finalizar esses comentários sobre a sociedade/realidade rede de Castells, vou utilizar-me novamente da ficção e expor um pequeno diálogo sobre a rede que travei com Pablo Neruda — certamente, ele nunca soube que este diálogo existiu. Trata-se de uma adaptação de um dos enigmáticos textos desse poeta original cujo nome cunhei de: "Presos a uma Rede dentro do Vento". Vejamos:
Incrível a nossa capacidade criativa. Inventamos uma rede mundial para navegarmos entre portos digitais, ora aqui, ora acolá.
Depois de um dia exausto de navegação me pergunto: Nenhum beijo, nem um queijo?
Olho para trás em tempo real e observo minha navegação realizada num oceano de bits e pixels mutantes. Neste momento apagam todas as imagens e sons digitais, apenas sinto o barulho de minha mão humana a manusear este teclado lógico.
Na minha mente vem imediatamente uma imagem de um mar, deserto, estou sozinho numa praia imensa a olhar seus movimentos e ouvir suas mensagens entre as ondas, que se batem umas as outras.
Das profundezas deste mar de velozes ondas no qual vagueio, existe vida?
Pablo Neruda uma vez nos perguntou:
- O que uma lagosta tece lá embaixo com seus pés dourados? Por quem a medusa espera em sua veste transparente?
Tempo, sempre o tempo. Apenas o oceano sabe. Aqui envolto na velocidade da superfície saltitante entre elos de ondas digitais, jamais poderei saber.
Para saber terei que ir em direção ao oceano e ficar a escutá-lo? Escutá-lo? Diriam os cépticos. Sim, escutá-lo, se até o silêncio fala, imaginem o que podemos ouvir do oceano.
Cá estou eu de novo, na minha imagem, agora sentado numa pedra a ouvir o oceano. Através do barulho de suas ondas, sinto ele me perguntar:
— O que esperas? Esperas pelo tempo?
— Não! —respondo imediatamente. —Quero saber a quem as algas apertam em seu abraço.
De novo um silêncio gritante de ondas que se batem. Nada, nenhuma resposta, nada.
Pergunto mais uma vez, agora sobre as plumas do rei-pescador que vibram nas puras primaveras dos mares do sul. E nada, de novo, apenas de novo o silêncio ensurdecedor das ondas que batem. Nada de novo.
Nada me resta a fazer, retiro um livro de poesia do bolso. É Neruda de novo, abro e lá estava escrito algo sobre o que o oceano sabe. Eis que poderei então saber o que o oceano sabe, eis que posso findar o meu choro e meu lamento.
Pacientemente viro a folha e lá estava:
— A vida, meu caro, em seus estojos de jóias, é infinita como a areia incontável, pura; e o tempo, entre uvas cor de sangue, tornou a pedra lisa, encheu a água-viva de luz, desfez o seu nó, soltou seus fios musicais de uma cornicópia feia de infinita madrepérola.
É isto? Mas quem sou eu? Me pergunto. Sou uma unidade de carbono presa numa rede de silício poluída de nós vazios diante dos olhos? Estamos diante da escuridão habituados à longitude que pelos dedos tornar habitantes planetários de um imenso info mar, devidamente reduzido a um pequeno tubo catódico?
Volto a Neruda e leio:
— Caminho como tu — amigo —, investigando as estrelas sem fim e em minha rede, durante a noite, acordo nu.
Então por que só surfar? Penso. Por que apenas deslizar sobre a superfície rasa das ondas? Por que não dar um mergulho nas profundezas? Por que não mergulhar onde as lagostas tecem seus pés dourados?
Tempo, de novo sempre o tempo. Queremos o tempo real, mas o novo tempo dominante quer apenas habitar ondas na velocidade da luz.
É isto, a velocidade passou a ser minha própria morada, meu espaço existencial.
Olho de novo para trás do oceano de ondas digitais por onde naveguei, e sinto-me como Neruda, também nu.
Volto a Neruda e por fim leio:
—Amigo, este é o meu lamento, o lamento de uma esperança que finda.
Buscamos investigar nossa estrela infinita e quando nos damos conta somos um peixe preso dentro do vento.
É isto!Só posso ser um peixe dentro do vento. Somos agora nada mais do que um peixe preso numa rede dentro do vento.
