sexta-feira, 6 de novembro de 2020

UM POUCO DE HISTÓRIA: para entender a crise do moderno paradigma da ciência

Gilson Lima


 

Para entender a transição atual do paradigma da ciência na complexidade é preciso compreender o  paradigma astrológico (pré-moderno) para o moderno paradigma cartesiano-newtoniano e a emergência da complexidade


Quando um paradigma termina? Qual o legado que ele deixa (continuidade)? Com o que ele rompe? Quais são as novas opções e os novos caminhos? O que, da sua narrativa, organização, princípios, são obsoletos e deixados para trás?

Se o termo moderno é muito amplo para ter um significado, imaginemos, então, a longa duração do paradigma pré-moderno que, aqui, chamaremos de astrológico. Quanto tempo pode durar um paradigma?

Até quando transitará o moderno paradigma? Até quando teremos que conviver na proliferação desconstrutiva dos prefixos pós (pós-moderno, pós-modernismo, pós-industrial, pós-humano...), que experimentamos desde a década de 60, ainda no século anterior? E, ainda: quando religaremos o conhecimento às novas e complexas construções simbióticas (de symbíon, de fazer junto)?

Muito já se escreveu sobre o novo paradigma da complexidade, assim vamos, por questões de tempo e precisão, concentrarei apenas em registrar algumas descrições históricas e didáticas da emergência da complexidade. Para isso, vamos voltar um pouco no tempo, e verificar de onde viemos, do ponto de vista paradigmático, ou seja, o paradigma astrológico pré-moderno e, em que consistiu a ruptura paradigmática moderna.

Para nossos fins, vamos ater-nos neste artigo, a explicitar dois grandes princípios básicos, que conduziram toda a história do paradigma astrológico pré-moderno numa mesma concepção paradigmática de mundo e vamos estabelecer relações, diálogos com as devidas rupturas e escolhas operadas no macroparadigma da modernidade simples, em detrimento do paradigma astrológico. Ao mesmo tempo, sempre que possível, vamos introduzir diálogos nessa comparação, de modo também transversal, com as rupturas e ressignificações atuais encontradas no macroparadigma da complexidade.

Vejamos os dois grandes princípios básicos que conduziram toda a história do paradigma astrológico (pré-moderno):

1) O princípio da similitude



Produzir conhecimento, para os pré-modernos, era como manusear um caldeirão de sopa, com diferentes ingredientes, de modo não fragmentário e não disciplinar no qual tudo se aproximava, e em que se buscava uma aproximação.

O princípio da similitude revela uma maneira muito própria de os pré-modernos produzirem e manusearem o conhecimento. Michel Foucault já tinha afirmado a ideia de que o saber, no Século XVI, deixava (para trás) uma lembrança de um conhecimento misturado e sem regra, em que todas as coisas do mundo podiam aproximar-se ao acaso das experiências, das tradições ou das credulidades. (FOUCAULT, 1987).

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UM EXEMPLO 

A mensuração  de Erasthóstenes foi, sem dúvida, o experimento científico mais extraordinário da Antiguidade.

Em si, ele é de uma notável engenhosidade, mas demonstra principalmente o alto grau de inventividade e de inovação do gênio que viveu no século III a.C. Na verdade, a operação efetuada por Erastóstenes no Egito ptolomaico pressupõe duas aquisições maiores. Uma é intelectual: a noção de esfericidade da Terra; a outra é técnica: um instrumento adequado para medir o comprimento do meridiano.

 Erastóstenes partiu de três postulados:

 A) Escolheu uma cidade Siena (a atual Assuan) para medir a sua distância, pois para ele Alexandria e Siena estavam ambas situadas sob o mesmo meridiano. Assim, o Sol culminava todos os dias no mesmo momento, e logo era meio-dia se daria no mesmo momento, nos dois lugares[1];

B) A distância que separava as duas cidades foi definida como de 5.000 estádios[2];

C) Os raios provenientes de diferentes pontos do Sol tocavam os diferentes pontos da Terra segundo linhas paralelas.

 Obs.  [1] Na verdade, o primeiro postulado era inexato. Siena estava situada 3º mais a leste do que Alexandria e lá meio-dia é 12 minutos mais tarde.

[2] Quanto ao segundo postulado, tudo dependeria da precisão do valor atribuído ao estádio. Alguns historiadores afirmam que Erastóstenes contratou um homem para medir a pé a distância entre Alexandria a Siena (a qual sabemos hoje é localizada a 800 km de distância da antiga Alexandria – o que seria uma caminhada e tanto). Segundo esses mesmos  historiadores a distância foi medida com passos para realizar os cálculos de sua experiência. O valor foi após convertido por Erastóstenes em medida muito utilizada na época, ou seja, a medida de um estádio. O valor atribuído a um estádio na época pode variar de 147 a 192 metros. Ao que parece, 

Erastóstenes definiu-se por um valor intermediário entre os dois chegou ao que poderíamos converter hoje como 40.000 Km da esfera e é muito próximo da precisão dos sofisticados satélites de hoje. Fez isso com: Paus, sombras, pé e o cérebro há mais de 300 anos A.C.

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Os pré-modernos manejavam um sistema de similitudes que consistia em aproximar as coisas entre si, em buscar tudo o que pudesse revelar-se nelas como um parentesco. Entretanto, com a imposição moderna de pensar, este processo se alterou profundamente.



Os modernos, ao contrário, em vez de aproximar, buscaram discernir as coisas, isto é, separá-las e estabelecer diferenças, classificá-las para depois rearranjá-las num mecanismo totalizante, numa nova totalidade pensada racionalmente, diferenciando a arte da ciência; o sujeito, do objeto; a objetividade, da subjetividade; a natureza da cultura; a emoção, da razão e a mente do corpo. Os modernos almejam a fragmentação especializada do saber para disciplinar o corpo, o olho, a objetiva em face da observação metódica, a fim de conquistar pela simplicidade a objetividade cartesiana:

"Essas longas cadeias de razões, tão simples e fáceis, de que os geômetras costumam servir-se para chegar às suas mais difíceis demonstrações, levaram-me a imaginar que todas as coisas que podem cair sob o conhecimento dos homens encadeiam-se da mesma maneira e, que, com a única condição de nos abstermos de aceitar por verdadeira alguma que não o seja, e de observarmos sempre a ordem necessária para deduzi-las uma das outras, não pode haver nenhuma tão afastada, que não acabemos por chegar a ela, e nem tão escondida que não a descubramos" (Descartes, 1989: 27-28 - Grifos nossos).

