quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

A complexidade exige refundarmos às ciências humanas e do humano!


 

Gilson Lima[1]

Estamos cansados do homem. O homem  tornou-se uma forma medíocre e insossa de apequenamento da vida, acabou por se tornar uma meta de civilização. É preciso livrar-se do homem para liberar a vida. O campo de batalha é o próprio corpo do homem; são travadas lutas cruéis e brutais sobre o corpo do homem, desde seus genes até os seus gestos, sua percepção, seus afetos. A vida emerge em simbiose para evoluir como: um grande experimentar-se de si mesmo num longo agora em cooperação.

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Comentários iniciais do autor:

Esse é um texto de 12 páginas que resolvi compartilhar com vocês. Um pouco longo para o padrão da época de hoje. É um texto histórico que escrevi há 21 anos atrás, antes do meu doutorado. Emergia depois de meu mestrado a necessidade de refundamentação das ciências humanas e seus clássicos fundacionistas.  Até hoje a teoria social da simbiogênese não é ensinada nas universidades e escolas e, muito menos, nos cursos específicos das ciências humanas. O paradigma moderno reina também nas ciências ditas humanas e do humano.

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           As características da auto-organização, do metabolismo e da auto-reprodução, antes consideradas específicas dos seres vivos atribuídas aos sistemas pré-celulares de moléculas, na simbiogênese social, implica agora também em atribuir também essas características na macro realidade física do comportamento social. Borrar fronteiras entre o universo celular, molecular e macro social é fundamental para romper com o humanismo unidimensional. O mesmos humanismo que prendeu a vida na forma homem. Reconhecer a espécie simbiótica com sua rede bi[ótica hibrida, difusa e multidimensional entre organismos não humanos, vírus, fungos  e células de bactérias amigas numa rede de cooperação com o ambiente vivo do nosso planeta simbiótico.

Todas as recentes teorias científicas introduzem na matéria os conceitos de historicidade, de liberdade, de autodeterminação e até, parta alguns, de consciência e magnetismo que antes o homem e a mulher tinham reservado para si.  Isso implica uma nova e ainda mais radical conclusão se o saber e a matéria estão intimamente ligados na complexidade, então, as ciências naturais e as sociais estão também interligadas, assim ,não existe a possibilidade de uma ciência não social e como nos lembra Boaventura de Sousa Santos, na complexidade: todas as ciências são sociais. [2].

Enfim existem paradigmas maiores e paradigmas menores. O paradigma cartesiano vigorou intensamente até 1950. A crise do paradigma cartesiano implica na emergência de um outro: o paradigma da complexidade (que é diferente).

No método 3, Edgar Morin nos fala em crise dos fundamentos seguros do pensamento e da ciência, frente à construção de sistemas firmados - por estes próprios fundamentos de base - que impedem a desconstrução generalizada realizada pelos questionamentos relativizadores sobre todo o conhecimento. Nesta nova e complexa percepção da estruturação sem estrutura, no lugar dos fundamentos agora perdidos o próprio Einstein nos diz: retiraram nosso chão sólido e visível sobre o qual pisamos, a matéria se integrou ao mundo oculto, o chão escorregou. Na complexidade, somos plasmados pelo lodo do oculto do corpúsculo, da partícula e da onda elementar que compõem a unidade inseparável da ordem e da desordem e organização do Universo.

 Até 1617, o paradigma astrológico (aristotélico tomista) concebia um universo celeste perfeito. O paradigma cartesiano - começando por Copérnico sistematizado por Descartes e modelado teórica e matematicamente por Newton, sobretudo, pela confirmação da lei da gravitação universal - propunha uma ruptura radical, a unificação do mundo físico terrestre com o mundo cósmico/celeste. Isto implicou em modificação radical também da Universidade medieval, construção de departamentos, disciplinas especializadas de conhecimento, etc. Um novo modo de pensar e instituir o pensamento científico e de estruturar todas as instituições modernas.

O paradigma cartesiano é uma ruptura muito radical com o paradigma astrológico. O mundo passa a vir a ser – flecha ascendente integrando matéria e energia (eletromagnetismo) buscando uma totalidade sistêmica sistêmica – ainda que mecânica e não complexa. O cérebro (mente) é separado do corpo e o sujeito é separado do objeto.

