A
MENTE, O CÉREBRO E A PEDRA DE
ROSETA[1]
Steven Rase
Nossa linguagem é repleta de
dicotomias: natureza versus nutrição; genes versus ambiente; masculino versus feminino; hardware versus software;
conhecimento versus afeto; alma versus corpo; mente Versus cérebro.
Mas será que essas divisões em nossa forma de pensar refletem diferenças reais
no mundo externo, ou seriam o produto da história intelectual de nossa
sociedade? Ou seja, são ontológicas ou epistemológicas? E perceba que também
esta distinção é dicotômica. Uma maneira de responder essa pergunta é verificar
se sociedades de culturas diferentes fazem o mesmo tipo de separação. No caso
mente versus cérebro, com certeza não: de acordo com o historiador de
ciência Joseph Needham, a ciência e a tecnologia chinesas, por exemplo, não
faziam essa distinção. Embora a separação entre mente e cérebro seja
profetizada na maior parte das tradições greco-judaico-cristãs, só tomou vulto
a partir do século XVII, com o nascimento da ciência ocidental moderna. Foi
então que o filósofo e matemático católico René Descartes dividiu o universo em
dois campos, o material e o mental. Todos os elementos vivos e o mundo natural
que nos cerca,juntamente com a tecnologia criada pelo ser humano, foram
considerados materiais, assim como o corpo humano. Mas a cada corpo humano foi
atribuída uma mente ou alma, assoprada para dentro dele por Deus, e ligada a
ele por meio de um órgão localizado no fundo do cérebro, a glândula pineal.
A separação foi útil de numerosas
maneiras. Justificava a exploração de outros animais pelos homens, pois aqueles
eram meros mecanismos, não sendo dignos de mais consideração do que a
dispensada a qualquer outro tipo de
máquina; exaltava o lugar de
destaque da humanidade dentro do universo, mas apenas no que dizia respeito à
alma; os corpos humanos também podiam ser explorados, e o eram de forma
crescente, através da compra e venda de escravos na América e à medida que
surgia a Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX; as almas podiam ser
deixadas para o culto pastoral dos domingos.
O dualismo cartesiano deixou suas
marcas na medicina, especialmente na parte dela que lidava com a mente. As
desordens e perturbações mentais foram dicotomizadas em orgânicas/neurológicas-
quando o problema era no cérebro - ou funcionais/psicológicas - quando houvesse
algo de errado com a mente. Essas dicotomias persistem ainda hoje em boa partir
da prática psiquiátrica, resultando na divisão da terapêutica em medicamentos
para tratar do cérebro e conversa para tratar da mente. As causas dessas
perturbações são normalmente atribuídas aos domínios da mente (chamadas
"exógenas", como no caso das depressões seguidas de tragédia
pessoal) ou do corpo ("endógenas", provocadas por genes defeituosos
ou desequilíbrios bioquímicos).
Entretanto, conforme se expandiram a
escala e o poder da ciência moderna desde o século XVII, o desconfortável
acerto de Descartes foi posto à prova cada vez mais freqüentemente. A física de
Newton ordenava a movimentação dos planetas e a queda das maçãs. Antoine-Laurent
Lavoisier demonstrou que a respiração humana era um processo de combustão
química, em nada diferente da queima de carvão numa fornalha. Os nervos e
músculos dançavam sob a aplicação das cargas elétricas de Luigi Galvani, e não
pela ação de algum tipo de vontade autônoma. E a evolução darwiniana colocou os
seres humanos lado a lado com outros animais. O reducionismo militante, o
materialismo mecânico tornaram-se a ordem do dia. Em 1845 quatro
fisiologistas em ascensão - os alemães Hermann Helmholtz, Carl Ludwig, Ernst
Brücke, e o francês Emil du Bois-Reymond - fizeram o juramento mútuo de levar
em consideração todos os processos corporais em termos físico-químicos; na
Holanda,Jacob Moleschott foi ainda mais longe, afirmando que o cérebro secretava
os pensamentos assim como os rins secretavam a urina, e que a personalidade era
uma questão de fosfato. Para o campeão do darwinismo, o inglês Thomas Huxley,
a mente estava para o cérebro assim como os apitos estavam para as locomotivas
a vapor.
