Gilson Lima [1]
O que em mim sente está pensando
(Fernando Pessoa)
DrPesquisador - CNPQ - Porto Alegre.E-
Foto no maravilhoso Parque de Cape Town
- Cidade do Cabo – África do Sul.
Geralmente, passarinhos “adultos”
cuidam muito bem dos seus filhotes. São atentos e fraternos, mas só cuidam de
seus filhotes, até que possam se virar sozinhos. O ninho para eles é uma morada provisória e terminal, pois, quando os
filhotes voam rumo ao horizonte, o restante da família passarinho,
também abandona o ninho, não olhando para trás. Nunca mais retornam, apenas
vão. Vão acontecer no mundo voando.
Assim, como todos os
mamíferos humanos não sou passarinho, por isso quero sempre voltar ao ninho. Um
lugar para ficar, pousar, fechar os olhos sem receio, estar ao lado de quem
confio, poder dar colo, debater, brigar, crescer,
morrer, renascer e desassossegar-se
no sossego. O “meu” ninho não é, portanto, uma estada
terminal. Sou eu quem termino, o ninho fica.
Somos seres que acontecemos, e acontecemos no
mundo e, por isso, somos também nossos medos, nossas esperanças e nossos cálculos.
Porém, o que nos torna mais fascinantes como seres
vivos é o que geralmente a razão quer mais esconder, que é a nossa
incompletude, a nossa fragilidade. Somos complexos porque somos frágeis. A
fragilidade humana está presente até nas escolhas filogenéticas e ontogenéticas
que fazemos ao longo da evolução. Querem ver?
Os animais, segundo
a biologia, podem ser artrópodos (exoesqueleto) ou vertebrados
(endoesqueletos). A diferença aqui é entre ter esqueleto externo e esqueleto
interno. Isso é importante, pois implicará na capacidade de como animais nos
mobilizarmos e nos movermos diante da sustentação de nossos próprios corpos.
Imaginem um caracol. Tudo que se encontra dentro do caracol está protegido pelo
seu exoesqueleto (aquela casca dura que achamos ser a casinha dele). O complexo
estado de mentitude (quando a mente acontece no mundo), só se encontra em
animais que precisam se locomover.[2]
Nós seres humanos acabamos, de um jeito ou de
outro, ao longo da nossa evolução, levando os ossos para dentro do corpo e
criamos uma complexa massa externa de frágeis fibras que permitem muita
flexibilidade, excitação de sensibilidade. Porém, para que isso aconteça
ficamos muito frágeis. Sem precisar sequer
sair de casa, expomos nossa fragilidade corpórea aos perigos da aventura do
viver.
Agora imaginem: nós
ficamos de pé, eretos, nos equilibramos e nos movimentamos
levando por aí toda essa nossa frágil cobertura exposta, dia a dia, a
essa aventura de viver no mundo. Olhando, por exemplo, apenas para nossa pele
que nos protege e a tudo que está lá fora para feri-la quando saímos de casa, é quase um milagre voltarmos
intactos para casa.
Somos mesmo muito
corajosos e complexos. Apenas para ficarmos eretos (uma atividade vital para
nossa qualidade humana) precisamos orquestrar um complexo conjunto de conexões
que prevêem posições, intensidades e cálculos. Isso se considerarmos apenas as
conexões que incidem sobre as fibras musculares e que nos permitem indicar
inúmeros monitoramentos de elasticidades, movimentos diversos de intenso volume
e complexidade realizada por nossas pernas, braços e pescoço.
E para caminharmos,
então? Definirmos os movimentos, curvas, destinos, desvios de obstáculos. São
processos tão complexos e tão rápidos, que só com ajuda de potentes aparelhos podemos
identificar seus trajetos e operações visíveis. Estamos falando apenas de
processos mais rudimentares da mobilidade para que não tenhamos movimentos desastrosos, e só eles nos indicam a
necessidade de um constante plexo mental que
nos dote de muita precisão e simulação.
Somos mesmos muito
complexos. Para operarmos nossos dedos polegares opositores – que são
ferramentas muito úteis e que, como pinças, permitem conexões e ligações finas
com múltiplos objetos – precisamos interagir muitas vezes em simbiose com
outras complexas habilidades como a representação abstrata do mundo em imagens
e dominar linguagens que permitirão estratégias individuais e grupais. Tudo isso torna o ser humano extremamente hábil e
dotado de complexidade para pensar em abstrações complexas.
Não estou aqui nem
sequer falando de estado de mentidude mais complexo, pois quase tudo que não é
físico-eletrônico na nossa mente, ainda é indecifrável para nós e até para a
ciência.