O paradigma da complexidade implica na indissociação do sujeito do objeto, da mente e da matéria, e de uma dimensão sistêmica que integre a flecha descendente com a ascendente. Não se trata de buscar o equilíbrio, nas estruturas dissipativas. O equilíbrio não existe na complexidade, seria a tensão absoluta entre o vir a ser e o não vir a ser. A auto organização é uma preponderância do vir a ser sobre a dissipação. A preponderância absoluta da dissipação é a morte de um sistema, sua destruição total.

Com o paradigma da complexidade podemos reinterpretar os clássicos das ciências sociais e redescobrir novas e ocultas conexões que não estão imediatamente presentes.

A crise dos paradigmas gera também uma crise de poder. Francis Bacon já tinha nos alertado de que a senda que conduz o homem ao poder e a que o conduz à ciência estão muito próximas, sendo quase a mesma. Giordano Bruno que o diga, foi uma vítima do poder da inquisição e queimado vivo, entre outros motivos por que seu sistema explicativo baseado numa filosofia naturalista, que  questionava a supremacia celeste sobre a natureza e apresentava um novo homem capaz de descobrir causas racionais e verificáveis no mundo e que mais tarde veio a se integrar ao paradigma cartesiano.

Agora ciência cartesiana moderna é fonte de muito poder e resiste a emergência da complexidade.

Foi da balística serviu a produção de projéteis, a criação dos computadores e a volumosos recursos de financiamento que tornaram as ciências cognitivas uma potencia de universalização entre os saberes. O próprio computador é quase uma máquina de execução veloz e precisa da racionalidade cognitiva. É uma máquina cartesiana. Na ciência cartesiana, tecnologia e ciência se tornaram inseparável produzindo grandes descobertas e imensos recursos de financiamento de pesquisas. Isso tem um custo para a ciência de base. A tecnologia tem avançado muito mais rapidamente do que a ciência de base. Temos identificação uma paralização da complexidade graças a aceleração da tecnologia. É preciso buscar um novo equilíbrio cooperativo.

A ciência de base busca entender. Explicar o que entende, construir experimentos para apenas entender e sem precisar ter qualquer aplicação específica para a curiosidade que a motiva. A Ciência aplicada envolve um fazer que ganha escala social com a indústria e a massificação da aplicação do saber fazer com utilidades. Uma coopera com a outra. Uma sem a outra não avança socialmente o conhecimento. É preciso as duas. Só com a tecnologia não evoluímos no conhecimento e sim nas utilidades do que já sabemos.

As nações modernas, França, Espanha, Bélgica e Inglaterra para se independizarem do poder Papal, imprimiram enormes volumes de dinheiros aos cientistas e novos aventureiros do conhecimento moderno. Na Inglaterra temos o exemplo bem visível da Real society que financiou muitos experimentos científicos. A ciência de base avançou e aos poucos veio junto a tecnologia sobre os saberes conquistados e consolidados..

A laiticidade e recusou do sagrado, a dogmatização, valorizou a crítica, a  separação dos poderes como princípios que marcaram profundamente o pensamento ocidental e não apenas a Revolução Francesa, bem como a figura do mecenas que financiavam intelectuais.

No Brasil, este processo é bem diferente. O paradigma cartesiano emerge sobre a influência positivista e a ciência nasce extremamente dependente do Estado.

Em que sentido o paradigma complexo compõem um novo tipo de poder ou um poder científico de novo tipo? Ele – o paradigma complexo - exige integrar a concepção da organização no mundo científico, diferentemente do paradigma cartesiano que se consolidava institucionalmente de modo cartesiano, mas não incorporava a organização da ciência no processo de autoconstrução do saber.

O paradigma complexo impõe a integração do caos na organização e uma estrutura dissipativa descentralizada aberta à auto-organização produtiva. Também integra o sujeito ao objeto, o sujeito não está fora do mundo é reverberativo, é simbiótico.

Independentemente de nós, o Universo se auto organizou antes de nós mesmo emergirmos como sistema vivo complexo. É necessária organização descentralizada e capaz de enfrentar a expressão mais radical da crise gerada pela pulsão arrasadora da dissipação, o que Edgar Morin chama de “motor selvagem”.

Segundo também Edgar Morin, no seu livro O Método tomo 1, vivemos numa desordem organizada, inclui no entanto a organização no próprio paradigma da ciência. Caminhamos em cima da turbulência da dissipação energética, da improbabilidade, da incerteza. [3]

Não podemos entender a alma sem a sua substância material e nem o corpo como substância própria separada da auto organização da matéria, pensamos ligados ao corpo e a consciência é também  matéria complexa organizada.