Mais de um século depois, esse
reducionismo constitui o conhecimento convencional de quase toda a ciência.
Muitos acreditam que a ciência mais fundamental é a física, seguida da química,
bioquímica e fisiologia; um pouco mais acima nessa hierarquia estão as ciências
mais "maleáveis" como a psicologia e a sociologia, sendo que o
objetivo das ciências unificadas parece ser transformar todas as ciências de
hierarquia elevada em fundamentais. Os cientistas com formação em estudos
moleculares são abertamente desdenhosos em relação às pretensões dos assuntos
mais "maleáveis". Em 1975, E. O. Wilson lançou seu famoso (ou
notório, dependendo da perspectiva) texto Sociobiology, the New Synthesis, no
qual afirmava que a biologia evolutiva,juntamente com a neurobiologia, estava
prestes a tornar a psicologia, a sociologia e a economia irrelevantes; dez anos
depois, o decano da biologia molecular,Jim Watson, estarreceu sua platéia no
London Institute of
Contemporary Arts com a afirmação de que "em última análise existem apenas
átomos. Existe apenas uma ciência, a física; tudo o mais é serviço
social".
E quanto às memórias de infância, o
prazer em ouvir um quarteto de cordas interpretando Beethoven, o amor, o ódio,
as alucinações da esquizofrenia, a crença em Deus, o senso de justiça no mundo
- e até mesmo a consciência em si? Concordamos com Descartes e confiamos esses
fatos ao mundo mental e espiritual, intocados pelo mundo carnal, mas capazes de
interagir com ele através da estimulação de um nervo? John Ecles, vencedor do
prêmio Nobel por seu trabalho na fisiologia das sinapses (as junções entre as
células nervosas), e assim como Descartes um compenetrado dualista e católico,
certamente acreditava nisso, pois veio a argumentar que existia um
"cérebro de ligação" no hemisfério esquerdo, através do qual a alma
pode cutucar as sinapses. Ou será que nos aliamos a Watson, Wilson e outros
precursores do século XIX, tomamos partido dos genes e descartamos o resto?
Como disse um colega bioquímico durante uma conferência para pais de crianças
"com distúrbios de aprendizado", seria nossa tarefa demonstrar
"como desordens moleculares levam a desordens mentais"?
Bem, deixe-me dar minha própria
opinião como neurocientista interessado no funcionamento do cérebro e da mente.
Em primeiro lugar, existe apenas um mundo, uma unidade material ontológica. A
alegação de que existem dois tipos de coisas incomensuráveis no mundo, o
material e o mental, induz todo tipo de paradoxo e é insustentável. Sem entrar
em longos debates filosóficos, a simples observação de que manipular a
bioquímica cerebral (com drogas psicoativas, por exemplo) altera as percepções
mentais ou de que o sistema de imagem tomográfica indica que regiões específicas
do cérebro usam mais oxigênio e glicose quando uma pessoa está concentrada,
tentando resolver um problema matemático "mentalmente", mostra que,
enquanto a personalidade é mais do que uma simples questão de fosfato, os
processos que denominamos mentais e cerebrais devem estar ligados de alguma
forma. Portanto o monismo dita as regras, e não o dualismo.
Mas isso não me coloca ao lado de
Watson e Wilson. Há mais o que fazer para compreender o mundo do que
simplesmente enumerar os átomos que o compõem. Para começar, existem as
relações de organização entre os átomos. Considere uma página deste livro. Você
a vê como uma seqüência de palavras, combinadas de modo a formar frases e
parágrafos. Uma análise reducionista poderia decompor o mundo nas letras
individuais, e estas nos componentes químicos da tinta preta sobre o papel. Tal
análise seria abrangente; lhe diria a composição exata desta página; mas nada
diria sobre o significado das letras organizadas em palavras, frases e
parágrafos. Esse significado é aparente apenas em um nível mais elevado de
análise, nível este que consideraria a distribuição espacial da tinta preta
sobre o papel, o padrão existente na ordem espacial das palavras que aparecem
na página e a relação seqüencial de cada frase com a próxima do parágrafo.
