Gilson Lima[1]
Estamos cansados do homem. O homem
tornou-se uma forma medíocre e insossa de apequenamento da vida, acabou por se
tornar uma meta de civilização. É preciso
livrar-se do homem para liberar a vida. O campo de batalha é o próprio
corpo do homem; são travadas lutas cruéis e brutais sobre o corpo do homem,
desde seus genes até os seus gestos, sua percepção, seus afetos. A vida emerge
em simbiose para evoluir como: um grande
experimentar-se de si mesmo num longo agora em cooperação.
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Comentários iniciais do autor:
Esse é um texto de 12 páginas que resolvi compartilhar com vocês. Um pouco longo para o padrão da época de hoje. É um texto histórico que escrevi há 21 anos atrás, antes do meu doutorado. Emergia depois de meu mestrado a necessidade de refundamentação das ciências humanas e seus clássicos fundacionistas. Até hoje a teoria social da simbiogênese não é ensinada nas universidades e escolas e, muito menos, nos cursos específicos das ciências humanas. O paradigma moderno reina também nas ciências ditas humanas e do humano.
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Todas as
recentes teorias científicas introduzem na matéria os conceitos de
historicidade, de liberdade, de autodeterminação e até, parta alguns, de
consciência e magnetismo que antes o homem e a mulher tinham reservado para
si. Isso implica uma nova e ainda mais radical conclusão se o saber
e a matéria estão intimamente ligados na complexidade, então, as ciências
naturais e as sociais estão também interligadas, assim ,não existe a
possibilidade de uma ciência não social e como nos lembra Boaventura de Sousa
Santos, na complexidade: todas as ciências são sociais. [2].
Enfim existem paradigmas maiores e
paradigmas menores. O paradigma cartesiano vigorou intensamente até 1950.
A crise do paradigma cartesiano implica na emergência de um outro: o paradigma
da complexidade (que é diferente).
No método 3, Edgar Morin nos fala em
crise dos fundamentos seguros do pensamento e da ciência, frente à construção
de sistemas firmados - por estes próprios fundamentos de base - que impedem a
desconstrução generalizada realizada pelos questionamentos relativizadores
sobre todo o conhecimento. Nesta nova e complexa percepção da estruturação sem
estrutura, no lugar dos fundamentos agora perdidos o próprio Einstein nos diz: retiraram nosso chão sólido e visível sobre
o qual pisamos, a matéria se integrou ao mundo oculto, o chão escorregou. Na
complexidade, somos plasmados pelo lodo do oculto do corpúsculo, da partícula e
da onda elementar que compõem a unidade inseparável da ordem e da desordem e
organização do Universo.
Até 1617, o paradigma
astrológico (aristotélico tomista) concebia um universo celeste perfeito. O
paradigma cartesiano - começando por Copérnico sistematizado por Descartes e
modelado teórica e matematicamente por Newton, sobretudo, pela confirmação da
lei da gravitação universal - propunha uma ruptura radical, a unificação do
mundo físico terrestre com o mundo cósmico/celeste. Isto implicou em
modificação radical também da Universidade medieval, construção de
departamentos, disciplinas especializadas de conhecimento, etc. Um novo modo de
pensar e instituir o pensamento científico e de estruturar todas as
instituições modernas.
O paradigma cartesiano é uma ruptura
muito radical com o paradigma astrológico. O mundo passa a vir a ser – flecha
ascendente integrando matéria e energia (eletromagnetismo) buscando uma
totalidade sistêmica sistêmica – ainda que mecânica e não complexa. O cérebro
(mente) é separado do corpo e o sujeito é separado do objeto.
O paradigma da complexidade implica
na indissociação do sujeito do objeto, da mente e da matéria, e de uma dimensão
sistêmica que integre a flecha descendente com a ascendente. Não se trata de
buscar o equilíbrio, nas estruturas dissipativas. O equilíbrio não existe na
complexidade, seria a tensão absoluta entre o vir a ser e o não vir a ser. A
auto organização é uma preponderância do vir a ser sobre a dissipação. A
preponderância absoluta da dissipação é a morte de um sistema, sua destruição
total.
Com o paradigma da complexidade
podemos reinterpretar os clássicos das ciências sociais e redescobrir
novas e ocultas conexões que não estão imediatamente presentes.