O mesmo não podemos entender na complexidade a ideia do sujeito determinando e separado da ideia de objeto.

A complexidade não é um problema novo. O pensamento humano sempre enfrentou a complexidade e tentou, ou bem reduzi-la, ou bem traduzi-la. Os grandes pensadores sempre fizeram uma descoberta de complexidade. Até uma simples lei, como a da gravidade, permitiu ligar, sem reduzi-los, fenômenos diversos como a queda dos corpos, o fato de a Lua não cair na Terra, o movimento das marés. Claro que a relatividade tornou tudo mais complexo. Claro que as descobertas sobre a matéria, emergiu e tempo mudaram a unidimensionalidade do moderno paradigma. Claro que a evolução simbiogênetica colocou de ponta a cabeça o entendíamos sobre vida e evolução. Toda grande filosofia foi uma descoberta de complexidade; depois, ao formar um sistema em torno da complexidade que revelou, ela encerra outras complexidades.

A rigidez da lógica clássica pelo diálogo capaz de conceber noções ao mesmo tempo complementares e antagonistas, e completara o conhecimento da integração das partes em um rodo, pelo reconhecimento da integração do todo no interior das partes.

Ligará a explicação à compreensão, em todos os fenômenos humanos. Vamos repetir aqui a diferença entre explicação e compreensão. Explicar é considerar o objeto de conhecimento apenas como um objeto e aplicar-lhe todos os meios objetivos de elucidação. De modo que há um conhecimento explicativo que é objetivo, isto é, que considera os objetos dos quais é preciso determinar as for­mas, as qualidades, as quantidades, e cujo comportamento conhecemos pela causalidade mecânica e determinista. A explicação, claro, é necessária à compreensão intelectual ou objetiva. Mas é insuficiente para a compreensão humana.

Há um conhecimento que é compreensível e está fundada sobre a comunicação e a empatia — simpatia, mesmo — intersubjetivas. Assim, compreendo as lágrimas, o sorriso, o riso, o medo, a cólera, ao ver o ego alter como alter ego, por minha capacidade de experimentar os mesmos sentimentos que ele. A partir daí, compreender comporta um processo de identificação e de projeção de sujeito a sujeito. Vê-se uma criança em prantos, vou compreendê-la não pela medição do grau de salinidade de suas lágrimas, mas por identificá-la comigo e identificar-me com ela. A compreensão, sempre intersubjetiva, necessita de abertura e generosidade.

O paradigma da moderna ciência em crise insere na ideia de mensuração e, assim, na curiosa história da lógica. Vindo desde a criação da indução por Aristóteles (384-322 a.C.), permaneceu praticamente imutável durante dois milênios. Pensadores como Galileu Bacon, Mill e depois Kant (1724-1804) achavam do ponto de vista essencial, em lógica, depois do grande filósofo grego muito pouco era preciso ser feito além de minuciá-la e desenvolvê-la.

O estudo da lógica e da metodologia restringia-se ao da inferência válida (algumas vezes incluindo também a inferência dita indutiva, não válida, porém possuindo certo caráter verossímil), de um prisma formal. Na inferência válida, de premissas verdadeiras chega-se, sempre, a conclusões verdadeiras. As regras da lógica, devidamente utilizadas, assegurariam isso. Portanto, vimos que a mensuração lógica está amarrada e se sustenta também com um pensamento lógico devotado ao raciocínio formalmente redutor.

Por exemplo, Newton, produziu sua síntese mecanicista extraordinária acreditando que devemos buscar as proposições inferidas por indução geral a partir dos fenômenos, e não por meio de especulações hipotéticas. É enfático seu pronunciamento a esse respeito: ”Non fingo hypotheses”, isto é eu não invento nenhuma dessas causas, que, sem dúvida, podem dar conta dos fenômenos, mas que somente são verossímeis. Newton não admite outra causa senão a que pode ser ‘deduzida dos próprios fenômenos”. [4]

Para Newton, a argumentação indutiva não é uma demonstração de conclusões gerais e está sujeita a exceções reveladas pelos fenômenos constatados, pois tudo que não é deduzido dos fenômenos deve ser chamado uma hipótese; e a hipótese, quer metafísicas ou físicas, quer de qualidades ocultas ou mecânicas, não têm lugar na filosofia experimental. Nessa filosofia, as proposições particulares são inferidas dos fenômenos, e depois tornadas gerais pela indução. [5] 

Assim em vez de presumir hipóteses sem nenhuma comprovação experimental, é preciso consultar a própria natureza, realizar experimentos bem planejados e a partir daí investigar as causas que engendram os efeitos. A indução é, então, o melhor caminho de argumentação que a natureza das coisas admite, e pode ser considerada tanto mais forte quanto mais geral ela for comprovada.