Interpretar esses padrões requer conhecimento lingüístico, e não uma química
específica. Portanto, esse novo nível mais elevado de análise requer sua
própria ciência. Por exemplo, o estudo da mecânica dos fluidos requer o uso de
propriedades tais como coesão e incompressibilidade para explicarmos fluxo,
vórtice e formação de ondas, sendo que nenhum desses fenômenos é propriedade
das moléculas que formam os líquidos. Semelhantemente, o cérebro possui
propriedades tais como armazenamento e resgate de memória, que não
são encontradas em uma
célula individualmente. Esses aspectos qualitativamente variáveis de um
sistema, em níveis diferentes, são propriedades emergentes, e a biologia está
repleta delas.
Além disso, para que a ordem
espacial das palavras na folha de papel tenha sentido, é preciso que também
haja uma ordem temporal. Em escritas derivadas do latim, começa-se a ler a
partir do canto esquerdo superior da folha, seguindo-se até o canto direito
inferior da mesma. Inverter a ordem resultaria em puro absurdo. A ordem
temporal e de desenvolvimento é uma característica vital em organizações e
processos de nível elevado, o que não é necessariamente o caso dos sistemas de
níveis mais simples, não podendo, portanto, ser vista através de um quadro
reducionista. Digo mais: apenas os símbolos numa página não são suficientes;
para entendermos algo em uma página de prosa, precisamos saber um pouco da
língua e da cultura com as quais essa página foi elaborada, e dos propósitos
para os quais foi escrita. (O que está nessa folha seria a taxonomia de um
peixe, uma receita de bouillabaisse ou uma ode aos prazeres culinários mediterrâneos?) Um
princípio importantíssimo da organização biológica é indicado por essa simples
analogia. Nada em biologia faz sentido a não ser que esteja dentro de um
contexto histórico, da história de um organismo individual (isto é, seu
desenvolvimento) e da história da espécie da qual ele faz parte (isto é, a
evolução) . De fato, a evolução pode ser considerada, sob alguns aspectos, a
história dos eventos emergentes que deram origem a uma diversidade de organismos,
de diferentes formas e comportamentos, que é uma característica tão evidente do
mundo em que vivemos.
Explicar os rabiscos pretos sobre a
página de um livro em termos químicos nos ajuda a entender sua composição; no
entanto, não nos diz nada sobre seu significado como um conjunto de símbolos
ordenados sobre a folha. Explicar não é o mesmo que esclarecer e nenhuma
sofisticação química pode eliminar a necessidade de uma ciência mais elaborada
que esclareça o sentido procurado. Além disso, o programa reducionista ingênuo
oferecido por Watson e Wilson simplesmente não funciona na prática. Existem
muito poucas moléculas elementares mais simples do que aquelas que compõem a
água - dois átomos de hidrogênio combinados com um átomo de oxigênio formando
uma molécula de água. Ainda assim, nem todos os recursos da física seriam
suficientes para prever as propriedades dessa molécula através do conhecimento
das frações dos elementos hidrogênio e oxigênio. A química nunca caberá por
completo dentro da física, apesar de o conhecimento dos princípios físicos
iluminar profundamente a química. E ainda menos caberiam a sociologia e a
psicologia dentro da bioquímica e da genética.
Portanto, a despeito da unidade
ontológica do mundo, nos resta, e sempre restará, uma profunda diversidade
epistemológica. Na analogia bastante conhecida dos cegos descrevendo o
elefante, existem muitas coisas a saber e muitos modos de aprendê-las. E temos
muitos tipos de linguagem para descrever o que sabemos. Tome como exemplo um
fato biológico simples, como a contração que ocorre nos músculos da pata de um
sapo quando um choque elétrico é aplicado sobre eles ou sobre as fibras de um
nervo motor. Para os fisiologistas, essa contração pode ser explicada em termos
das propriedades estruturais e elétricas das fibrilas musculares, tal como
observadas num microscópio e registradas por um eletrodo fixado na superfície
do músculo. Para os bioquímicos, a célula muscular é composta basicamente por
dois tipos de proteínas, actina e miosina, que formam moléculas interdigitadas
e filamentosas; durante a contração muscular, os filamentos de actina e miosina
deslizam uns sobre os outros. Numa linguagem mais simples, somos tentados a
dizer que o deslizamento de actina sobre mio sina "causa" a contração
muscular. Mas essa é uma maneira imprecisa e confusa de dizer. O termo
"causa" implica que algo acontece antes (a causa) e a seguir
desencadeia outra coisa (o efeito). Mas não é verdade que os filamentos de
actina e miosina deslizam primeiro para depois ocorrer a contração muscular. Em
vez disso, o deslizamento dos filamentos é o mesmo que a contração muscular, só
que descrito em linguagem diferente. Nós chamamos esta linguagem de bioquimês,
em contraste com o fisiologês.