Conclusão
A moderna informação da rede digital, por exemplo, limita-se a ser parte emersa de um iceberg profundo do
conhecimento e da realidade vital. Uma complexa teoria da informação não poderia deixar de ser meta-informacional, isto é, só pode se realizar quando integrada, articulada e “ultrapassada” no seio de uma teoria complexa do conhecimento e da organização
[xliii].
Para concluirmos que a computação é a representação e a simbiose mais complexa entre a realidade e o conhecimento, teríamos de constatar que o universo só faz coisas computáveis. Assim como nos advertiu Morin, o
bit (binary digit) é uma unidade elementar de medida que concebe a informação como grandeza física. O bit não mede nada fora das transmissões de sinais. Quando transportamos informações para fora da órbita dos sinais, o bit desaparece. Essa idéia mítica pode levar-nos a uma compreensão simplificada, de que é a informação que mede a organização
[xliv].
Não existe apenas a palavra “código” para exprimir a natureza da informação, nem apenas a palavra “programa” para exprimir a sua generalidade. Não se trata de rejeitar esses termos. Trata-se de não nos encerrarmos dentro deles. A informação não é nem o mito nem o bit. Pelo contrário, a visão complexa da informação leva-nos a uma sociedade comunicacional, em que a informação opera para a comunicação, e não ao contrário.
Enfim, uma boa dose dessa confusão é causada pelo fato de os informaticistas usarem termos como “inteligência”, “memória” e “linguagem” para descrever os recursos computacionais — e como essas expressões se referem aos fenômenos humanos, induzem os cientistas a graves equívocos. Por exemplo, a complexidade mesma da inteligência consiste em agir de maneira adequada quando um problema não é claramente definido e as soluções não são evidentes. Nessas situações, o comportamento humano inteligente baseia-se em práticas e reflexões existenciais acumuladas por múltiplas experiências vividas. A impotência da “simples” capacidade de abstrair, até a inexistência de dimensões mais profundas de consciência e compreensão complexa, bem como as limitações intrínsecas das operações algorítmicas formais dos artefatos digitais, torna-os impossibilitados de serem dotados da sábia maturação complexa de conhecimento.
No entanto, ao nos colocarmos diante da problematização da inteligência coletiva do ciberespaço de Pierre Lèvy e da relativização da ideia da sociedade em rede presente, sobretudo, de Manuel Castells, não queremos também, de modo algum, desmerecer os impactos que as tecnologias digitais da informação vêm imprimindo na sociedade e nos processos de conhecimento. Ao contrário, o que as tecnologias digitais da informação podem fazer é potencializar ainda mais nossa imersão complexa no conhecimento — jamais substituir essa imersão ou até mesmo impor um modelo determinado de realidade (computação abstrata).
Enfim, tanto quanto para os velhos positivistas como para os atuais neopositivistas e deterministas tecnológicos, o conceito de razão não se aplica ao campo da moral, da afetividade e da ressonância sensória mais profunda e complexa da energia vital. Habermas já havia postulado a um bom tempo no debate com a teoria sistêmica de Lhumann um conceito mais complexo de razão, a razão comunicativa ou dialógica. Também para além da euforia do determinismo tecnológico podemos encontrar, por uma perspectiva diferente, mas com a mesma profundidade crítica, a idéia de inteligência da complexidade postulada por Edgar Morin
[xlv] e a partir daí entendermos porque:
“Os seres humanos quanto mais se complexificam menos aptos se tornam para resolver os problemas coletivos complexos que eles mesmos criam. Diferentemente das formigas, que se comportam como geniais agentes coletivos e profundas idiotas individuais, os humanos estão se transformando cada vez mais em geniais agentes individualizados e cada vez mais um profundo idiota coletivo.”
[xlvi]
Notas
[i] Como contraponto da perspectiva da compressão (não compreensão) da modalidade do conhecimento e de conhecer, ver a sofisticada proposta de Edgar Morin, principalmente em:
Inteligência da Complexidade. São Paulo: Peirópolis, 2001.
[ii] As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro : Ed. 34, 1993.
[iii] Ver: LÉVY, P.