De um modo geral os pensadores sociais não questionavam profundamente essas premissas, divergiam sobre seu emprego mais analítico e dedutivo, mais dialético ou mais compreensivo, porém jamais colocaram em questão ou criaram novas modalidades de mensuração complexa para embasar seus pensamentos e conhecimentos sobre a realidade social.

É claro que os fundacionistas da sociologia, por exemplo, Marx, Durkheim, Weber não compartilharam das grandes mudanças científicas que vieram a ocorrer sobre esta tradição milenar. Pois somente a partir da segunda metade do século 19 e durante todo o século 20 que isso veio ocorrer e os clássicos da sociologia não puderam ou não conseguiram sofrer os efeitos da assombrosa transformação produzida por intelectuais e cientistas contemporâneos.

Hoje a mensuração lógica simétrica deixou de ser tão somente vinculada à validação das formas válidas de raciocínio, embora a teoria da argumentação ainda pertença ao campo de suas aplicações. No momento, ela versa sobretudo, de determinadas “estruturas abstratas ou reflexivas”, que podemos denominar de sistemas lógicos simétricos e (não ou) assimétricos, indo desde procedimentos lógicos orquestrados com analógicos em espírito e subjetivação integrados radicalmente em estruturas da álgebra reflexiva ou de outros ramos da matemática computacional e da teoria da informação.

A mensuração clássica é praticamente e estritamente lógica pura. O sociólogo pesquisador contemporâneo deve saber tratar de sistemas lógicos diversificados, de inúmeras e contraditórias conformidades de relevância intrínseca e de significados tocantes às aplicações sociais múltiplas em fundamentos condizentes com as teorias da informação.

Além disso, a pesquisa aplicada, não pode se voltar apenas para  aplicações dos sistemas e métodos lógicos em todas as áreas do conhecimento. É certo que existe determinada semelhança entre algoritmos e problematizações sociais e entre informações em associações analógicas e lógicas. Até mesmo em geometria não existe mais quem defenda uma geometria pura, pois se estudam diversas estruturas geométricas: euclidiana, riemaniana, finita etc. e na geometria aplicada volta-se para as estruturas com ênfase em aplicações mais ou menos precisas, como nos casos da geometria do espaço de Minkowski em relatividade restrita ou da geometria de Riemann em relatividade geral.

Vivemos num tempo atônito que ao debruçar-se sobre ele próprio descobrimos que os nossos pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos ainda deixados de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca virmos a ser.

Quando, ao procurarmos analisar a situação presente das ciências no seu conjunto, olhamos para o passado, a primeira imagem é talvez a de que os progressos científicos dos últimos trinta anos são de tal ordem dramáticos que os séculos que nos precederam ‑ desde o século XVI, onde todos nós, cientistas modernos, nascemos, até ao próprio século XIX ‑ não são mais que uma pré‑história longínqua. Mas se fecharmos os olhos e os voltarmos a abrir, verificamos com surpresa que os grandes cientistas que estabeleceram e mapearam o campo teórico em que ainda hoje nos movemos viveram ou trabalharam entre o século XVIII e os primeiros vinte anos do século XX, de Adam Smith e Ricardo a Lavoisier e Darwin, de Marx e Durkheim a Max Weber e Pareto, de Humboldt e Planck a Poincaré e Einstein. E de tal modo é assim que é possível dizer que em termos científicos vivemos ainda no século XIX do que no século XXI.

No entanto, contraditoriamente, a ciência transfigurou-se nos últimos 150 anos frente à complexidade da mensuração em três grandes aspectos: 1) em extraordinário desenvolvimento técnico e tecnológico; 2) aparecimento das chamadas lógicas e procedimentos não-clássicos, que complementam ou se afastam daquela batizada de clássica simétrica, a qual se inspirava em pressupostos da tradição aristotélica compilada e melhorada pela primeira moderna geração da ciência, ou seja, a emergência da complexidade e de novas modalidades operatórias complexas sobre a realidade, inimagináveis até então; 3) a eclosão de variadas e numerosas aplicações da teoria da informação digital em quase todos os domínios do saber para todos os domínios da natureza, as artes, a biologia, a educação, as engenharias, etc.