Aqui está o "canto do galo" do racionalismo moderno. A emoção da alvorada de toda uma idade que se iniciou e que chamamos de Idade Moderna. A petulância cartesiana. A ruptura moderna reinou absoluta, em termos de ciência, até o final do século XIX e reinou de modo menos soberano até o final do Século XX. A crença de Descartes imperou como se, ao conhecermos apenas uma verdade de cada coisa, quem quer que a encontrasse saberia tudo sobre o que dela se poderia saber.



Enfim, o homem vai saber a verdade sobre tudo. Na complexidade, sabemos que a verdade de uma coisa não é tão simples de encontrar como a tamanha certeza reducionista de Descartes. A máxima cartesiana impôs a redução da complexidade, a expressão da razão com 'r' minúsculo (racionalização), como descreveu Edgar Morin (MORIN, 2000a:112). Outra questão que Descartes propõe com seu Método é a de que devemos sempre simplificar:

"Começar pelas racionalizações mais simples e mais fáceis de conhecer; e, considerando que, entre todos aqueles que até agora procuraram a verdade nas ciências, só os matemáticos puderam encontrar... e enfrentar com esse novo espírito com o alimento das verdades e a não se contentar com falsas razões" (Ibid., id.)


 As clássicas ciências modernas geraram uma brutal ruptura entre observador (agente conhecedor) e a realidade (objeto a ser conhecido). Por outro lado, hoje sabemos que a matéria se expande em auto-organização de modo não linear e, sim, caótico, integrado a duas realidades simultâneas: ordem e desordem.

O paradigma cartesiano-newtoniano se desdobrou em duas grandes derivações: o positivismo e o racionalismo.

O positivismo às vezes é chamado de cientificismo realista, naturalista ou, ainda, visto como uma simples transposição da ciência da mecânica para todos os fenômenos psicológicos que possam ser entendidos como comportamentos que poderiam ser decompostos em porções irredutíveis ou até mesmo "átomos" de ação, tomado por uma abstração visual, simétrica, que praticamente via a tarefa da ciência como a de produzir um conhecimento fotográfico da realidade: observar ? medir ? expressar uma lei. O conhecimento emergiria pelo raciocínio matemático (mais aritmético) que permitiria romper com o senso comum, negando-o ou qualificando-o.

Até mesmo para o racionalismo de Bachelard e de Einstein, a ordem no universo e na natureza era dada como organizada. Einstein, apesar de todas suas intuições e contribuições, não colocava em questão a ordem implícita do mundo moderno, da natureza e a concepção mecanicista do Cosmos. O que Einstein afirmava era que a ciência apenas estava mudando de concentração, do mundo visível, para o mundo do oculto. Porém, as próprias descobertas de Einstein, sobretudo aquelas sobre a relatividade e suas novas explicações sobre tempo e espaço, foram decisivas para ajudar a corroer o sólido edifício do macroparadigma cartesiano-newtoniano.

Quando a ciência cartesiana alcançou, de modo decisivo, o mundo do oculto, não visual, é que emergiram, também com força racionalista, novos pensadores como: Niels Bohr, Planck, Poincaré e Werner Heinsenberg, entre outros. Por isso, pensadores da ciência como: Gaston Bachelard (BACHELARD, 1996), na França e Karl Popper (POPPER, 1975) na Áustria, despertaram para querer identificar algo que estava mudando na produção do conhecimento científico e tentaram entender como esses homens estavam produzindo a nova ciência. O racionalismo é uma expressão mais complexa do paradigma moderno, mas também concebe a natureza, a ordem do universo dada como organizada.

Popper, que não era apenas um positivista lógico como tanto se afirmou, demonstrou que a ciência visual da indução falsifica seus axiomas com simplificações. O exemplo dos Cisnes Brancos que ele apresenta é básico neste sentido. Dizia Popper que um indutivista descobre mais de duzentos cisnes brancos e quanto mais procura cisnes, ele só encontra cisnes brancos. Assim, ele cria o axioma: "todo cisne é branco". Isso será verdadeiro até que ele encontre um cisne preto que destruirá e colocará abaixo toda a sua verdade. Popper insistiu sobre a provisoriedade das descobertas científicas, especialmente as operadas por inferência indutiva. Sua solução ao problema da indução é a de que, para ele, a ciência não é mais do que um conhecimento conjetural. Em vez de indução, Popper propõe que se fale em conjecturas, probabilidades e, em vez de verificação, em falsificabilidade (POPPER, 1975: 13-40).

Também verificou-se que estes novos cientistas, em geral, estão produzindo conhecimento sobre um mundo oculto. O próprio Einstein afirmou que o chão escorregou de nossos pés. Como testar o conhecimento e fazer ciência sobre o que não veem? Na ciência do visível, muitas vezes, apenas com raciocínios lógicos poder-se-iam validar conhecimentos, cuja construção de hipóteses, seria mais facilmente produzida e testada. Foi assim que surgiu uma outra modalidade de expressão do macroparadigma cartesiano-newtoniano: o racionalismo.

Não se trata aqui, apenas do debate entre materialismo e idealismo, mas, muitas vezes, para estes novos racionalistas, as longas cadeias de hipóteses e modelos padrões restringiam-se apenas a experimentos de suas canetas, os quais eles escreviam no papel. O racionalismo levou ao extremo o poder da lógica e da racionalização moderna, e seus seguidores apostavam muito mais na capacidade do raciocínio do que na experimentação controlada.

No entanto o racionalismo foi muito importante para os novos cientistas e pensadores da complexidade emergente, como Einstein, por exemplo. A complexidade tem uma grande identidade com os racionalistas, mas a complexidade reequilibra, de modo mais cooperado e, muitas vezes simultâneo, a indução com a reflexividade e também a dedução, com intuição e abdução também em cooperação com as ressonâncias sensórias, simultaneamente. A reflexibilidade de modo complexo encontra-se e se religa com o saber perital das aplicações no processo do conhecimento.