A crise dos paradigmas gera também
uma crise de poder. Francis Bacon já tinha nos alertado de que a senda
que conduz o homem ao poder e a que o conduz à ciência estão muito próximas,
sendo quase a mesma. Giordano Bruno que o diga, foi uma vítima do poder da inquisição e
queimado vivo, entre outros motivos por que seu sistema explicativo
baseado numa filosofia naturalista, que questionava a supremacia celeste sobre a natureza e apresentava um novo
homem capaz de descobrir causas racionais e verificáveis no mundo e que
mais tarde veio a se integrar ao paradigma cartesiano.
Agora ciência cartesiana moderna é
fonte de muito poder e resiste a emergência da complexidade.
Foi da balística serviu a produção de
projéteis, a criação dos computadores e a volumosos recursos de financiamento
que tornaram as ciências cognitivas uma potencia de universalização entre os
saberes. O próprio computador é quase uma máquina de execução veloz e precisa
da racionalidade cognitiva. É uma máquina cartesiana. Na ciência cartesiana,
tecnologia e ciência se tornaram inseparável produzindo grandes descobertas e
imensos recursos de financiamento de pesquisas. Isso tem um custo para a ciência
de base. A tecnologia tem avançado muito mais rapidamente do que a ciência de
base. Temos identificação uma paralização da complexidade graças a aceleração
da tecnologia. É preciso buscar um novo equilíbrio cooperativo.
A ciência de base busca entender.
Explicar o que entende, construir experimentos para apenas entender e sem
precisar ter qualquer aplicação específica para a curiosidade que a motiva. A Ciência
aplicada envolve um fazer que ganha escala social com a indústria e a
massificação da aplicação do saber fazer com utilidades. Uma coopera com a
outra. Uma sem a outra não avança socialmente o conhecimento. É preciso as
duas. Só com a tecnologia não evoluímos no conhecimento e sim nas utilidades do
que já sabemos.
As nações modernas, França, Espanha,
Bélgica e Inglaterra para se independizarem do poder Papal, imprimiram enormes
volumes de dinheiros aos cientistas e novos aventureiros do conhecimento
moderno. Na Inglaterra temos o exemplo bem visível da Real society que
financiou muitos experimentos científicos. A ciência de base avançou e aos
poucos veio junto a tecnologia sobre os saberes conquistados e consolidados..
A laiticidade e recusou do sagrado, a
dogmatização, valorizou a crítica, a separação dos poderes como princípios que
marcaram profundamente o pensamento ocidental e não apenas a Revolução
Francesa, bem como a figura do mecenas que financiavam intelectuais.
No Brasil, este processo é bem
diferente. O paradigma cartesiano emerge sobre a influência positivista e a
ciência nasce extremamente dependente do Estado.
Em que sentido o paradigma complexo
compõem um novo tipo de poder ou um poder científico de novo tipo?
Ele – o paradigma complexo - exige integrar a concepção da organização no mundo
científico, diferentemente do paradigma cartesiano que se consolidava
institucionalmente de modo cartesiano, mas não incorporava a organização da
ciência no processo de autoconstrução do saber.
O paradigma complexo impõe a
integração do caos na organização e uma estrutura dissipativa descentralizada
aberta à auto-organização produtiva. Também integra o sujeito ao objeto, o
sujeito não está fora do mundo é reverberativo, é simbiótico.
Independentemente de nós, o Universo
se auto organizou antes de nós mesmo emergirmos como sistema vivo complexo. É
necessária organização descentralizada e capaz de enfrentar a expressão mais
radical da crise gerada pela pulsão arrasadora da dissipação, o que Edgar Morin
chama de “motor selvagem”.
Segundo também Edgar Morin, no seu
livro O Método tomo 1, vivemos numa desordem organizada, inclui no entanto a
organização no próprio paradigma da ciência. Caminhamos em cima da turbulência
da dissipação energética, da improbabilidade, da incerteza. [3]
Não podemos entender a alma sem a sua
substância material e nem o corpo como substância própria separada da auto
organização da matéria, pensamos ligados ao corpo e a consciência é
também matéria complexa organizada.
O mesmo não podemos entender na
complexidade a ideia do sujeito determinando e separado da ideia de objeto.
A complexidade
não é um problema novo. O pensamento humano sempre enfrentou a
complexidade e tentou, ou bem reduzi-la, ou bem traduzi-la.
