PENSAR É IMAGINAR => A escuta do sensível e a nova civilização da imagem
Gilson Lima *
Estamos se petrificando e nos tornando surdos à
escuta do sensível. Para uma aguda escuta do sensível, quase sempre precisamos
de um distanciamento do império da luz. Assim, uma certa qualidade de penumbra,
de limpeza e de silêncio faz-se muito necessária para que o simples ruído do
canto das asas de um mosquito possa ofuscar intensamente nossos ouvidos.
Não custa repetirmos as sábias palavras de J.
Tanizaki no seu Elogio das Sombras[i],
quando diz que precisamos de lugares onde possamos ouvir uma chuva mansa e
contínua caindo bem de mansinho e o ruído apaziguador das suas gotas que,
tocando o beiral ou as folhas das árvores, respingam sobre as frias calçadas de
pedra das cidades, amolecendo seu limo antes que suas gotas amontoadas em poças
sejam sugadas pela terra. Em verdade, tais lugares convêm aos gritos dos
insetos, ao canto dos pássaros e, igualmente, às noites de luar. Assim,
poderemos saborear a pungente melancolia das coisas em cada uma das estações.
Que incontáveis temas não podem ser encontrados nesta chuva dentro de nossa
imaginação?
A imaginação passa a ser algo como um campo ou um
lugar dentro do qual chove! Dante há muito tempo nos disse em seus versos do
"Purgatório" (XVII, 25) "Poi piovve dentro a I´alta
fantasia", ou seja, a fantasia, a imaginação é um lugar dentro do qual
chove.
O escritor italiano Ítalo Calvino nos sugeriu, a
partir desse convite de Dante a criarmos uma nova pedagogia, uma pedagogia da
imaginação, que nos habitue a controlar a própria visão interior sem sufocá-la
e, por outro lado, sem deixá-la cair num confuso e passageiro fantasiar, mas
permitindo que as imagens se cristalizem numa forma bem definida, memorável,
auto-suficiente. É claro que se trata de uma pedagogia que só podemos aplicar a
nós mesmos, seguindo métodos a serem inventados a cada instante e com resultados
imprevisíveis.
Na verdade, isso significa que precisamos é de uma
conversão para a fra
Para capturarmos intensamente os ruídos do mundo é
necessário uma certa fra
Porém, como podemos tomar de assalto os ruídos do
mundo se nem ao menos sabemos que mundo é esse? Que sentidos são esses que
provêm de um mundo onde também fabricamos socialmente novos ruídos que podem,
intensamente, não só potencializar nossos sentidos, mas fabricar novos?
O filósofo Peter Pál Pelbart, encontrou e destacou
nos diários de Kafka uma passagem que nos diz: “a noite nada se opõe para que
eu seja dilacerado”. Novamente vem a nós a imagem da fra
No entanto, trata-se de uma insônia produtiva, que
altera nossos estados naturais de alerta, que favorece as invasões. Somos como
que cercados por todos os lados sem força para combater o cerco. Quando não
resistimos mais, deixamos o corpo ser invadido de assalto pelo entorno. É como
abrir a janela no inverno e ficar exposto, nu ao seu frio arrebatador. Essa, é
uma sensação clara de fra
Entretanto, isso não pode significar que nos
tornamos apenas receptores do mundo; que não sabemos selecionar. Vivemos
também numa era de "hiperaceleração" e de obesidade informacional que produz um conhecimento cada vez mais ausente
de sabedoria. Na verdade, é a coisificação e petrificação dominante que quer
nos transformar em devoradores de todos os atravessamentos que o mundo nos
apresenta. Não precisamos engolir tudo, pois, engolir tudo é vomitar para
dentro.[iv]
Para bebermos intensamente da singularidade do
processo de pensarmos por imagens, com uma imaginação criativa, liberta da
autofagia do consumismo petrificante, precisamos estar totalmente presentes na
imagem quando do minuto da imagem.
A
imagem atinge as profundezas antes de emocionar a superfície. Isso
é verdade em uma experiência de criação, ou até mesmo numa simples leitura de
um texto linear. A imagem que a leitura nos oferece torna-se realmente nossa.
Enraíza-se em nós mesmos. Aqui a expressão cria o ser. Por essa
criatividade, a consciência imaginante se revela, simplesmente, mas
muito puramente, como uma origem. Isolar esse valor de origem de diversas
imagens deve ser o sentido de quem quer penetrar num estudo da imaginação
criativa.