Por fim, um dos maiores desafios da complexidade é romper com o saber disciplinar e violentar as fronteiras dicotômicas que separam as ciências naturais/ciências sociais. O novo paradigma da complexidade implica em emanciparmos dessa falsa dicotomia.

As próprias ciências sociais constituíram-se no século XIX segundo os modelos de racionalidade das ciências naturais clássicas e, assim, a égide das ciências sociais, afirmada sem mais, pode revelar-se ilusória, contudo, que a constituição das ciências sociais teve lugar segundo duas vertentes: uma mais diretamente vinculada à epistemologia e à metodologia positivistas das ciências naturais, e outra, de vocação antipositivista, caldeada numa tradição filosófica complexa, fenomenológica, interacionista, mito-simbólica, hermenêutica, existencialista, pragmática, reivindicando a especificidade do estudo da sociedade mas tendo, para isso, de pressupor uma concepção mecanicista da natureza. A pujança desta segunda vertente nas duas últimas décadas é indicativa de ser o modelo de ciências sociais que, numa época de revolução científica, transporta para a emergência do novo paradigma.[6]

  Trata-se, como referi também, de um modelo de transição, uma vez que define a especificidade do humano por contraposição a uma concepção da natureza que as ciências naturais hoje consideram ultrapassada, mas é um modelo em que aquilo que o prende ao passado é menos forte do que aquilo que o prende ao futuro.[7]

Para apreciar o pleno significado do movimento antifundacional nas ciências sociais, é de suma importância às contribuições presentes nas obras de Foucault e de Derrida. Mesmo tendo presente tal importância, este texto deixará de abordar diretamente as temáticas destes autores e seguirá noutra direção.

É de amplo conhecimento nas ciências sociais, seguindo a concepção também positivista do conhecimento científico, tomou posição de que o papel das ciências sociais é reunir “dados objetivos” e submetê-los à análise científica. O humanismo, ao invés, renuncia à procura de dados objetivos e aceita a ”subjetividade” inerente às ciências sociais. À primeira vista parece que os humanistas oferecem uma alternativa clara à abordagem positivista que assenta numa epistemologia totalmente diferente. Uma análise mais profunda mostra que não é assim. Ambos grupos - humanistas e positivistas - partilham uma assunção epistemológica fundamental: a oposição entre sujeito e objeto. A essência da abordagem positivista consiste em acentuar o lado do objeto nesta oposição. Os positivistas pretendem que o fito da investigação científica se constitua pela acumulação de “conhecimento objetivo” livre de qualquer mancha de subjetividade. Os humanistas, por outro lado, salientaram a vertente do sujeito na dicotomia. Na terminologia contemporânea o que os humanistas realizaram foi a “desconstrução” do objeto no processo de conhecimento nas ciências sociais. Defendem que a matéria prima das ciências sociais tem como fonte ações significativas produzidas nas relações intra-humanas, que são inerentemente “subjetivas”. [8]

Em resumo, à medida que as ciências naturais se aproximam das ciências sociais, estas se aproximam das humanidades. A revalorização dos estudos humanísticos acompanha a revalorização da racionalidade estético-expressiva das artes e da literatura que, juntamente com o princípio da comunidade, é uma representação inacabada da modernidade simples A superação da dicotomia ciências naturais/ciências sociais tende assim a revalorizar os “estudos humanísticos”. Mas esta revalorização não ocorrerá sem que as humanidades sejam, elas também, profundamente transformadas. O que há nelas de futuro é terem resistido à separação entre sujeito e objeto e entre natureza e cultura, e terem preferido a compreensão do mundo à manipulação do mundo. [9]

Além disso, quer resistam, quer sucumbam ao modelo cientista, os estudos humanísticos decidiram, de modo geral, ignorar as relações e os processos sociais responsáveis pela auto-atribuição da qualidade de autor, pelos critérios de inclusão na comunidade interpretativa, pela repartição do poder retórico entre diferentes argumentos, em suma, pela distribuição social das boas razões.