O que é o virtual. Rio de Janeiro, Editora 34, 1996;
A inteligência coletiva. São Paulo ; Loyola, 1998;
À Máquina do Universo: criação, cognição e cultura informática. Porto Alegre: Artméd, 1998;
O Fogo Liberador. São Paulo: Iluminuras, 2000;
A Conexão Planetária. São Paulo: Ed 34, 2001.
[iv] Ver, romance juvenil do ficcionista e criador da idéia de ciberespaço: GIBSON, Willian.
Neuromancion (Neuromancer). Paris : la découverte, 1985.
[v] MATURANA, Humberto Romesín e VARELA
, Francisco J. Garcia.
De máquinas e seres vivos. Autopoiese: a organização do vivo. Porto Alegre : Artes Médicas, 1997.
[vi].Citado in TRUZZI, Marcelo. Sherlock Holmes: psicólogo social aplicado. In ECO Umberto et ali.
O Signo de Três". São Paulo: Perspectiva: 1991.
[vii] Encontramos na literatura científica atual alguns autores importantes que estão trabalhando a temática Sherlockiana da investigação e sua relação com a produção do saber como o conhecido italiano Humberto Eco, o também italiano Marcelo Truzzi, Thomas A. Sebeock, Jean Umiker, Sebeok Gran Paolo Carettini, ente outros. Esses autores podem ser encontrado na presente na coletânia - Estudos - da Editora Perspectiva na obra intitulada: "O Signo de Três". Esta obra é composta por artigos de diversos autores que relacionam Sherlock Holmes a produção do saber e sobretudo, mais especificamente, a semiótica.
[viii] LIMA, Gilson. A síndrome de Frankeinstein: mitos, magias e limites da moderna informação numérica (computacional)
. Revista de educação, ciência e cultura, Canoas, Unilasalle, v. 4, n.1, p 79-86, 1999.
[ix] DAMÁSIO, Antônio.
O Erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. São Paulo: Companhia de Letras, 1996: 127-128.
[x] DAMÁSIO, 1996: 128.
[xi] Ver: BROCKMAN, “John.
“Digerati: encontros com a elite digital”. Editora Campus: Rio de Janeiro, 1998, principalmente as idéias do astrofísico Cliff Stoll que se encontram nas páginas 237-244.
[xii] WERTHEIM, Margaret.
Uma história do espaço: de Dante à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: 2001: 195.
[xiii] WERTHEIM: 2001: 196.
[xiv] Ver: ELIADE, Mircea.
The Sacred and Profane: The Nature of Religion. San Diego, Harcourt Brace, 1987.
[xv] Ver principalmente: BECK U. et all.
Modernização reflexiva: Política, tradição e estética na ordem social moderna. Organizado por Ulrich Beck , Anthony Giddens e . São Paulo: Unesp, 1997.
[xvi] LUHMANN, Niklas.
A Nova Teoria dos Sistemas. Org. por Clarissa Eckert Baeta e Eva Machado Barbosa Samios – Porto Alegre: Universidade?UFRGS, Goethe – Institut/ICBA, 1997.
[xvii] Ver HABERMAS, Jürgen. Ver principalmente: 1)
Técnica e Ciência como ideologia. Lisboa: 1968; 2)
Conhecimento e interesse. Trad. Heck, José N. Rio de Janeiro : Guanabara, 1987. 367 p. Trata-se de um texto de 1968 e cuja visão das mediações entre conhecimento e interesse reviu mais tarde. 3)
O discurso filosófico da modernidade. São Paulo, Martins Fontes: 2000.
[xviii] JOHNSON, Steve.
Cultura da Interface. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001: 15.
[xix] JOHNSON, 2001: 17.
[xx] Trata-se da “interface gráfica do usuário” (ou GUI), desenvolvida inicialmente pelo Palo Alto Research Center da Xerox na década de 1970 e depois popularizada pelo Macintosh da Apple. A adoção generalizada dá GUI operou uma mudança colossal no modo como os seres humanos e os computadores interagem, e expandiu enormemente a capacidade de usar os computadores entre pessoas antes alienadas pela sintaxe misteriosa das interfaces mais arcaicas das “linha de comando”. As metáforas visuais que a demonstração de Engelbart produziu pela primeira vez na década de 1960 tiveram provavelmente mais a ver com a popularização da revolução digital do que qualquer outro avanço já registrado no campo do software. (Ver: JOHNSON, Steve.