Os grandes pensadores sempre fizeram uma descoberta de complexidade. Até uma
simples lei, como a da gravidade, permitiu ligar, sem reduzi-los, fenômenos
diversos como a queda dos corpos, o fato de a Lua não cair na Terra, o
movimento das marés. Claro que a relatividade tornou tudo mais complexo. Claro que as descobertas sobre a matéria, emergiu e tempo mudaram a unidimensionalidade
do moderno paradigma. Claro que a evolução simbiogênetica colocou de ponta a
cabeça o entendíamos sobre vida e evolução. Toda grande filosofia foi uma
descoberta de complexidade; depois, ao formar um sistema em torno da complexidade
que revelou, ela encerra outras complexidades.
A rigidez da
lógica clássica pelo diálogo capaz de conceber noções ao mesmo tempo
complementares e antagonistas, e completara o conhecimento da integração das
partes em um rodo, pelo reconhecimento da integração do todo no interior das
partes.
Ligará a explicação
à compreensão, em todos os fenômenos humanos. Vamos repetir aqui a diferença
entre explicação e compreensão. Explicar é considerar o objeto de conhecimento
apenas como um objeto e aplicar-lhe todos os meios objetivos de elucidação. De
modo que há um conhecimento explicativo que é objetivo, isto é, que considera
os objetos dos quais é preciso determinar as formas, as qualidades, as
quantidades, e cujo comportamento conhecemos pela causalidade mecânica e
determinista. A explicação, claro, é necessária à compreensão
intelectual ou objetiva. Mas é insuficiente para a compreensão
humana.
Há um
conhecimento que é compreensível e está fundada sobre a comunicação e a empatia
— simpatia, mesmo — intersubjetivas. Assim, compreendo as lágrimas, o sorriso,
o riso, o medo, a cólera, ao ver o ego alter como alter
ego, por minha capacidade de experimentar os mesmos sentimentos que
ele. A partir daí, compreender comporta um processo de identificação e de
projeção de sujeito a sujeito. Vê-se uma criança em prantos, vou compreendê-la
não pela medição do grau de salinidade de suas lágrimas, mas por identificá-la
comigo e identificar-me com ela. A compreensão, sempre intersubjetiva,
necessita de abertura e generosidade.
O paradigma da moderna ciência em
crise insere na ideia de mensuração e, assim, na curiosa história da lógica.
Vindo desde a criação da indução por Aristóteles (384-322 a.C.), permaneceu
praticamente imutável durante dois milênios. Pensadores como Galileu Bacon,
Mill e depois Kant (1724-1804) achavam do ponto de vista essencial, em lógica,
depois do grande filósofo grego muito pouco era preciso ser feito além de
minuciá-la e desenvolvê-la.
O estudo da lógica e da metodologia
restringia-se ao da inferência válida (algumas vezes incluindo também a
inferência dita indutiva, não válida, porém possuindo certo caráter
verossímil), de um prisma formal. Na inferência válida, de premissas
verdadeiras chega-se, sempre, a conclusões verdadeiras. As regras da lógica,
devidamente utilizadas, assegurariam isso. Portanto, vimos que a mensuração
lógica está amarrada e se sustenta também com um pensamento lógico devotado ao
raciocínio formalmente redutor.
Por exemplo, Newton, produziu sua síntese
mecanicista extraordinária acreditando que devemos buscar as proposições
inferidas por indução geral a partir dos fenômenos, e não por meio de
especulações hipotéticas. É enfático seu pronunciamento a esse respeito: ”Non
fingo hypotheses”, isto é eu não invento nenhuma dessas causas, que, sem
dúvida, podem dar conta dos fenômenos, mas que somente são verossímeis. Newton
não admite outra causa senão a que pode ser ‘deduzida dos próprios
fenômenos”. [4]
Para Newton, a argumentação indutiva
não é uma demonstração de conclusões gerais e está sujeita a exceções reveladas
pelos fenômenos constatados, pois tudo que não é deduzido dos fenômenos deve
ser chamado uma hipótese; e a hipótese, quer metafísicas ou físicas, quer de
qualidades ocultas ou mecânicas, não têm lugar na filosofia
experimental. Nessa filosofia, as proposições particulares são inferidas dos
fenômenos, e depois tornadas gerais pela indução. [5]
Assim em vez de presumir hipóteses sem
nenhuma comprovação experimental, é preciso consultar a própria natureza,
realizar experimentos bem planejados e a partir daí investigar as causas que
engendram os efeitos. A indução é, então, o melhor caminho de argumentação que
a natureza das coisas admite, e pode ser considerada tanto mais forte quanto
mais geral ela for comprovada.
De um modo geral os pensadores
sociais não questionavam profundamente essas premissas, divergiam sobre seu
emprego mais analítico e dedutivo, mais dialético ou mais
compreensivo, porém jamais colocaram em questão ou criaram novas modalidades
de mensuração complexa para embasar seus pensamentos e conhecimentos sobre a
realidade social.