Há uma grande possibilidade de complementaridade entre as abordagens analíticas e sistêmicas. A primeira continua necessária para extrairmos da realidade os elementos que nos possibilitam fundar teorias, e a segunda nos permite obter uma visão mais global dos sistemas, tornando viável a eficácia da ação. Tratamos de modelização sistêmica complexa, o que a retórica helênica e latina denominavam inventio como definiu Jean-Louis Le Moigne. Trata-se de romper e descartar "pureza" das práticas, das técnicas peritais dos subsistemas e de estarmos sempre acompanhados, de modo também reflexivo, de um desassossegamento constante das nossas ações, de perguntarmos sempre o que estamos fazendo, a que se refere nossa própria ação, o que ela está produzindo, no que se ela está transformando, de estarmos presente, juntos, na ação contextualizada (MORIN, 2004: 545).

Em página após página dos quatro tomos de seu Método, Edgar Morin chamou nossa atenção para essa problemática. É preciso urgentemente reencontrar os procedimentos da contextualização e aprender a construir, para nós mesmos, ricas representações do que fazemos, do que ouvimos em profundas ressonâncias sensíveis e significantes.

Na ciência do oculto, o processo de investigação e de análise fica mais complexo e minucioso, exige muito trabalho descritivo e procedimental. Quase todos os cientistas da complexidade forjaram complexas teorias mescladas em novas aplicações e modalidades qualitativas de produzir conhecimento complexo. Suas buscas de explicações diversas sobre fenômenos novos foram contribuindo para negar muitos das velhas certezas comuns da ciência moderna.

Assim, podemos entender melhor a afirmação de que, a subjetividade constrói o experimento, como demonstrou Heinsenberg. Mas os avanços não se resumiram apenas a um outro modo de pensar o mundo, a natureza, o Cosmos e, sobretudo, nosso novo lugar nesse mundo. Os avanços nas aplicações tecnológicas aceleraram-se tanto após a segunda Grande Guerra Mundial que tecnologia e ciência integraram-se na complexidade de modo ainda mais intenso, principalmente a partir da emergência da consciência dos efeitos quânticos e dos múltiplos planos da realidade, ao mesmo tempo específicos e simultâneos, em convergência com a macrorrealidade física e social.




O paradigma moderno tem uma dimensão materialista essencial, mesmo no sentido e na compreensão da própria razão. O positivismo fortaleceu muito o componente materialista do paradigma moderno. O materialismo poderia, assim, emancipar a sociedade da sua condição historicamente atribuída à religião ou à filosofia especulativa. Descrições matemáticas herméticas do cosmos não faltavam ao ingrediente moderno, volumetria e velocidade dos átomos reduzidos, como a menoridade possível da matéria, que em força e velocidade vagavam pelo vazio imaterial.

A complexidade implica uma nova e mais complexa espiritualidade que herdamos da modernidade simples. Weber demonstrou que somos seres com vontade de ser mais, e que a própria modernidade laica ocidental criou para si, uma espiritualidade específica, mais operante, das suas ambições (WEBER, 1983). A falência e a crise nas promessas emancipadoras da razão moderna e seu diálogo surdo, instrumentalizador e colonizador do pensamento mágico têm levado multidões de mentes à busca de "escapes esotéricos" desconciliados da complexidade, podendo, inclusive, colocar em risco o próprio pensar complexo, ante a emergência de novos fundamentalismos e crenças autoritárias e personalistas. Se quisermos experimentar uma satisfação profunda e complexa em nossa vida social, precisamos ser capazes de encarar a sociedade em um contexto mais amplo de significado e valor. Em um contexto que transcenda o materialismo (ou consumismo reducionista) quanto ao próprio interesse limitador da vida no mundo.

O questionamento do princípio da separabilidade, proposto na regra cartesiana, é um dos elementos essenciais do paradigma da complexidade. O edifício moderno se encontra em crise pela hiperespecialização do saber desligado na macrorrealidade social, gerando uma entropia informacional. Isso nos faz lembrar Eliot, quando indagou, mais ou menos assim: "onde está o conhecimento que perdemos na informação e onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento informacional?" ( MORIN, 2000c: 16).

Nossa visão social necessita ter uma dimensão espiritual plural e também complexa, isto é, devemos ser capazes de responder perguntas como: para que existe a sociedade? Qual seu significado? (ZOHAR, 2000: 30-31). Em que dimensões da realidade subjacente encontramos suas raízes, seus dilemas Éticos (com E maiúsculo)? Em última instância trata-se de questões espirituais. Têm a ver com a compreensão do sentido mais profundo e a sanção de nossos atos (limites) e com o respeito profundo à legitimidade múltipla de expressões de espiritualidades e crenças tão diversas da nossa civilização planetária, de nossa pátria Terra.

O espectro dos limites da redução lógica e o enfrentamento intrínseco da contradição em seus domínios apareceram também no mais elevado pensamento matemático, com o teorema de Gödel, que anuncia que, em um sistema formalizado complexo que comporta a aritmética, sempre existe uma proposição que não pode ser decidida e que, até mesmo a não-contradição do referido sistema não pode ser decidida. O paradoxo encontra-se também na vida social em sua escala macrofísica. Quando olhamos um indivíduo, a espécie desaparece, passa a ser uma abstração, mas, quando o olhamos no tempo, o indivíduo desaparece, desfalece é a espécie que permanece. O princípio da lógica dedutivo-indentitária deixou de ser absoluto, e é preciso saber transgredi-lo (MORIN, 2004: 565).

O paradigma da complexidade integra natureza e cultura que não podem mais ser vistos separadamente (inseparabilidade: tecnologia, homem, cultura e natureza), é como um sistema auto-organizativo com entropia – dispersão, mas impossível de separarmos e isolarmos como pretendia o cartesianismo. Não há variáveis isoladas na complexidade. Como ilustra Wigner em seu exemplo: "a medição da curvatura do espaço causada por uma partícula não pode ser levada a cabo sem criar novos campos que são bilhões de vezes maiores que o campo sob investigação". (WIGNER, 1970: 7).


O segundo princípio do paradigma astrológico, com o qual a modernidade simples rompeu de modo fulminante, foi o postulado da separação entre a esfera cósmica (celeste) de a esfera terrestre, que se manifesta na concepção de mundo geocêntrica que se harmonizou com a interpretação da Bíblia e foi reinterpretada pela teologia medieval principalmente por Tomás de Aquino.

 2) O princípio da separação do mundo físico do metafísico

Assim como para o mundo terrestre e físico temos as Leis da Física, para o mundo Celeste, Astrológico, o Céu, o Cosmos temos a quinta essência aristotélica. Ou seja, temos outras leis não físicas do extraordinário, do divino, do celestial, um lugar onde as leis da física não operam.