Somos, hoje, a ''civilização da imagem'', ainda
que para muitos de nós, até a pouco, ela recém estivesse em seu início – muito
distante da inflação simbólica atual. Muitos somos ainda filhos de uma época
intermediária, em que se concedia bastante importância às ilustrações coloridas
de quadrinhos que acompanhavam a infância e de brincadeiras artesanalmente
criadas, sem o atual impacto da exposição diante de raros tubos catódicos e diversos tipos de display digitais.
Cada
vez mais as imagens se tornam a forma dominante de comunicação em nosso
cotidiano. O moderno animal racional da escrita linear se transforma cada vez
mais num animal simbólico, onde a cultura da palavra convive intensamente com a
cultura da imagem, onde realidade imaginária e a realidade vital se fundem cada
vez mais.
São
produtos de um contexto onde as tecnologias intelectuais avançam mais rápido do
se é capaz de ser absorvida pelo conhecimento complexo. O que é ainda mais
agravante: este avanço é exponencial. Será que estamos preparados para os
desafios desta inflação informacional?
A
televisão que é o símbolo mais visível da mídia, já mudou significativamente o
modo como nós processamos as informações. A TV fala com o corpo, não com a
mente. O que nos espera a civilização da imagem imersa no bit, no dígito
binário convertido em miniaturas de pixels[v]
invisíveis, mas enquadrantes de significados e significações.
Ler um
texto e olhar uma fotografia são duas operações diferentes e mesmo do ponto de
vista mental são processos que põem em jogo duas áreas cerebrais diferentes. A
imagem midiática, por exemplo, apresenta-se por inteiro, pronta a ser consumida
mobilizada pelos truques sonoros e de enquadramentos que amplificam as conexões
sensórias dos leitores de imagens.
Para
descobrir como reconceitualizarmos uma aprendizagem icônica, precisamos
observar o "ambiente de mídia" ao qual os nossos estudantes estão
expostos hoje. E como estas novas mídias estão afetando a forma como nossos
jovens e filhos hoje aprendem. Verificamos que a tela de vídeo tem um impacto muito
direto no nosso sistema nervoso e ao mesmo tempo muito pequeno na nossa mente.
Então, a maior parte do processamento da informação está sendo executado na
própria tela. Diante da TV nossos olhos seguem as imagens, mesmo que nossas
mentes estejam em outro lugar. E isto é completamente involuntário, devido à
forma como somos biologicamente programados - o sistema nervoso dos mamíferos é
treinado para responder a qualquer mudança no ambiente que possa afetar a sua
sobrevivência.
Estamos
condicionados a responder a estímulos com o que os psico-fisiologistas chamam
de "resposta orientada". Ela irá prender nossa atenção no estímulo ou
provocar a nossa "resposta defensiva", que nos faz recuar ante este
estímulo. As mudanças e cortes na TV de hoje provocam contínuas "respostas
orientadas", prendendo a atenção sem satisfazê-la. Nós nos acomodamos aos
estímulos à medida que os conhecemos.
Uma
resposta completa a um estímulo é conhecida como fechamento (closure). A
maioria dos estímulos gera uma "resposta orientada" e recebe seu
fechamento. A maioria dos especialistas diz que este processo demora cerca de
meio segundo. Podemos ter centenas de "respostas orientadas" a cada
dia, cada uma delas consumindo meio segundo de seu tempo para identificar a
ameaça e descartá-la.
Na
nova paisagem da mídia em que nós e nossos filhos e os jovens estão vivendo, a TV
imprime o que alguns neurologistas chamam de colapso do "intervalo de
fechamento", ou seja, nós nunca completamos o estímulo inicial
- a TV provoca rápidas sucessões de "respostas orientadas" sem dar
tempo para o seu fechamento. Esse processo é também conhecido como "redução
do intervalo", onde a tv elimina o efeito distanciamento do intervalo
entre estímulo e resposta.
Assim
nossos olhos e cérebro têm de fazer minúsculas compensações - e estas
compensações, alguns argumentam, afetam as habilidades gerais de escrita e
capacidade de racionalidade. Em vez de usarmos apenas os olhos sequencialmente,
como ocorreria no processo disciplinar da educação letrada, a civilização da
imagem cresce dando rápidas olhadas a imagens. Nossos jovens e crianças ao
serem convocados a ler um texto de maneira linear e tradicional, aplicam esse
mesmo processo de leitura de imagens com o movimento dos seus olhos nas páginas
impressas.