Há que recuperar esse núcleo genuíno e pô-lo ao serviço de uma reflexão global sobre o mundo. O texto, sobre que sempre se debruçou a filologia, é uma das analogias matriciais com que se construirá no paradigma emergente o conhecimento sobre a sociedade e a natureza. Como catalisadores da progressiva fusão das ciências naturais e das ciências sociais, os novos estudos humanísticos ajudam-nos a procurar categorias globais de inteligibilidade, conceitos quentes que derretam as fronteiras em que a ciência moderna dividiu e encerrou a realidade. Enfim, todas as ciências são sociais e a nova ciência emergente é uma ciência assumidamente não simétrica e analógica Em síntese, há procedimentos e lógicas variadas como há geometrias distintas. É habitual conceber a criação das geometrias não-euclidianas como uma das grandes transformações de paradigma da ciência, dado que a lógica se mostra mais básica que a geometria na hierarquia do conhecimento, decorre de implicações e mudanças no paradigma na ciência aristotélica.[10]

Esse processo está presente hoje em quase todos os campos do saber: em filosofia, em filosofia da ciência, em linguística, em matemática (por exemplo, utilização de teoria de modelos em álgebra), em química, em biologia, em direito, em psicologia etc.

Todavia o que mais nos surpreende são as aplicações tecnológicas da teoria da informação digital frente à mensuração científica da realidade. Aplicações, exemplificando, a matemática das redes conhecida como grafos, muito utilizada para simulações complexas e para entendermos as organizações emergentes, a lógica "fuzzy" muito utilizada em engenharia de produção e no controle de tráfego, na notação em robótica e no reconhecimento automático de assinaturas em bancos, e da clássica em computação e programação, em sistemas especialistas para diagnóstico médico, em fabricação de máquinas e na  nova modalidade da teoria da computação flexível e simbólica.

Assim a história da clássica geração moderna da ciência evidencia e comprova, pelo menos em linhas esquemáticas, os limites na mensuração do raciocínio correto e lógico de natureza das próprias noções lógicas, das conexões entre ela e a matemática, caráter eterno ou provisório das suas leis lógicas, da base limitada da cognição marcada pelo realismo nas ciências lógico-matemáticas.

O notável lógico e filósofo inglês A.N. Whitehead (1861-1947) afirmava que a mensuração reflexiva contemporânea estava para a tradicional assim como a matemática do século passado para a aritmética das tribos primitivas. Essa afirmação de Whitehead se mostra, em nossa época, como inteiramente justificável. Porém podemos verificar também que a mensuração lógica foi incorporada sem modificações críticas e operantes de relevância pelos fundacionistas da sociologia na construção do próprio saber sociológico e que eles estão para o Século XXI tão próximos quando estão afastados da mutação científica que os procederam.

Para tomarmos consciência da profundidade da crise em que a ciência social se encontra, faz-se necessário integrar sua crise específica com a crise geral que fundou o moderno saber científico somente assim poderemos encontrar pistas para a integração cada vez mais complexa do saber social com o saber da natureza e os novos e pulsantes desafios dessa nova simbiose.

Estamos cada vez mais imersos na emergência de uma nova civilização complexa, a civilização simbiótica. Se os seres humanos tivessem sido feitos para durar mais, seríamos diferentes. A ciência da vida juntamente com a evolução  simbiótica natural cooperativa de nossos corpos com bactérias benignas (quase a totalidade deles no planeta são) e com os vírus que muitos já compõem nosso DNA (25% é retrovírus incorporado), nos deram nas últimas décadas a espécie simbiótica e a conquista da morte pelo envelhecimento.

Agora para vivermos mais tempo e melhor, a simbiogênese social está permitindo co-fabricar um corpo simbiótico distinto dos que a natureza nos desenhou, com seus discos abaulados, ossos frágeis, quadris fraturados, ligamentos rompidos, veias varicosas, catarata, perda da audição, hérnias e hemorroidas: a lista das mazelas corporais que nos afligem à medida que envelhecemos é longa e muito familiar.

Estamos nos dirigindo para a emergência de uma nova espécie simbiótica altamente duradoura, com partículas minúsculas dedicadas totalmente aos bilhões de esforços jeitosos e cooperativos necessários para nos manter intactos e que nos farão experimentar um estranhamento sobre o que conhecemos como existência ou sobre o que é o real movido pela nossa atual singularidade humana.

Se informação não é conhecimento, e se conhecimento não é sinônimo de sabedoria, não é preciso lembrar que essas conquistas geram riscos, desafios éticos e sociais imensos que julgamos não estarmos, ainda, à altura de enfrentá-los.

Temos, cada vez mais, uma compreensão da importância da simbiogênese, não apenas a demonstrada nas nossas interações com os micro-organismos, mas um borramento amplo de fronteiras entre o mundo físico, social e biológico; uma transubstancialização do poder-corpo para o poder-vida.