Cultura da Interface. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001: 18).
[xxi] JOHNSON 2001: 21-22.
[xxii] JOHNSON 2001: 22.
[xxiii] JOHNSON 2001: 22.
[xxiv] JOHNSON 2001: 22-23.
[xxv] JOHNSON 2001: 35.
[xxvi] BAUMAN. Zygmunt.
Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001: 45.
[xxvii] HABERMAS,
Teoría de la acción comunicativa. Volume 1. Madrid: Taurus, 1987: 465-508.
[xxviii] Giddens diz não a experiência do ator individual e não a existência de qualquer forma de totalidade social, mas sim
as práticas sociais ordenadas no espaço e no tempo onde as atividades sociais humanas, são
recursivas e continuamente
recriadas por atores sociais (“cognoscitividade”). GIDDENS, Anthony.
A Constituição da Sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 1989: 4-5.
[xxix] Nietzsche, num dos seus primeiros ensaios, “Über Lüge und Wahrheit”, afirma que a
mimese proporciona um maior acesso à verdade que o pensamento conceitual. Ele proclama que os conceitos teóricos são pouco melhores que as versões dissecadas das metáforas miméticas, e que em sua fixidez abstrata e estéril eles carecem da flexibilidade necessária à verdade. LASCH, Scott. A Reflexividade e seus duplos, in
Modernização reflexiva: Política, tradição e estética na ordem social moderna. Org. Ulrich Beck & Anthony Giddens. São Paulo: Unesp, 1997: 165.
[xxx] Sherry Turkle escritora e professora de sociologia da ciência no Instituto de Tecnologia de Massachussetts. Ver principalmente: TURKLE, Sherry. 1)
The Second Self: Computers and the Human Spirit (O Segundo Eu: Computadores e o Espírito Humano) Simon and Schuster, 1984: Touchstone paperback, 1985: segunda edição revisada, MIT Press, 1997; 2)
Life on the Screen: Identity in the Age of the Internet. New York: Simon and Schuster, 1995. Ver Também Allucquère Roseanne Stone. Virtual System.
Incorporations, Zone nº. 6, Jonathan Cracy e Sanford Kwinter (ed.). Nova York, 1992.
[xxxi] GIDDENS, Anthony.
A Constituição da Sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 1989: 52-58.
[xxxii] CASTELLS, Manuel.
A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999: p. 21.
[xxxiii] CASTELLS: 1999, p. 23.
[xxxiv] LOJKINE, Jean.
A Revolução Informacional. São Paulo: Cortez, 1995.
[xxxv] CASTELLS: 1999: 25.
[xxxvi] CASTELLS: 1999: 24.
[xxxvii] CASTELLS: 1999: 25.
[xxxviii] CASTELLS: 1999: 25.
[xxxix] CASTELLS: 1999: 34.
[xl] CASTELLS: 1999: 33.
[xli] CASTELLS: 1999, p. 505-506.
[xlii] MORIN, Edgar.
Inteligência da Complexidade.São Paulo, Peirópolis, 2000.
[xliii] MORIN, Edgar.
O método 1: a natureza da natureza
. Portugal : Publicações Europa-América, LDA, 1987.
[xliv] MORIN,1987. MORIN, Edgar.
O método 1: a natureza da natureza
. Portugal : Publicações Europa-América, LDA, 1987.
[xlv] Ver principalmente: MORIN, Edgar. 1)
O método 1: a natureza da natureza
. Portugal : Publicações Europa-América, LDA, 1987; 2)
O método 2: a natureza da vida. Portugal : Publicações Europa-América, LDA, 1989, 3)
Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Bertend Brasil, 2000 e 4) Em parceria com Jean-Louis Moigne e já citada obra:
A Inteligência da complexidade. São Paulo: Peirópolis: 2000.
[xlvi] Essa passagem é uma adaptação das idéias de um artigo recente Joël Rosnay, onde o autor chama a nossa atenção para o fenômeno do ser humano enquanto um profundo idiota coletivo. Ver: ROSNAY, j. in
Ensaios de Complexidade. Org. por CASTRO, G. et all. Porto Alegre: Sulina, 2002: 219-236.