É claro que os fundacionistas da
sociologia, por exemplo, Marx, Durkheim, Weber não compartilharam das grandes
mudanças científicas que vieram a ocorrer sobre esta tradição milenar. Pois
somente a partir da segunda metade do século 19 e durante todo o século 20 que
isso veio ocorrer e os clássicos da sociologia não puderam ou não
conseguiram sofrer os efeitos da assombrosa transformação produzida por
intelectuais e cientistas contemporâneos.
Hoje a mensuração lógica simétrica
deixou de ser tão somente vinculada à validação das formas válidas de
raciocínio, embora a teoria da argumentação ainda pertença ao campo de suas
aplicações. No momento, ela versa sobretudo, de determinadas “estruturas
abstratas ou reflexivas”, que podemos denominar de sistemas lógicos
simétricos e (não ou) assimétricos, indo desde procedimentos lógicos
orquestrados com analógicos em espírito e subjetivação integrados radicalmente
em estruturas da álgebra reflexiva ou de outros ramos da matemática
computacional e da teoria da informação.
A mensuração clássica é praticamente
e estritamente lógica pura. O sociólogo pesquisador contemporâneo deve saber
tratar de sistemas lógicos diversificados, de inúmeras e contraditórias
conformidades de relevância intrínseca e de significados tocantes às aplicações
sociais múltiplas em fundamentos condizentes com as teorias da informação.
Além disso, a pesquisa aplicada, não
pode se voltar apenas para aplicações dos sistemas e métodos lógicos
em todas as áreas do conhecimento. É certo que existe determinada semelhança
entre algoritmos e problematizações sociais e entre informações em associações
analógicas e lógicas. Até mesmo em geometria não existe mais quem defenda uma
geometria pura, pois se estudam diversas estruturas geométricas: euclidiana,
riemaniana, finita etc. e na geometria aplicada volta-se para as estruturas com
ênfase em aplicações mais ou menos precisas, como nos casos da
geometria do espaço de Minkowski em relatividade restrita ou da
geometria de Riemann em relatividade geral.
Vivemos num
tempo atônito que ao debruçar-se sobre ele próprio descobrimos que os nossos
pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos
já não sermos, ora pensamos não termos ainda deixados de ser, sombras que vêm
do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca virmos a ser.
Quando, ao
procurarmos analisar a situação presente das ciências no seu conjunto, olhamos
para o passado, a primeira imagem é talvez a de que os progressos científicos
dos últimos trinta anos são de tal ordem dramáticos que os séculos que nos
precederam ‑ desde o século XVI, onde todos nós, cientistas modernos, nascemos,
até ao próprio século XIX ‑ não são mais que uma pré‑história longínqua. Mas se
fecharmos os olhos e os voltarmos a abrir, verificamos com surpresa que os
grandes cientistas que estabeleceram e mapearam o campo teórico em que ainda
hoje nos movemos viveram ou trabalharam entre o século XVIII e os
primeiros vinte anos do século XX, de Adam Smith e Ricardo a Lavoisier e
Darwin, de Marx e Durkheim a Max Weber e Pareto, de Humboldt e Planck a
Poincaré e Einstein. E de tal modo é assim que é possível dizer que em termos
científicos vivemos ainda no século XIX do que no século XXI.
No entanto, contraditoriamente, a
ciência transfigurou-se nos últimos 150 anos frente à complexidade da
mensuração em três grandes aspectos: 1) em extraordinário desenvolvimento
técnico e tecnológico; 2) aparecimento das chamadas lógicas e procedimentos
não-clássicos, que complementam ou se afastam daquela batizada de
clássica simétrica, a qual se inspirava em pressupostos da tradição
aristotélica compilada e melhorada pela primeira moderna geração da
ciência, ou seja, a emergência da complexidade e de novas modalidades
operatórias complexas sobre a realidade, inimagináveis até então; 3) a eclosão
de variadas e numerosas aplicações da teoria da informação digital em quase
todos os domínios do saber para todos os domínios da natureza, as artes, a
biologia, a educação, as engenharias, etc.
Por fim, um dos maiores desafios da
complexidade é romper com o saber disciplinar e violentar as fronteiras
dicotômicas que separam as ciências naturais/ciências sociais. O novo
paradigma da complexidade implica em emanciparmos dessa falsa dicotomia.