Com o borramento e amplificação da simbiogênese microfísica com o universo macrofísico de nosso tecido social, construímos nossa hipótese da simbiogênêse social. Acreditamos que estamos – como espécie – borrando uma passagem evolutiva da era simbiótica e não parabiótica. No lugar de transformar o mundo, nós vamos agora mudar o próprio ser em evolução.

Assim, não somos humanos, estamos ainda apenas humanos, mas o futuro duradouro é do simbiótico, e estamos a passos acelerados nessa direção. Caminhamos aceleradamente, com a manipulação molecular, para a saída da era neolítica, em que logramos a tarefa de dominar nosso ambiente, para uma nova era da programação simbiótica. As nossas próximas tarefas serão o domínio de nosso próprio corpo e dos organismos vivos em geral.

Nessa nova era de uma evolução borrada entre os recursos orgânicos e os inorgânicos, em cooperação com a vida, estaremos transferindo para as criaturas vivas e para as máquinas ou para matérias inorgânicas parte das suas propriedades singulares, um borramento de uma nova ecologia simbiótica. Isso já está sendo demonstrado. Por exemplo, o marca-passo tem sido utilizado com sucesso na medicina desde 1958. [11]

Outros dispositivos já foram demonstrados em diferentes experimentos e estão sendo também implantados no corpo humano ao longo dos últimos anos. Por exemplo, eletrodos para fazer conexão elétrica à espinha dorsal, de modo a estimular órgãos paralisados (utilizado em Larry Flynt, o famoso editor da revista pornográfica Hustler, para recuperar sua virilidade, após uma tentativa de assassinato que o deixou paraplégico) e o incrível implante de olhos artificiais (na verdade, câmeras CCD ligadas a processadores de imagens) para os cegos, o projeto desenvolvido pelos oftalmologistas norte-americanos John Wyatt e Joseph Rizzo.

A vida tecnologicamente inteligente está constituindo uma potente beta natureza (seca, inorgânica) e gerando um novo recurso simbiótico com a alfa natureza (úmida e orgânica). São exatamente os recursos da ciência e da tecnologia modelados por uma sociedade do conhecimento que estão nos impelindo para entrar numa nova era da evolução. Estamos iniciando a embarcação de uma nova era simbiótica[12]

Minha indicação final é que não vivemos apenas uma nova convergência neurodigital ou uma nova emergência do pós-humano, transhumano ou pós-evolutiva, ao contrário, estamos deixando para trás o humano demasiadamente humano e emergindo novos seres simbióticos modelados por uma aceleração envolta de uma evolução simbiótica, uma evolução geradora de seres bióticos mais duradouros, numa nova ecologia simbiótica, mais recursiva, ou seja, com novos e potentes recursos e sentidos para e pro bióticos.

Nos últimos anos, artistas como Stelarc [13] se dedicaram à discussão cultural e política da possibilidade de ultrapassar o humano, através de radicais intervenções cirúrgicas, de interfaces entre a carne e a eletrônica, ou, ainda, de próteses robóticas, para complementar ou expandir as potencialidades do corpo biológico. Mais do que apenas antecipar profundas mudanças em nossa percepção, em nossa concepção de mundo e na reorganização de nossos sistemas sociopolíticos, esses pioneiros anteciparam transformações fundamentais em nossa própria espécie. Essas transformações poderão, inclusive, alterar nosso código genético e reorientar o processo darwiniano de evolução.

No entanto, a simbiogênese enfrenta a visão reducionista da tecnologia inorgânica, em que a evolução é tecnocientífica, é assimbiótica, e, por consequência, o futuro pertence a entidades assimbióticas, sem vida, “andrógenos” ou a seres deuses, como postula outro israelense, Yuval Noal Harari. [14]

Para entender essa atrofia que paralisou a evolução científica, em detrimento da hiperevolução tecnológica nos últimos cinquenta anos, é preciso começar na gênese desse entroncamento e desvio de rota.

Isso permitirá, também, ao leitor entender porque minha tão marginal proposição social da simbiogênese ficou no âmbito de toda minha carreira científica de tornar pública a construção desse caminho frente às denúncias de atrofia das opções acadêmicas, científicas, no universo do poder-saber. Entenderão o quão marginal fiquei diante da capacidade de diálogo com a tecnociência que dominou completamente, principalmente, a partir dos anos 1980, e hegemonizando totalmente o conhecimento científico, a partir dos anos 1990, uma síntese de ciências cognitivas e suas sub-colônias disciplinares.