Diversos
estudos estão nos mostrando que mais do que absorver as palavras, conceitos e
sentenças à medida que são escritas, o mundo da civilização da imagem cada vez
mais computadorizada, está utilizando uma nova leitura, que alguns erroneamente
chamam de leitores preguiçosos.
Na
verdade é um diferente tipo de leitor, capaz mais de decifrar, do que de ler. A
incapacidade de concentração faz com que, para ele, seja difícil ou até mesmo
impossível compreender aquilo que leu. Trata-se do declínio do rendimento no
que se refere às aptidões provenientes da cultura do texto impresso no pagus[vi]
latino.
Os
novos leitores parecem dar rápidas olhadas às coisas, várias vezes, saltando de
ponto a ponto como se estivessem tentando compilar uma fotografia para que a
página faça sentido. Em muitos casos, não estão compreendendo, estão só
formando imagens. Não achamos que isso seja um problema. Embora um universo de um
bombardeio de dezenas ou até centenas de canais de televisão ainda seja uma
espécie de mito da aceleração informacional, que produz uma inútil inflação
informacional.
A
cultura icônica favorece a percepção acima da abstração, o sensitivo sobre o
conceitual, respostas mais emotivas que racionais, do tipo mais do gosto não
gosto do que do concordo não concordo. Na cultura icônica o intuitivo e o
emocional têm primazia sobre o intelectual e o racional.
Assim,
um dos maiores desafios da aprendizagem da atual civilização da imagem, provém
da criação de uma metamorfose complexa que potencialize as qualidades
específicas da cultura do texto com a da cultura da imagem. A partir desta nova
metamorfose, o texto certamente não terá o mesmo monopólio nas narrativas que
eram provenientes das hermenêuticas de profundidade por séculos e séculos. O
tratamento para a conquista tratamento do conhecimento complexo envolverá além
do texto linear, hierárquico e seqüencial também a dimensão sensória, emocional
e a cultura icônica. O desafio será a conquista do conhecimento complexo para
além do poder alienante das navegações das imagens ou, até mesmo, de querer
poder estar em todos os lugares ao mesmo tempo onde o querer informar-se
muito sobre quase tudo nos leve a não sabermos quase nada sobre coisa nenhuma.
Entretanto,
é necessário para a conquista do conhecimento complexo, cada vez mais,
aprendermos integrar a imagem contexto a conceitos e discernimentos. Isso é
crucial para superarmos a trivialidade da atual cultura icônica, onde a
parafernália imagética expressiva, o extravasamento de efeitos especiais, o deslumbramento
puro e simples dos recursos visuais e sonoros, a proliferação de figuras
retóricas visuais e verbais ao virem sempre prontas e embaladas, serve, muitas
vezes, para esconder um imenso vazio de conteúdos significantes. Caso contrário
estaremos nos dirigindo para a uma sociedade atrofiada de sabedoria onde alguns
poucos e espertos analistas simbólicos fabricadores de subjetividades icônicas
manipulam com muita facilidade os muitos, produzindo crenças e realidades superlativas
e sem substantivo, novas formas sem conteúdos, sensações sem reflexões que são sintetizadas
num mero e reducionista consumismo simbólico e informacional.
Esperamos que a civilização da imagem possa vencer
a “petrificação espelhar” da imagem, sem perder sua potência imaginante, para
que cada vez mais possamos ultrapassar as barreiras e armadilhas da
racionalidade moderna e quebrar as grades curriculares que nos aprisionam e que
organizam o saber em nossas instituições escolares, como se estivéssemos
condenados a uma eterna reprodução do conhecimento, estruturada numa linha de
montagem para uma sociedade industrial do trabalho robótico.
No entanto, a imagem e a imaginação não nos levam
automaticamente aos caminhos da sabedoria. Como já vimos, para que não nos
tornemos surdos e insensíveis aos excessos do mundo é preciso encontrar-nos
frente a frente com o disforme, com a imperfeição, com um certo desejo de amor
pela imaturidade e seu sedutor estado de incompletude e que para preservar esse
estado de inacabamento embrionário, que pela sua fraqueza significa, ao
contrário, uma força criadora, é preciso enfrentar a gorda saúde
auto-suficiente, pronta, construída, que, ao contrário, é uma doença que nos
deixa cegos e surdos, ou seja, escassos dos ruídos do mundo, sem iludir e ser
iludido pelas superfícies das ondas do mero consumo simbólico e informacional[vii].