Veremos, a seguir, que Galileu substituiu, a partir da experiência, a ideia de espaço cósmico qualitativamente diferenciado, pelo espaço homogêneo e abstrato da geometria euclidiana. O ponto central para a derrubada do edifício aristotélico iniciado por Galileu e consolidado por Isaac Newton, consistiu na unificação entre o céu e a terra, ou seja, as leis que governavam os fenômenos terrestres governavam também os fenômenos celestes. Aristóteles com a ideia de quinta essência considerava o "céu" como uma substância perfeita e imutável, isto é, só na Terra poderia haver mudanças químicas e físicas como: água, ar e fogo.



A primeira grande ruptura produzida nessa concepção foi através da navalha precisa do raciocínio de Maquiavel, que demonstrou de modo realista a legitimação humana do poder. A segunda começou com Copérnico e Giordano Bruno e foi completada pelo moderno Galileu.

Concordamos, porém, com Ortega y Gasset de que o novo homem de ciência, começa a ser "moderno", quando se torna um homem novo, quando renasce (Ortega y Gasset,1989). Segundo Ortega y Gasset, o homem renasce após Galileu Galilei (1554-1642) e René Descartes (1596-1650).

Da crença numa terra plana, transitamos, graças aos modernos, para uma terra redonda, da terra imóvel localizada no centro de um universo finito, segundo Aristóteles, para uma terra que se movimenta como um peão, num cosmo infinito, do qual a terra é um simples satélite que gira em torno de uma estrela periférica localizada num pequeno sistema solar, presente no final da cauda da Via Láctea, numa modesta galáxia.

A modernidade simples nos fez habitantes de um mundo externo ao sujeito, ordenado, estável, com determinismo causal e, sobretudo, sem tempo, que tem uma estrutura implícita. Um mundo em que o sujeito exógeno observa, descreve, decifra e compreende os segredos intrínsecos dessa estrutura mecânica, através da mensuração metódica e objetiva.

Galileu, entre 1600 - 1609 desenvolveu as suas concepções que o levaram à geometrização da ciência do movimento e, segundo ele próprio, a criar duas novas ciências: 1) O Estudo geométrico da resistência dos sólidos e 2) O tratado sobre o Movimento. Em 1604, Galileu demonstrou a sua lei da queda dos corpos.


Assim a teoria matemática foi erigida dentro de um rigor passível de ser remodelada mais tarde pelos gênios modernos de Galileu que usou a matemática para representar a natureza, Kepler que usou ostensivamente a geometria em suas leis da mecânica celeste e Isaac Newton que foi o pai da física matemática que com ajuda isolada de Leibniz, que na verdade foi quem de fato quem criou os símbolos da integral e diferencial, Newton materializou posteriormente suas séries numéricas que fundamentou o cálculo variacional e a aplicação da teoria das equações diferenciais. Para isso, no entanto, os modernos precisaram que o conhecimento clássico pudesse ter sido conversado nos mosteiros através dos cuidados dos monges medievais. 


Uma de suas mais significativas contribuições à ciência não está numa descoberta particular, mas no fato de ter reabilitado em novas bases o método experimental, que andava esquecido desde os tempos de Arquimedes. Galileu, no Século XVI, deu início à ciência moderna e forneceu o suporte para a proposta newtoniana que ocorreria no século seguinte. O método "galileano" da verificação experimental permitia, inclusive, contrariar toda evidência não controlada, não laboratorial - a conjectura torna-se verdadeira se o experimento concordar com ela.

O método foi tão revolucionário que transformou a ciência em algo radicalmente novo. Antes dele, era praticamente evidente que a Terra estava parada e que ocupava um lugar privilegiado no Cosmos. Tudo o que ele tentou demonstrar contrariava a evidência. Deveria, portanto, ser falso. No entanto ele tinha razão. Era uma razão nova que se instituíra no mundo fazendo surgir uma nova forma de obtenção da verdade.


A divisão primordial da separabilidade, em que se assenta toda a ciência moderna, opera-se na distinção entre "condições iniciais" e "leis da natureza". As "condições iniciais" são um reino de complicações, de acidentes, no qual se faz necessário selecionar as condições relevantes dos fatos a serem observados. E as "leis da natureza" são um reino de simplicidades e de regularidades, onde é possível observar-se e medir-se com rigor. Essas distinções, concretamente, nada têm de "natural". Elas são completamente arbitrárias, conforme descreveu Eugene Wigner (Wigner, 1970: 3). Todavia é nelas que se assenta toda a ciência moderna.

Precisamos, pois, promover e realizar uma nova transdisciplinaridade, transitar de um paradigma que permite distinguir, separar, opor e, portanto, dividir relativamente os domínios científicos para outro, de modo que possamos fazê-los se comunicarem, sem que operemos a redução da simplicidade. O paradigma da modernidade simples é mutilante e insuficiente. É necessário um paradigma da complexidade que, ao mesmo tempo, separe e associe, que conceba níveis de emergência da realidade sem reduzi-los a unidades elementares e às leis gerais (Morin, 2000: 128).

Referências:

LIMA, Gilson. A Síndrome de Frankenstein: mitos e magias da moderna informação numérica. In: Revista de Educação, Ciência e Cultura.(1999: 79-86). Canoas; Centro Universitário Lasalle, v. 4, nº 1, Outubro de 1999.         [ Links ]

___. Nômades de Pedra: Teoria da sociedade simbiogênica contada em prosas. Porto Alegre: Escritos, 2005.         [ Links ]

MORIN, Edgar. O método 3: O conhecimento do conhecimento. Portugal: Publicações Europa-América, LDA, 1986.         [ Links ]

___.& KERN, Anne Brigitte. Terra Pátria. Porto Alegre: Sulina, 1995.         [ Links ]

___. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000 (a).         [ Links ]

___. LE MOIGNE, Jean Luis Le. A inteligência da complexidade. São Paulo. Editora Fundação Petrópolis, 2000b.         [ Links ]

___. A cabeça bem feita: repensar a reforma ó reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2000c.        [ Links ]

MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento ComplexoLisboa: Instituto Piaget, 2003.         [ Links ]

___. (org.) A Religação dos Saberes: o desafio do Século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.         [ Links ]

ORTEGA Y GASSET. Em Torno a Galileu. Petrópolis: Vozes, 1989.         [ Links ]

WIGNER, Eugene. Symmetries and Reflections: Scientific EssaysCambridge: Cambridge University Press, 1970         [ Links ]


sábado, 31 de outubro de 2020

A TELEVISÃO PROVOCA VIOLÊNCIA: Cérebro, aprendizagem e violência na televisão?