As próprias
ciências sociais constituíram-se no século XIX segundo os modelos de
racionalidade das ciências naturais clássicas e, assim, a égide das ciências
sociais, afirmada sem mais, pode revelar-se ilusória, contudo, que a
constituição das ciências sociais teve lugar segundo duas vertentes: uma mais
diretamente vinculada à epistemologia e à metodologia positivistas das ciências
naturais, e outra, de vocação antipositivista, caldeada numa tradição
filosófica complexa, fenomenológica, interacionista, mito-simbólica,
hermenêutica, existencialista, pragmática, reivindicando a especificidade do
estudo da sociedade mas tendo, para isso, de pressupor uma concepção
mecanicista da natureza. A pujança desta segunda vertente nas duas últimas
décadas é indicativa de ser o modelo de ciências sociais que, numa época de
revolução científica, transporta para a emergência do novo paradigma.[6]
Trata-se,
como referi também, de um modelo de transição, uma vez que define a
especificidade do humano por contraposição a uma concepção da natureza
que as ciências naturais hoje consideram ultrapassada, mas é
um modelo em que aquilo que o prende ao passado é menos forte do que aquilo que
o prende ao futuro.[7]
Para apreciar o pleno significado do
movimento antifundacional nas ciências sociais, é de suma importância às
contribuições presentes nas obras de Foucault e de Derrida. Mesmo tendo presente
tal importância, este texto deixará de abordar diretamente as temáticas destes
autores e seguirá noutra direção.
É de amplo conhecimento nas ciências
sociais, seguindo a concepção também positivista do conhecimento científico,
tomou posição de que o papel das ciências sociais é reunir “dados
objetivos” e submetê-los à análise científica. O humanismo, ao invés, renuncia
à procura de dados objetivos e aceita a ”subjetividade” inerente às ciências
sociais. À primeira vista parece que os humanistas oferecem uma alternativa
clara à abordagem positivista que assenta numa epistemologia totalmente
diferente. Uma análise mais profunda mostra que não é assim. Ambos grupos -
humanistas e positivistas - partilham uma assunção epistemológica fundamental:
a oposição entre sujeito e objeto. A essência da abordagem
positivista consiste em acentuar o lado do objeto nesta oposição. Os
positivistas pretendem que o fito da investigação científica se constitua pela
acumulação de “conhecimento objetivo” livre de qualquer mancha de
subjetividade. Os humanistas, por outro lado, salientaram a vertente do
sujeito na dicotomia. Na terminologia contemporânea o que os humanistas
realizaram foi a “desconstrução” do objeto no processo de conhecimento nas
ciências sociais. Defendem que a matéria prima das ciências sociais tem como
fonte ações significativas produzidas nas relações intra-humanas, que são
inerentemente “subjetivas”. [8]
Em resumo, à
medida que as ciências naturais se aproximam das ciências sociais, estas se
aproximam das humanidades. A revalorização dos estudos humanísticos acompanha a
revalorização da racionalidade estético-expressiva das artes e da literatura
que, juntamente com o princípio da comunidade, é uma representação inacabada da
modernidade simples A superação da dicotomia ciências naturais/ciências sociais
tende assim a revalorizar os “estudos humanísticos”. Mas esta revalorização não
ocorrerá sem que as humanidades sejam, elas também,
profundamente transformadas. O que há nelas de futuro é terem resistido à
separação entre sujeito e objeto e entre natureza e cultura, e terem preferido
a compreensão do mundo à manipulação do mundo. [9]
Além disso, quer
resistam, quer sucumbam ao modelo cientista, os estudos humanísticos decidiram,
de modo geral, ignorar as relações e os processos sociais responsáveis pela
auto-atribuição da qualidade de autor, pelos critérios de inclusão na
comunidade interpretativa, pela repartição do poder retórico entre diferentes
argumentos, em suma, pela distribuição social das boas razões.
Há que recuperar
esse núcleo genuíno e pô-lo ao serviço de uma reflexão global sobre o mundo. O
texto, sobre que sempre se debruçou a filologia, é uma das analogias
matriciais com que se construirá no paradigma emergente o conhecimento sobre a
sociedade e a natureza. Como catalisadores da progressiva fusão das ciências
naturais e das ciências sociais, os novos estudos humanísticos ajudam-nos a
procurar categorias globais de inteligibilidade, conceitos quentes que derretam
as fronteiras em que a ciência moderna dividiu e encerrou a realidade.