* Esse texto, com pequenas reformulações, foi originalmente publicado no livro Nômades de Pedra: teoria da sociedade simbiogênica contada em prosas, Porto Alegre, 2005, p. 347-350.
Gilson Lima. Cientista aposentado depois de décadas de atuação independente sobre múltiplos campos da vida e da tecnologia na complexidade. Criou a teoria não natural da simbiogênese cooperativa na evolução cérebro, máquinas, corpos e sociedade. Foi por vários anos pesquisador acadêmico e industrial coordenando bancadas de pesquisas de ciência de ponta, tecnologia e protocolos de neuroreabilitação em diferentes cidades e diferentes países principalmente, europeus. Tem formação original humanística e foi voltando seus estudos e pesquisas desde o início dos anos 90 para a abordagem da complexidade nas metodologias informacionais, depois na nanotecnologia e nos últimos 15 anos de carreira focou na neuroaprendizagem e reabilitação envolvendo a simbiogênese e interfaces colaborativas entre cérebro, corpos e displays.
Inventor de várias tecnologias, softwares e protocolos clínicos. Escritor. Muitas de suas atividades e textos estão disponíveis no blog: http://glolima.blogspot.com/
Atualmente retomou sua atividade como músico compositor, cantor que atuava na adolescência produzindo atualmente suas canções e coordenando a Banda Seu Kowalsky e os Nômades de Pedra. Suas músicas e shows vídeos podem ser acessadas no canal do youtube. https://www.youtube.com/c/seukowalskyeosnomadesdepedra
[i] Elogio das Sombras, J.
Tanizaki, São Leopoldo, 2000. Mimeografado (adaptado).
[ii] PELBART,, Paul. A Vertigem por um fio: políticas da
subjetividade contemporânea. São Paulo, Iluminuras, 2000. p 63.
[iii] Ibid, id.
[iv] Ibid, 64
[v] Pixels são os pontinhos na tela que formam a imagem. As imagens televisivas ou de uma tela de computador são formadas por inúmeros pontinhos. A quantidade desses pontinhos numa mesma tela é que garante a maior ou menor resolução da imagem. Quanto menor o tamanho de um pixel, maior será o número total de pixels numa mesma tela e maior será a qualidade da resolução da imagem. Numa tela de computador são os pixels que permitem arrastar e abrir janelas, gerando o que se denomina de interface gráfica. Hoje, abrimos uma janela na tela de um computador, arrastamos janelas de um canto para outro, mudamos o lugar espacial de uma imagem sem alterarmos a integridade dos mesmos dados armazenados. Fazermos isso por meio de comandos simples de interfaces com um apontador clicável, um mouse. Isso pode ser considerado algo banal, mas foi isso que nos levou para uma grande revolução no mundo da informação digital. Tal possibilidade marcou o nascimento da cultura da interface para muito além da programação dirigida apenas para a máquina abstrata.
[vi] Pagus (em latim, campo ou local onde o camponês pisava). Um texto pagus tem as seguintes características: 1) É um texto escrito em páginas estáticas, demarcadas fisicamente por um plano reto, do tipo tábua; 2) Tem um ciclo próprio (um início, um desenvolvimento e um fim). É uma unidade isolada - um texto, um livro é uno, ou seja, uma unidade em si mesma; 3) A organização da sua narrativa é linear, como se seguíssemos uma linha, como se, cada vez mais, acumulássemos conhecimento numa seqüência progressiva enquanto caminhamos na imaginante linha da leitura. A dominância do pagus sobre o pensamento implicou em duas grandes metodologias de reconstrução simbólica da realidade. A primeira, é aquela que se subordinou à idéia de tempo, de precisão linear, presa ao conhecido cronos (tempo cronológico), ou seja, uma representação temporal do tempo, tipo uma flecha que se dirige permanentemente em uma direção progressiva e nunca mais reencontrará o seu início. A segunda, é que isto acabou por levar-nos a um entendimento muito equivocado de inteligência e memória humana. Até hoje, alguns cientistas ainda pensam que nós transferíamos com a leitura, o estoque de informações que estavam impressas nos documentos que se deslocavam mecanicamente para o cérebro. Achavam que era assim que nos tornávamos inteligentes. Hoje, sabemos que esta é uma maneira muito primitiva da inteligência, conhecida como memória computacional de longo prazo.
[vii] PELBART,, Paul. A Vertigem por um fio: políticas da subjetividade contemporânea. São Paulo, Iluminuras, 2000. p 64.
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