Tenho uma metáfora para explicar esse fenômeno da invasão da literatura técnico-científica e técnico-empresarial no universo das academias, universidades e no solo fértil da produção científica.

As titãs “ciências cognitivas” são como uma figueira (que aliás são árvores centenárias maravilhosas e muito poderosas, e sou grande admirador). As figueiras – geralmente com sementes trazidas por pássaros – germinam em uma árvore hospedeira e, bem aos poucos, vão se comportando como estranguladoras. Crescem se enroscando no caule da hospedeira, competindo com ela, sugando seus insumos e sua água; quando alcançam o solo, se enraízam, engrossam suas raízes, mostram toda sua força e, por cintamento, vão apertando, apertando, até sufocar e matar suas hospedeiras, dando vazão a seus domínios imperiais e centenários.

Da mesma forma, as ciências cognitivas, (que são muito mais técnico-ciências), facilitadas pelo imenso poder da computabilidade das máquinas cognitivas, foram enroscando e sufocando as ciências de base em todo o universo da produção acadêmica e “científica”, tornando quase a totalidade da ciência e das universidades uma agência da cognição.

Uma hegemonia que chega a ser assustadora. De todos os recursos disponibilizados para a pesquisa científica, em torno de 93% da verba é afunilada para as técnico-ciências cognitivas e suas sub-colônias disciplinares.

Por fim, mas não por final, a civilização simbiótica envolve sociedades que são holísticas; envolve sociedades que também dão respostas pró-bióticas; envolve sociedades que também transbordam em constantes fenômenos emergentes; envolve sociedades que são ecológicas, mas produtivas; envolve sociedades que também são tomadas pela consciência de energias espirituais, não dogmáticas e não reduzidas na matéria; e a civilização simbiótica envolve sociedades que também dialogam profunda e abertamente com a ciência.

Na esperança da cooperação humana: que venha a consciência simbiótica.



[1] Cientista aposentado depois de décadas de atuação independente sobre múltiplos campos da vida e da tecnologia na complexidade. Criou a teoria não natural da simbiogênese cooperativa na evolução cérebro, máquinas, corpos e sociedade. Foi por vários anos pesquisador acadêmico e industrial coordenando bancadas de pesquisas de ciência de ponta, tecnologia e protocolos de neuroreabilitação em diferentes cidades e diferentes países principalmente, europeus.  

Tem formação original humanística e foi voltando seus estudos e pesquisas desde o início dos anos 90 para a abordagem da complexidade nas metodologias informacionais, depois na nanotecnologia e nos últimos 15 anos de carreira focou na neuroaprendizagem e reabilitação envolvendo a simbiogênese e interfaces colaborativas entre cérebro, corpos e displays.

Inventor de várias tecnologias, softwares e protocolos clínicos.

Escritor. Muitas de suas atividades e textos estão disponíveis no blog: http://glolima.blogspot.com

Atualmente retomou sua atividade como músico compositor, cantor que atuava na adolescência produzindo atualmente suas canções e coordenando a Banda Seu Kowalsky e os Nômades de Pedra. Suas músicas e shows vídeos podem ser acessadas no canal do youtube. https://www.youtube.com/c/seukowalskyeosnomadesdepedra

[2] SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez,2000: 81.

 [3] SANTOS, 2000: 89.

[4] MORIN, Edgar. . O método 1: a natureza da natureza. Portugal : Publicações Europa-América, LDA, 1987.

[5] ANDERY, Maria Amália et al. Para Compreender a Ciência. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo; São Paulo: Educ: 1988: 245.

[6] SANTOS, 2000: 92.

[7] Idem.

[8] KEKEMAN, SJ. Hermêutica e sociologia do conhecimento. Lisboa : Edições 70, 1986:235-236.

[9] Idem

[10] SANTOS, 2000: 89-94.

[11] Para saber mais veja: KEMPF, Hervé. La Révolution Biolithique: Humains Artificiels et Machines Animées. Paris: Albin Michel, 1998.

[12] Para saber mais veja: LIMA, Gilson. Nômades de pedra: teoria da sociedade simbiogênica contada em prosas. Porto Alegre: Escritos, 2005.

[13] http://stelarc.org/projects.php  (última visita em: 28 de julho de 2020).

[14] Para saber mais veja: HARARI, Yuval Noah. Homo Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

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