Enfim, todas as ciências são sociais e a nova ciência emergente é uma ciência
assumidamente não simétrica e analógica Em síntese, há procedimentos e lógicas variadas como há geometrias
distintas. É habitual conceber a criação das geometrias não-euclidianas como
uma das grandes transformações de paradigma da ciência, dado que a lógica se
mostra mais básica que a geometria na hierarquia do conhecimento, decorre de
implicações e mudanças no paradigma na ciência aristotélica.[10]
Esse processo está presente hoje em
quase todos os campos do saber: em filosofia, em filosofia da ciência, em
linguística, em matemática (por exemplo, utilização de teoria de modelos em
álgebra), em química, em biologia, em direito, em psicologia etc.
Todavia o que mais nos surpreende são
as aplicações tecnológicas da teoria da informação digital frente à mensuração
científica da realidade. Aplicações, exemplificando, a matemática
das redes conhecida como grafos, muito utilizada para simulações complexas
e para entendermos as organizações emergentes, a lógica "fuzzy" muito
utilizada em engenharia de produção e no controle de tráfego, na notação em
robótica e no reconhecimento automático de assinaturas em bancos, e da clássica
em computação e programação, em sistemas especialistas para diagnóstico médico,
em fabricação de máquinas e na nova modalidade da teoria da
computação flexível e simbólica.
Assim a história da clássica geração
moderna da ciência evidencia e comprova, pelo menos em linhas esquemáticas, os
limites na mensuração do raciocínio correto e lógico de natureza das próprias
noções lógicas, das conexões entre ela e a matemática, caráter
eterno ou provisório das suas leis lógicas, da base limitada da
cognição marcada pelo realismo nas ciências lógico-matemáticas.
O notável lógico e filósofo inglês
A.N. Whitehead (1861-1947) afirmava que a mensuração reflexiva contemporânea
estava para a tradicional assim como a matemática do século passado para a
aritmética das tribos primitivas. Essa afirmação de Whitehead se mostra, em
nossa época, como inteiramente justificável. Porém podemos verificar também que
a mensuração lógica foi incorporada sem modificações críticas e operantes de
relevância pelos fundacionistas da sociologia na construção do próprio saber
sociológico e que eles estão para o Século XXI tão próximos quando estão
afastados da mutação científica que os procederam.
Para tomarmos consciência da
profundidade da crise em que a ciência social se encontra, faz-se necessário
integrar sua crise específica com a crise geral que fundou o moderno saber
científico somente assim poderemos encontrar pistas para a integração cada vez
mais complexa do saber social com o saber da natureza e os novos e pulsantes
desafios dessa nova simbiose.
Estamos cada vez mais
imersos na emergência de uma nova civilização complexa, a civilização
simbiótica. Se os seres humanos tivessem sido feitos para durar mais, seríamos
diferentes. A ciência da vida juntamente com a
evolução simbiótica natural cooperativa de nossos corpos com
bactérias benignas (quase a totalidade deles no planeta são) e com os vírus que
muitos já compõem nosso DNA (25% é retrovírus incorporado), nos deram nas
últimas décadas a espécie simbiótica e a conquista da morte pelo
envelhecimento.
Agora para vivermos
mais tempo e melhor, a simbiogênese social está permitindo co-fabricar um corpo
simbiótico distinto dos que a natureza nos desenhou, com seus discos abaulados,
ossos frágeis, quadris fraturados, ligamentos rompidos, veias varicosas,
catarata, perda da audição, hérnias e hemorroidas: a lista das mazelas
corporais que nos afligem à medida que envelhecemos é longa e muito familiar.
Estamos nos dirigindo
para a emergência de uma nova espécie simbiótica altamente duradoura, com
partículas minúsculas dedicadas totalmente aos bilhões de esforços jeitosos e
cooperativos necessários para nos manter intactos e que nos farão experimentar
um estranhamento sobre o que conhecemos como existência ou sobre o que é o real
movido pela nossa atual singularidade humana.
Se informação não é conhecimento,
e se conhecimento não é sinônimo de sabedoria, não é preciso lembrar que essas
conquistas geram riscos, desafios éticos e sociais imensos que julgamos não
estarmos, ainda, à altura de enfrentá-los.
Temos, cada vez mais,
uma compreensão da importância da simbiogênese, não apenas a demonstrada nas
nossas interações com os micro-organismos, mas um borramento amplo de
fronteiras entre o mundo físico, social e biológico; uma transubstancialização
do poder-corpo para o poder-vida.