E onde fica a dicotomia entre
cérebro e mente sobre a qual comecei a discutir? O cérebro não
"causa" a mente, como sugeriria o tolo materialismo mecânico (como o
apito está para o trem a vapor), nem mente e cérebro são duas coisas
diferentes, como afirmaria o dualismo cartesiano. Em vez disso, temos uma
coisa, cérebro/mente, da qual podemos falar usando duas línguas diferentes,
talvez o neurologês e o psicologes.
Um exemplo: uma das desordens
mentais mais corriqueiras nos EUA e na Europa, hoje em dia, é a depressão. Por
muitos anos, psiquiatras de orientação biológica, psiquiatras sociais e
psicólogos têm estado em palpos de aranhas tentando encontrar as causas da
depressão e sua cura. Ela é causada por desordens no metabolismo de
neurotransmissores, como afirmariam os psiquiatras biológicos, ou pelas
pressões intoleráveis do dia-a-dia? (Um dos segmentos com maiores
predisposições para a depressão são as mães solteiras de baixa renda, vivendo
em regiões urbanas, em condições de insegurança financeira e pessoal.) No
primeiro caso, a depressão deveria ser tratada com drogas que afetem o
metabolismo de neurotransmissores; no segundo caso, o tratamento consistiria em
atenuar as más condições sociais e pessoais que causam o distúrbio, ou preparar
a pessoa para lidar com elas. Este é o tratamento indicado pela psicoterapia.
Mas, a meu ver, estas formas de diagnóstico ou tratamento não são
incompatíveis. Se a psiquiatria biológica está correta, as pessoas deprimidas
têm desordens nos neurotransmissores, e se a psicoterapia funciona, então à
medida que alguém se submetesse a um tratamento psicológico e apresentasse
melhoras na depressão a desordem nos neurotransmissores se autocorrigiria. Há
uns dois anos eu me dispus a testar isso (para tanto tive que superar uma
grande hostilidade da parte dos psiquiatras e dos psicólogos) medindo tanto a
classificação ou avaliação psiquiátrica quanto os níveis de um dado sistema neurotransmissor/enzima
no sangue dos pacientes de um instituto psicoterápico de Londres. Acompanhei os
pacientes durante um ano inteiro de tratamento. Os resultados ficaram muito bem
delineados. Os pacientes que davam entrada no instituto sentindo-se deprimidos
(e eram classificados como tal no escore psiquiátrico) apresentavam níveis mais
baixos do neurotransmissor do que os indivíduos do grupo de controle. Após
alguns meses de tratamento psicológico, o escore depressivo havia melhorado e o
neurotransmissor voltara a níveis normais. A mudança bioquímica e a
psicoterapia caminharam lado a lado.
A linguagem mental não causa a
linguagem cerebral, ou vice-versa, assim como uma sentença em francês não causa
uma sentença em inglês, embora você possa traduzi-las de uma língua para a
outra. E assim como há regras em uma tradução do francês para o inglês, existem
regras numa tradução do neurologês para o psicologês. O problema enfrentado pelos cientistas da mente/
cérebro seria então decifrar essas regras. Como conseguir isso?