 Saiu um artigo meu na Revista Sociologia  Número 73 nas Bancas. Título: A Televisão provoca violência?


“Saiba mais sobre o poder de 18 mil horas de TV em crianças e adolescentes"...; implicações nas modulações cerebrais. Começamos afirmando que as respostas não são assim tão fáceis. O cérebro está sempre aprendendo, também aprende no cinema, na televisão, na tela do computador, do celular e smartphone.
Desde os primórdios da tecnologia da comunicação humana foram criados que existem também expressões de violência neles. Encontramos expressões desde as primitivas pinturas dos humanódies nas cavernas hexâmetro à xilogravura, nas primeiras expressões pictográficas da escrita, na Bíblia, até ao vídeo e à expressão gráfica da Internet a www (World Wide Web). No entanto, gostaria de responder sobre qual a relação entre representação de violência em filmes ou televisão e a aprendizagem?”
http://www.escala.com.br/sociologia-ciencia---vida-ed--73/p
Gilson Lima




Gilson Lima

Desde que os meios de comunicação social existem, que existe também representações de violência neles. Em Homero e Shakespeare há representação de violência da mesma forma que na Bíblia ou em pinturas antigas desde o hexâmetro à xilogravura, até ao vídeo e à www (World Wide Web). No entanto, gostaria de responder sobre qual a relação entre representação de violência em filmes ou televisão (e re­centemente no computador) e a aprendizagem?
Infelizmente, as respostas não são assim tão fáceis. O cérebro está sempre a aprender, também aprende no cinema, na televisão e na tela do computador.
Concentrarei, sobretudo, num meio, a televisão, devido à sua ampla distribuição e sua grande abrangência e significado social.

Os dados abaixo publicados sobre violência na televisão utilizam, essencialmente, os dados dos EUA já consolidados e amplamente difundidos. Vejamos:  os estudantes americanos gastam, até final da escola secundária (ou seja, 12 anos escolares), aproximadamente 13 000 horas na escola e 25 000 horas em frente de um televisor. Calcula-se que, desse total, 18 000 horas podem ser designadas como «aprendizagem visual dominada pela violência» (Barry, 1997, p. 301).
A Associação Médica Americana calculou que uma criança, até final da escola básica, já viu mais de 8000 homicídios e mais de 100 000 cenas de violência. Foi também calculado que as crianças que vivem em casas com televisão por cabo, até aos 18 anos já viram 32 000 assassinatos e 40 000 tentativas de assassinato e que estes cálculos ainda são mais elevados para determinados grupos sociais nos grandes centros citadinos (Barry, 1997, p. 301).
Com este conjunto de dados, existem pesquisas pormenorizadas relativa­mente aos conteúdos mostrados na televisão. Assim, num dia típico da semana (quinta-feira, 2 de Abril, 1992), em Washington, foi escolhido o programa dos dez canais de televisão com mais audiência, das seis horas da manhã até à meia-noite e foi analisado o seu conteúdo. O total das 180 horas de televisão incluíram 1846 atos de violência explícita, dos quais 751 com situações de ameaça de morte e 175 com desfecho de morte.
Não só as próprias cenas de violência como também o seu contexto deve ser classificado como maximamente desfavorável para o desenvolvimento das crianças. Uma avaliação de cenas de violência num conjunto de 2500 horas de programas de televisão evidenciou que o culpado não foi punido em 73% dos casos (Wilson e col, 1997, p. 141). Mais de metade (58%) de todos os atos de violência foram apresentados sem qualquer consequência negativa relativa­mente a danos. Apenas em 4% dos casos, foram mostradas alternati­vas de resolução do problema sem recurso à violência (Wilson e col., p. 128).
O comportamento das crianças também foi avaliado de muitas formas, em grupos de controle, tanto por meio de observação em situações naturais de jogo como também por meio de perguntas aos professores, crianças e jovens. Verificou-se que nesse período de dois anos, nas comunidades em que tinha sido introduzida a televisão, de acordo com observa­ções e questionários, o nível de agressão aumentou: a agressividade verbal duplicou, a agressividade física quase que triplicou (um resultado altamente significativo). Isto verificou-se tanto em rapazes como em raparigas, em todas os níveis etários. Verificou-se uma relação entre o tempo que as crianças e os jovens tinham passado a ver televisão e a disposição para a violência. Pelo contrário, o nível de violência em ambas as comunidades de controlo ficou igual (Joy e col., 1986).
Também existem consequências, a longo prazo, da violência na televisão. Os dados mais importantes resultam das pesquisas de Eron e Huesmann (1986), que orientaram um estudo prospectivo, a longo prazo, em 875 jovens num período total de 22 anos (!), desde 1960 até 1981.
Os referidos jovens, que na primeira pesquisa, aos 8 anos, viam muitas cenas de violência na televisão, foram catalogados pelos seus professores como tendo maior probabilidade de serem cruéis e agressivos. Estes mesmos jovens, aos 19 anos, tinham maior probabilidade de ter situações de conflito e, aos 30 anos, tinham também maior probabilidade de serem julgados por atos criminosos violentos ou exerciam violência contra cônjuges e filhos.
O estudo mostrou claramente que a quantidade de cenas de violência que as crianças de 8 anos tinham visto na televisão permitiam predizer a violência destas crianças quando adultas. Mostrou também o seu efeito nas gerações seguintes, no sentido em que os jovens que aos 8 anos já tinham visto mais violência na televisão tinham maior probabilidade de agredirem mais tarde os seus filhos.
Os resultados destes estudos são importantes. Contudo, a questão sobre se a violência na televisão conduz a mais violência na vida real não é possível de responder com os referidos estudos, porque podem sempre ser incluídos, a nível puramente teórico, outros fatores, que talvez tenham uma influência que não foram controlados. Contudo, estas pesquisas muito bem orientadas metodologicamente permitem estabelecer esta relação com segurança. Este é particularmente o caso, quando consultamos os resultados de estudos, que foram orientados com outros pressupostos metodológicos de fundamentação. Estas novas metodologias de pesquisa do conhecimento são, por um lado, experiências de laboratório e, por outro lado, os chamados estudos de campo. Apresentamos em seguida exemplos dos dois tipos de
Centerwall (1989a,b) pesquisou a relação entre a introdução da televisão e a frequência de homicídios na população branca dos EUA, no conjunto da população do Canadá (97% branca) e na população branca da África do Sul. Depois de se ter introduzido a televisão nos EUA e no Canadá, na década de 1950, verificou-se uma duplicação dos homicídios num período de 10-15 anos. Durante o mesmo período de tempo, o número de homicídios na África do Sul diminuiu em 7%. Depois da introdução da televisão neste país, no ano de 1975, os homicídios aumentaram, até 1987, 130%. O autor comenta:

«Se a televisão nunca tivesse sido introduzida, existiriam atualmente, nos EUA, anualmente, menos 10 000 homicídios, menos 70 000 violações e menos 700 000 delitos com ferimentos noutras pessoas.» (Centerwall, 1992, p. 3061, tradução do autor.)
Outro autor compara a fixação da mente no ecrã com uma meditação budista, cujo alvo fosse esvaziar o espírito e libertar as preocupações terrenas:

«Um texto [budista] diz-nos que... devemos meditar por meio da concentração num arco-íris. Os acontecimentos entre o acordar e o [à noite] tempo de televisão são as nossas preocupações terrenas. A televisão é o nosso arco-íris. A televisão induz em nós um estado que se parece muito com a qualidade da meditação. Por isso vemos muita televisão.» (Fowles, 1992, p. 244; tradução do autor.)

A citação torna claro que, apesar dos resultados contraditórios de abuso de violência resultantes da investigação empírica, até hoje é argumentado, de forma ainda não contestada, que há um efeito positivo da televisão no potencial de violência.

Dessensibilização

Quando os organismos estão permanentemente expostos a um determinado estímulo ou a uma determinada classe de estímulos, a reação a estes estímulos vai sempre diminuindo. Falamos de dessensibilização. Trata-se também de uma forma de aprendizagem. O fenômeno existe em diferentes espécies e é relativo a diferentes classes de estímulos, entre outros, também, para a pessoa e a vio­lência.
As investigações mostraram, respectivamente, que quem vê sempre filmes de violência reage menos fortemente às cenas de violência nesse filmes (Cline e col, 1973). O comportamento é generalizado do filme para a realidade (Thomas e col., 1977). A observação permanente da violência na televisão leva a que as formas de comportamento violento no espectador subam mais do que o normal. Não só a experiência e as reacções vegetativas mas também o comportamento da pessoa mudam de forma correspondente, tal como, em 1992, a Associação Americana de Psicologia (American Psychological Association, APA) colocou a questão. Em resumo: a observação de violência leva a comportamentos de embotamento e de indiferença face à violência.

Crianças em frente da televisão
Afirma-se muitas vezes que as crianças podem distinguir muito bem entre a realidade virtual e a real. Talvez possamos afirmar isto em relação às crianças mais velhas, mas não relativamente às mais pequenas, até aos 8 anos, que têm muitas dificuldades em distinguir a realidade da fantasia. Pesquisas americanas e canadianas, em crianças em idade escolar mostraram efeitos da aprendizagem tornam-se crônicos e permanecem até à idade adulta (Centerwall, 1992). Também as crianças mais velhas e, não menos importante, os adultos, podem aprender com as imagens televisivas como aprendem por meio de imagens reais.
A observação da violência é para nós um exercício de aprendizagem, tal como olhar borboletas ou folhas: quem já viu milhares delas, de fato já não as distingue, porque já conhece o processo. Para falar de violência na televisão, sejamos breves e pragmáticos: quem vê filmes de terror e de violência aprende horror e violência. A longo prazo, ele cruza-se, passo a passo, com o horror e a violência. Ainda mais: o aprendido influenciará o seu comportamento e, assim, a vida social na sociedade em geral.
Quem refere que as crianças e os jovens podem separar bem a televisão do mundo real, deve lembrar-se que também alguns adultos se transformam em atores, para responderem às questões da vida, não como espectadores, mas desempenhando na vida real os papéis que vêem na televisão - pai, médico, conselheiro - ou seja, personificando os papéis.

Conclusão: violência como poluição ambiente

É surpreendente que até hoje a relação entre violência na televisão e violência nas crianças seja contestada, cada vez mais, pelos jovens e mais tarde pelos adultos. Apesar da enorme controvérsia na discussão deste tema sensível, a reflexão dos métodos de investigação utilizados (e assim a fiabilidade dos resultados dos próprios estudos) é de grande significado. Podemos considerar, na perspectiva do design dos estudos, em princípio, três tipos de pesquisas diferentes: experiências de laboratório, estudos de campo e estudos em condi­ções naturais. Todos têm as suas vantagens e desvantagens.

Nas experiências de laboratório, em que um grupo via vídeos de violência entre crianças e o outro via vídeos sem violência, foi observado um claro efeito de aprendizagem de violência. Estas experiências apontam para razões-efeitos-relações entre a televisão e a violência, de forma clara. A desvantagem das experiências de laboratório são a «artificialidade» do setting, o que essencial­mente deveria conduzir a uma subavaliação do efeito real da televisão, pois em casa vê-se mais televisão do que no laboratório e no laboratório não são identificáveis os efeitos a longo prazo da televisão.