Com o borramento e
amplificação da simbiogênese microfísica com o universo macrofísico de nosso
tecido social, construímos nossa hipótese da simbiogênêse social. Acreditamos
que estamos – como espécie – borrando uma passagem evolutiva da era
simbiótica e não parabiótica. No lugar de transformar o mundo, nós vamos
agora mudar o próprio ser em evolução.
Assim, não somos
humanos, estamos ainda apenas humanos, mas o futuro duradouro é do simbiótico,
e estamos a passos acelerados nessa direção. Caminhamos aceleradamente, com a
manipulação molecular, para a saída da era neolítica, em que logramos a tarefa
de dominar nosso ambiente, para uma nova era da programação simbiótica. As
nossas próximas tarefas serão o domínio de nosso próprio corpo e dos organismos
vivos em geral.
Nessa nova era de uma
evolução borrada entre os recursos orgânicos e os inorgânicos, em cooperação
com a vida, estaremos transferindo para as criaturas vivas e para as máquinas
ou para matérias inorgânicas parte das suas propriedades singulares, um
borramento de uma nova ecologia simbiótica. Isso já está sendo demonstrado. Por
exemplo, o marca-passo tem sido utilizado com sucesso na medicina desde
1958. [11]
Outros dispositivos
já foram demonstrados em diferentes experimentos e estão sendo também
implantados no corpo humano ao longo dos últimos anos. Por exemplo, eletrodos
para fazer conexão elétrica à espinha dorsal, de modo a estimular órgãos
paralisados (utilizado em Larry Flynt, o famoso editor da revista pornográfica
Hustler, para recuperar sua virilidade, após uma tentativa de assassinato que o
deixou paraplégico) e o incrível implante de olhos artificiais (na verdade,
câmeras CCD ligadas a processadores de imagens) para os cegos, o projeto
desenvolvido pelos oftalmologistas norte-americanos John Wyatt e Joseph Rizzo.
A vida
tecnologicamente inteligente está constituindo uma potente beta natureza (seca,
inorgânica) e gerando um novo recurso simbiótico com a alfa natureza (úmida e
orgânica). São exatamente os recursos da ciência e da tecnologia modelados por
uma sociedade do conhecimento que estão nos impelindo para entrar numa nova era
da evolução. Estamos iniciando a embarcação de uma nova era simbiótica. [12]
Minha indicação final
é que não vivemos apenas uma nova convergência neurodigital ou
uma nova emergência do pós-humano, transhumano ou pós-evolutiva, ao contrário,
estamos deixando para trás o humano demasiadamente humano e emergindo novos
seres simbióticos modelados por uma aceleração envolta de uma evolução
simbiótica, uma evolução geradora de seres bióticos mais duradouros, numa
nova ecologia simbiótica, mais recursiva, ou seja, com novos e potentes
recursos e sentidos para e pro bióticos.
Nos últimos anos, artistas como Stelarc [13] se
dedicaram à discussão cultural e política da possibilidade de ultrapassar o
humano, através de radicais intervenções cirúrgicas, de interfaces entre a
carne e a eletrônica, ou, ainda, de próteses robóticas, para complementar ou
expandir as potencialidades do corpo biológico. Mais do que apenas antecipar
profundas mudanças em nossa percepção, em nossa concepção de mundo e na
reorganização de nossos sistemas sociopolíticos, esses pioneiros anteciparam
transformações fundamentais em nossa própria espécie. Essas transformações
poderão, inclusive, alterar nosso código genético e reorientar o processo
darwiniano de evolução.
No entanto, a
simbiogênese enfrenta a visão reducionista da tecnologia inorgânica, em que a
evolução é tecnocientífica, é assimbiótica, e, por consequência, o futuro
pertence a entidades assimbióticas, sem vida, “andrógenos” ou a seres deuses,
como postula outro israelense, Yuval Noal Harari. [14]
Para entender essa
atrofia que paralisou a evolução científica, em detrimento da hiperevolução
tecnológica nos últimos cinquenta anos, é preciso começar na gênese desse
entroncamento e desvio de rota.
Isso permitirá,
também, ao leitor entender porque minha tão marginal proposição social da
simbiogênese ficou no âmbito de toda minha carreira científica de tornar
pública a construção desse caminho frente às denúncias de atrofia das opções
acadêmicas, científicas, no universo do poder-saber. Entenderão o quão marginal
fiquei diante da capacidade de diálogo com a tecnociência que dominou
completamente, principalmente, a partir dos anos 1980, e hegemonizando
totalmente o conhecimento científico, a partir dos anos 1990, uma síntese de ciências
cognitivas e suas sub-colônias disciplinares.