Mas quando “optamos”
pela fragilidade corpórea para flexibilizar nossas movimentações e pinceladas
de precisões sobre o acontecer no mundo, na evolução,
os humanos, que não são bobos, resolveram proteger muito bem aquilo que
eles têm de mais complexo: a mente. Nossa mente, diferente de nosso corpo
endoesqueleto é protegida por uma caixa craniana, quase um exoesqueleto, assim
como é a “casinha” dos caracóis.
Nossa mente é uma
frágil gosma cinzenta, fibrótica e enrugada que está protegida por uma caixa
óssea potente. O cérebro produz as sensações de dores, mas ele mesmo não tem
dor. Quando, devido a um acidente, o ser humano, por ventura, quebra a sua
caixa craniana e se mantém vivo, e, com uma frieza cirúrgica, imaginássemos,
então, colocarmos a mão neste seu cérebro exposto, esse vivente não sentiria nada. Esse vivente só sentiu dor quando
quebrou o seu crânio, mas quando manuseamos a geléia do cérebro com nossas
mãos, não.
É claro que não foi
por nada que protegemos essa nossa potente e complexa fabricação de simbioses
mentais que possuímos. Não conhecemos nada mais complexo no mundo de que a
mente humana. Nem sequer sabemos ainda lidar com toda a sua potência com que
nos brindou.
Nossos estados de
mentitude são realizados de modo tão espetacular que não temos nem como
descrever. Ali como pixels de bits, nossos reflexos biosinápticos de células
nervosas são conectadas numa velocidade impensável por uns conectores chamados
de axônios. Os neurocientistas calculam que existem em nossa mente, somente
células neuronais cerca de 83 bilhões [3]
(neurônios) e algo em torno de 1 trilhão de células gliais.[4]
As ciências da mente
que reduziram o cérebro como um modesto computador, deram muita importância aos
neurônios e suas conectividades informacionais e pouca atenção a outras
linguagens, químicas e emocionais.
Os próprios neurônios
são também redes de moléculas ligadas por reações bioeletroquímicas. Nossa
mente em atividade brilha numa intensa coreografia piscante como se pós de
areia tingidos por néon escorregassem entre bilhões de fibras leves, enrugadas
numa geléia dentro de uma dura caixa encefálica. Infelizmente, toda essa
maravilha funcional e espetacular que nos contam os neurologistas, mostra,
apenas, que nossa mente é um complexo mecanismo bioquímico-eletrônico, mas não
mostra sua “alma”. A mente humana, para o bem e para o
mal, não se resume a um mecanismo e não comporta um programa exógeno de bits em
forma de pixels.
[1] Fragmento de um texto, aqui com pequenas modificações, publicado originalmente no livro Nômades de Pedra: teoria da sociedade simbiogênica contada em prosas, Porto Alegre, 2005, p. 407-4 12.
[2] É praticamente certo de que os primeiros seres vivos não tinham os ossos que tanto ajudam a preservar os fósseis que são detalhadamente estudados como os dos dinossauros, por exemplo.
[3] De acordo com os
estudos recentes (como o de Robert Lentz – entre outros), temos cerca de 83 bilhões de
neurônios em nosso cérebro. Até então a ciência achava que tínhamos 100
bilhões, mas era um número aproximado, sem comprovação científica. Na publicação original de meu livro onde esse fragmento é parte do capítulo final escrevi 100 bilhões e não cerca de 83 billhões como aqui refiz.
[4] Durante décadas, fisiologistas concentravam suas
pesquisas nos neurônios como os principais comunicadores do cérebro. Achava-se que as células gliais, apesar de superarem os
neurônios na proporção de nove para um, tinham somente papel de manutenção:
levar nutrientes dos vasos sanguíneos
para os neurônios, manter um equilíbrio saudável de íons no cérebro e afugentar
patógenos que tivessem escapado do sistema imunológico. Nos últimos anos,
técnicas mais sensíveis de imagem mostraram que neurônios e células gliais
dialogam entre si, do desenvolvimento
embrionário até a velhice. As células gliais influenciam a formação de sinapses
e ajudam a determinar quais as
conexões neurais se fortalecerão com o tempo. Essas alterações são essenciais
para o aprendizado e o armazenamento de memórias duradouras. Trabalhos mais
recentes mostram que as células gliais também se comunicam entre si numa rede
independente, mas paralela à neural, influenciando o desempenho do cérebro. Os
neurologistas ainda estão cautelosos e
evitam atribuir importância à glia, rápido demais. Apesar disso, estão
entusiasmados com a perspectiva de que
mais da metade do cérebro permanece inexplorado e pode representar uma mina de
ouro em informações sobre o funcionamento da mente.
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