Nos estudos em condições naturais, foram pesquisados, por exemplo, os efeitos da introdução da televisão numa comunidade ou num país. Às vantagens das condições de um estudo em ambiente natural e prováveis grandes números de casos, opõe-se a desvantagem de não controlo de muitas condições de pesquisa.
Entre as experiências de laboratório e os estudos em ambiente natural, ficam os estudos de campo. Através de uma divisão aleatória de grupos, eles possuem uma melhor significância (através da eliminação de uma influência de seleção disjuntiva), do que os estudos em ambiente natural e, pela obser­vação no mundo real (vê-se televisão ou não; o comportamento é observado e avaliado nas condições normais de vida), a artificialidade do laboratório é evitada. Contudo, também os estudos de campo têm as suas desvantagens, pelo que todos se devem complementar reciprocamente. O método de labora­tório permite a precisão, olhar o comportamento ao microscópio; contrariamente aos estudos de campo e aos estudos em condições naturais, há uma correspondência entre os dados obtidos no laboratório e o mundo real.
Os resultados obtidos com os referidos métodos são claros: há uma relação manifesta entre a observação de violência na televisão e a violência no mundo real. O que é perverso nesta relação - à semelhança da relação entre o fumar e as doenças pulmonares - é o atraso de pelo menos um ano. Se a violência aumentar, já será muito tarde.
Na perspectiva neurobiológica, a violência fala de procedimentos instintivos de dedicação da atenção, embora as crianças não possam mostrar mais nada além destes conteúdos que deveriam ser eliminados. A neuroplasticidade do cérebro, fortemente impregnada na idade infantil, causa portanto a construção de representações correspondentes nos mapas corticais portadores de sentido a nível superior nos adolescentes, que precisamente desta forma ficam instala­dos para operar efetivamente nos comportamentos futuros.
Também é muito significativo que nos organismos em que estão instalados de forma permanente um determinado estímulo ou uma determinada classe de estímulos, a reacção emocional a esses estímulos vai decrescendo cada vez mais. Falamos de dessensibilização. O fenômeno é válido para diversas espécies e em diversas classes de estímulos, entre os quais também as pessoas e a violência. Os estudos empíricos podem mostrar: 1) quem vê continuamente filmes de violência reage menos às cenas de violência apresentadas nos filmes; 2) o com­portamento generaliza-se do filme para a realidade; 3) a permanente observação de violência na televisão leva a que as formas de comportamento violentas aumentem no observador mais do que o normal; 4) o comportamento da pessoa muda no mesmo sentido. Em resumo: a violência na televisão leva a uma funda­mentação da nossa disposição neurobiológica para mais violência no mundo.
O que se segue? Virá o tempo em que nós vamos ouvir negar sistematica­mente estas relações. Devemos compreender que a violência na televisão tem o mesmo valor na nossa sociedade, que, por exemplo, a poluição: se os compor­tamentos de produção abandonarem o mercado livre, sobrevive quem produzir mais barato, o que significa o mesmo que produzir da forma mais suja. Ninguém quer um ambiente poluído, mas sem vontades políticas de todos e sem regras adequadas, só sobreviverão no mercado aqueles que produzirem mais barato na opinião mundial. O mesmo se passará com o comportamento com os negócios de televisão, que vivem de contributos mundiais e são avaliados por quotas de audiência. A violência mostrada capta uma quota elevada de audiên­cias, o que leva a que, a longo prazo, só sobrevivam no mercado aqueles que chamam a atenção do espectador com esses meios.
Os países ocidentais industrializados tomaram conhecimento de que devem ser tomadas medidas sobre aspectos do meio ambiente - poluição ambiente, micropoeiras ou DDT - que têm efeitos complexos e a longo prazo, mas que podem controlar o nosso meio ambiente e, em última análise, a nossa vida. A continuidade da violência nos meios de comunicação, nos nossos mapas corticais não é - como acima indicado - menos dramática. Haverá tempo que nós teremos de refletir numa perspectiva de austeridade de alimentação visual-mental das nossas crianças, de uma forma séria. Não devemos minimizar o assunto.
E ainda o seguinte: quem, como reação aos 16 mortos de Erfurt em 26 de Abril de 2002, continua a utilizar armas, está errado. Facas de cozinha, navalhas ou aviões de passageiros não podem ser proibidos, e no entanto também podem ser utilizados, letalmente, como acontece com as pistolas e outras armas. De facto e de forma duradoura podemos lutar contra a violência quando oferecer­mos às pessoas uma perspectiva mais alargada de possibilidades de resolução de conflitos, certamente um material de aprendizagem muito melhor do que aquele que é fornecido pelos meios de comunicação.
A indústria (Hollywood, proprietários de redes televisivas, realizadores de programas, etc.) fala de autocontrole voluntário, da responsabilidade dos pais e afirma defender o direito de liberdade de opinião. Os próprios meios de comunicação disfarçam as circunstâncias e minimizam a miséria. Poucas semanas antes dos acontecimentos em Erfurt, a Focus (n.° 12; 18 de Março de 2002) publicou um artigo sob o tema: «As crianças devem ver televisão». Nele argumentava-se que as crianças que não veem televisão podem ser marginali­zadas nos grupos. Mas quando, como a academia pediátrica americana referiu, as crianças até aos 18 anos, nos EUA, já viram 200 000 atos de violência, só na televisão, talvez fosse melhor que todos nós fôssemos marginalizados!