Tenho uma metáfora
para explicar esse fenômeno da invasão da literatura técnico-científica e
técnico-empresarial no universo das academias, universidades e no solo fértil
da produção científica.
As titãs “ciências
cognitivas” são como uma figueira (que aliás são árvores centenárias
maravilhosas e muito poderosas, e sou grande admirador). As figueiras –
geralmente com sementes trazidas por pássaros – germinam em uma árvore
hospedeira e, bem aos poucos, vão se comportando como estranguladoras. Crescem
se enroscando no caule da hospedeira, competindo com ela, sugando seus insumos
e sua água; quando alcançam o solo, se enraízam, engrossam suas raízes, mostram
toda sua força e, por cintamento, vão apertando, apertando, até sufocar e matar
suas hospedeiras, dando vazão a seus domínios imperiais e centenários.
Da mesma forma, as
ciências cognitivas, (que são muito mais técnico-ciências), facilitadas pelo
imenso poder da computabilidade das máquinas cognitivas, foram enroscando
e sufocando as ciências de base em todo o universo da produção acadêmica e
“científica”, tornando quase a totalidade da ciência e das universidades
uma agência da cognição.
Uma hegemonia que
chega a ser assustadora. De todos os recursos disponibilizados para a pesquisa
científica, em torno de 93% da verba é afunilada para as técnico-ciências
cognitivas e suas sub-colônias disciplinares.
Por
fim, mas não por final, a civilização simbiótica envolve sociedades que são
holísticas; envolve sociedades que também dão respostas pró-bióticas; envolve
sociedades que também transbordam em constantes fenômenos emergentes; envolve
sociedades que são ecológicas, mas produtivas; envolve sociedades que também
são tomadas pela consciência de energias espirituais, não dogmáticas e não
reduzidas na matéria; e a civilização simbiótica envolve sociedades que também
dialogam profunda e abertamente com a ciência.
Na esperança da cooperação humana:
que venha a consciência simbiótica.
[1] Cientista aposentado depois de
décadas de atuação independente sobre múltiplos campos da vida e da tecnologia
na complexidade. Criou a teoria não natural da simbiogênese cooperativa na
evolução cérebro, máquinas, corpos e sociedade. Foi por vários anos pesquisador
acadêmico e industrial coordenando bancadas de pesquisas de ciência de ponta,
tecnologia e protocolos de neuroreabilitação em diferentes cidades e diferentes
países principalmente, europeus.
Tem formação original humanística e foi voltando seus estudos e
pesquisas desde o início dos anos 90 para a abordagem da complexidade nas
metodologias informacionais, depois na nanotecnologia e nos últimos 15 anos de
carreira focou na neuroaprendizagem e reabilitação envolvendo a simbiogênese e
interfaces colaborativas entre cérebro, corpos e displays.
Inventor de várias tecnologias, softwares e protocolos clínicos.
Escritor. Muitas de suas atividades e textos estão disponíveis no
blog: http://glolima.blogspot.com
Atualmente retomou sua atividade como músico compositor, cantor
que atuava na adolescência produzindo atualmente suas canções e coordenando a
Banda Seu Kowalsky e os Nômades de Pedra. Suas músicas e shows vídeos podem ser
acessadas no canal do youtube. https://www.youtube.com/c/seukowalskyeosnomadesdepedra
[2] SANTOS, Boaventura de Sousa. A
Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo:
Cortez,2000: 81.
[4] MORIN, Edgar. . O método 1:
a natureza da natureza. Portugal : Publicações Europa-América, LDA,
1987.
[5] ANDERY, Maria Amália et al. Para
Compreender a Ciência. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo; São Paulo:
Educ: 1988: 245.
[6] SANTOS, 2000: 92.
[7] Idem.
[8] KEKEMAN, SJ. Hermêutica e sociologia do
conhecimento. Lisboa :
Edições 70, 1986:235-236.
[9] Idem
[10] SANTOS, 2000: 89-94.
[11] Para
saber mais veja: KEMPF, Hervé. La
Révolution Biolithique: Humains Artificiels et Machines Animées. Paris: Albin Michel, 1998.
[12] Para saber
mais veja: LIMA, Gilson. Nômades de pedra: teoria da sociedade
simbiogênica contada em prosas. Porto Alegre: Escritos, 2005.
[13] http://stelarc.org/projects.php
(última visita em: 28 de julho de 2020).
[14] Para saber
mais veja: HARARI, Yuval Noah. Homo Deus. São Paulo: Companhia
das Letras, 2016.