Pos scriptum: jogos de computador - aprender pela ação

Há cerca de 25 anos, surgiram os videojogos como uma coisa inofensiva; jogávamos amigavelmente pingue pongue, Tetris ou Pacman. Isto alterou-se num período de apenas 10 anos, com o desenvolvimento sempre crescente do computador. Em 1993, durante a época do Natal, a festa da paz e do amor, apareceu à venda nas lojas um videojogo de violência muito realista, que foi um êxito de vendas. O herói não disparava apenas contra discos voadores virtuais; não, ele decapitava os seus inimigos e arrancava-lhes o coração do corpo. Em jogos como Mortal Kombat, a morte do inimigo é claramente o alvo. Como uma análise comparativa de 33 videojogos Nintendo e Sega evidenciou, temos conteúdos de aproximadamente 80% de violência e agressão, sendo 20% de conteúdos explícitos de violência contra mulheres (Dietz, 1998).
Ao contrário do número enorme de estudos empíricos relativos ao efeito de apresentação de violência na televisão, a literatura científica sobre jogos de computador e de vídeo ainda é muito vaga. Também aqui, na perspectiva dos jogos de computador é sempre alegado que - contrariamente ao que é verificado claramente sobre a televisão - «os jogos de vídeo podem ser úteis e podem ajudar a que as energias agressivas sejam reprimidas» (Emes, 1997, p. 413; tradução do autor).
Neste preciso cenário de fundo, a pesquisa descrita a seguir, de Anderson e Dill (2000), tem grande significado, pois ela mostra como uma das mais significativas formas de ocupação de tempos livres da nova geração funciona sobre o seu pensamento, sentimentos e comportamentos. Os autores referem que jogos repetidos de violência levam, a longo prazo, à aprendizagem de emoções, pensamentos e disposição para comportamentos correspondentes. Eles descrevem-nos como segue:
«Os efeitos a longo prazo da violência nos meios de comunicação são o resultado do desenvolvimento, da sobre aprendizagem e do fortalecimento de estruturas de conhecimento dos que exercem a agressão. [...] De cada vez que as pessoas jogam jogos de vídeo violentos, repetem programas de comporta­mento agressivo, que ensinam e intensificam a atenção contra o inimigo, no sentido de uma mudança perceptiva. Por vezes, aquilo que foi aprendido e intensificado transforma-se em ações agressivas contra os outros, expectativas de que outros actos agressivos sejam realizados e que a resolução de conflitos com recurso à violência seja significativa e eficaz. A exposição repetida a situações visuais de violência conduz em direção a um embotamento face à violência. A criação e automatização de estruturas de identificação com o agressor, tal como a dessensibilização, levam por fim a uma mudança de personalidade.» (Anderson e Dill, 2000, p. 774, tradução do autor.)
Os autores orientaram duas pesquisas com metodologias complementares diferentes. Numa primeira pesquisa, foi avaliada a relação entre violência e não violência no jogo de vídeo e uma série de variáveis - como irritabilidade, agressividade, delinquência, opinião subjetiva sobre criminalidade e segurança pessoal - numa sequência de estudo em 227 colegas estudantes (78 homens, 149 mulheres), com idades médias de 18,5 anos.
Verificou-se que 207 estudantes (91%) no momento da pesquisa jogavam videojogos no seu tempo livre, num tempo médio semanal de 2,14 horas. Este tempo foi menor do que durante a fase escolar, para os sujeitos a quem foi pedido o mesmo: eles jogavam 5,45 horas, durante a escola secundária: 3,69 horas no início e 2,68 horas no seu final. Entre os 20 não jogadores, estavam 18 mulheres. Os jogos classificados pêlos estudantes foram, aproximadamen­te, um quinto com violência expressa e um quinto com violência acentuada. O jogo com videojogos de violência foi correlacionado de forma significativa­mente positiva com a delinquência agressiva (r = 0,46) e com a delinquência não agressiva (r = 0,31), tal como com o traço de personalidade agressiva (r = = 0,22).
Também mostrou que o jogo com jogos de vídeo violentos se correlaciona de forma baixa e significativamente negativa com a produtividade no estudo (r = - 0,08) e que o tempo gasto com videojogos tem uma correlação negativa significativa (r = - 0,2). Tal como os estudos acima referidos sobre a violência na televisão, as correlações nada dizem sobre a causas. Pode acontecer que os delinquentes tendam para videojogos violentos (e não, pelo contrário, estes jogos induzam comportamentos delinquentes). Para pesquisar as ligações causais é preciso, como acima discutimos, estudos experimentais adequados.
Assim, os autores conduziram, em 210 estudantes do ensino superior (104 mulheres e 106 homens), a seguinte experiência. Homens e mulheres jogavam um videojogo violento (Wolfenstein 3D) ou um não violento (Myst). Foi tam­bém pesquisado em todos os sujeitos o seu fator de personalidade irritabilidade (alta versus baixa), tal como a existência anterior de comportamentos agressivos e ideias e sentimentos agressivos. O comportamento agressivo foi assim pesqui­sado em laboratório e os sujeitos jogadores podiam ajustar a duração e a intensi­dade de som de alarme na sala do jogador supostamente adversário, quando este tivesse supostamente perdido. Sob determinadas circunstâncias, este tempo aumentava sobretudo mais nos jogadores de jogos violentos. O pensamento agressivo foi medido com uma experiência de leitura de palavras, na qual foi medido o tempo de reação na leitura de um conjunto de 192 palavras de conteúdo neutro ou agressivo. Verificou-se uma diminuição altamente signifi­cativa do tempo de reação em palavras com conteúdo agressivo depois de jogar com jogos agressivos no sentido de um efeito de via de abertura. Nos estudos experimentais, verificamos assim efeitos de comportamento e cogni­tivos, que falam claramente sobre um efeito de exigência de videojogos agressivos para que surja uma disposição dos jogadores para a violência.
Há boas razões para aceitar que os videojogos têm efeitos sobre a disposição para a violência; que, no caso da televisão, são ainda mais claros. Assim, Stickgold e colaboradores (2000) descobriram que nos episódios de sono, depois de um jogo de vídeo prolongado (foi jogado o jogo Tetris, não agressivo), aumentavam as componentes pictóricas do jogo. Curiosamente, isto diz respeito não aos aspectos triviais do jogo, como, por exemplo, o ecrã de computador ou o teclado, mas sim às características visuais dos estímulos que eram relevantes para o jogo. Discutimos anteriormente as relações entre os episódios para as ocorrências de aprendizagem, para reativar o aprendido e para consolidar os vestígios de lembranças. Destas descobertas experimentais, devemos assumir que também os conteúdos dos videojogos «são trabalhados durante» o sono e assim são consolidados.
Quem ainda duvida que os videojogos podem ter consequências devastadoras, traduzi para eles o seguinte excerto do trabalho de Anderson e Dill (2000, p. 772), que talvez mostre, mais claramente do que as estatísticas, para onde pode conduzir a violência nos videojogos:


«Em 20 de Abril de 1999, Eric Harris e Dylan Klebold desencadearam um ataque de terror na Escola Columbus, em Littleton, Colorado: assassinaram 13 colegas e feriram 23, antes de apontar as armas a si próprios. Apesar de não ser possível termos a certeza do que levou estes adolescentes a atacar o seu profes­sor e os seus colegas de escola, há certamente vários factores envolvidos. Um desses factores são os videojogos violentos. Harris e Klebold gostavam muito de jogar o sangrento Doom, um jogo que foi licenciado e introduzido pêlos militares dos EUA para instruir os soldados para matarem os inimigos. Nos arquivos do centro Simon-Wiesenthal, uma instituição que tem como alvo os indícios de ódio e violência na Internet, foi encontrada uma cópia, no website de Harris, que continha uma versão formatada personalizada do jogo Doom. Nesta versão, havia dois soldados, carregados com armas extra e com um número ilimitado de munições, e inimigos que estavam indefesos. Como trabalho de projecto no âmbito do ensino, Harris e Klebold tinham produzido essa versão personalizada do Doom. Neste vídeo, Harris e Klebold usam gabardinas, estão armados e assassinam, colegas de escola. Menos de um ano depois, actualizaram na vida real esta simulação de vídeo. Como o investigador do Centro Wiesenthal disse, Harris e Klebold "jogaram o seu jogo na modalidade Deus".»