Vou sugerir uma analogia. Passe pela
sólida entrada neoclássica do British Museum em Londres, vire à esquerda,
atravesse a loja de suvenires e encontre um espaço entre as multidões de
turistas que abarrotam as galerias Egípcia e Assíria. Um aglomerado de pessoas
se debruça sobre uma laje de pedra negra posicionada de modo a formar um leve
ângulo em relação ao solo. Se você conseguir se interpor entre os turistas e
suas minicâmeras de vídeo, verá que a superfície plana da pedra é dividida em
três seções, cada uma coberta de inscrições brancas. As inscrições na seção
superior são hieroglifos egípcios arcaicos; as da seção central, cursivas, são escritas
demóticas. E se você teve a chamada "educação clássica" ou já esteve
na Grécia durante as férias, reconhecerá as inscrições da terceira seção como
sendo grego. Você está olhando para a pedra de Roseta, o texto de um decreto
redigido por um conselho geral de sacerdotes egípcios, que se reuniram em
Mênfis, no Nilo, no primeiro aniversário da coroação do rei Ptolomeu, em 196
a.c. "Descoberta" (no sentido que os europeus consideram descobertos
os artefatos dos quais não tinham conhecimento prévio, a despeito do que.a
população local soubesse deles) por um tenente-engenheiro da Força
Expedicionária Napoleônica Egípcia, em 1799, a pedra tornou-se, com a derrota
francesa, espólio de guerra britânico e foi levada para Londres e colocada
ritualmente junto ao grande amontoado de espólios de impérios antigos, com os
quais os britânicos enriqueceram-se durante um século de seu próprio domínio
imperial.
Mas a importância da pedra de Roseta
não está apenas no simbolismo da ascensão e queda de impérios (até mesmo a
seção grega das três inscrições, na época em que foi gravada, indicava o lento
declínio do poder grego e surgimento do domínio europeu). O fato de que as três
inscrições carregavam a mesma mensagem, e de que os estudantes do século XIX
conseguiam ler o grego, significava que eles podiam dar início à missão de
decifrar os hieroglifos, até então incompreensíveis, que compunham a linguagem
egípcia arcaica. A tradução simultânea fornecida pela pedra de Roseta se
transformou num instrumento para desvendar códigos, e para mim é uma metáfora
para a missão que enfrentamos ao tentar entender a relação entre mente e
cérebro.
O cérebro e a mente têm muitos
dialetos, mas eles estão relacionados da mesma forma que as inscrições na pedra
de Roseta. Onde, entretanto, podemos encontrar um instrumento que nos ajude a
decifrar os códigos? O exemplo da psicoterapia é sugestivo, mas de forma alguma
suficientemente rigoroso a ponto de nos fornecer o código do qual precisamos.
No entanto, ele sem dúvida nos dá uma pista. Uma característica fundamental da
ciência experimental é que é sempre mais fácil estudar as mudanças do que a
inalteração. Se pudermos achar muma situação na qual os processos mentais
mudem, como quando os pacientes deprimidos melhoram, e verificar o que está
mudando simultaneamente na linguagem cerebral, então podemos dar início ao
processo de mapear as mudanças cerebrais em relação às mudanças mentais. Até o
desenvolvimento, nos últimos anos, das técnicas de tomografia cerebral, que nos
forneceram janelas para observar o cérebro humano em funcionamento - técnicas
como tomografia computadorizada e ressonância magnética -, observar o interior
do cérebro era possível apenas em animais de experimentação. Tanto para os
homens quanto para os animais, um dos exemplos mais claros e simples de
mudanças mentais aparece quando alguma nova tarefa ou atividade é aprendida e
recordada subseqüentemente. Experiências como aprender e recordar são muito
mais fáceis de estudar num laboratório do que as complexidades da depressão, e
os psicólogos ao longo deste século, de Ivan Pavlov e B. F. Skinner em diante,
têm preenchido quilômetros de estantes de bibliotecas com tratados detalhados
sobre como induzir a salivação em cães que ouvem o soar de um sino, fazer ratos
pressionarem alavancas para obter comida e coelhos piscarem os olhos à medida
que luzes se alternem. Agora, tudo o que temos a fazer é mostrar o que acontece
no interior do cérebro quando se dá esse tipo de aprendizado. Isso é o que os
laboratórios de neurociência, no mundo todo, têm tentado fazer durante a Última
década ou mais, e estamos começando a poder contar uma história mais ou menos
clara sobre os processos cerebrais envolvidos no mecanismo da aprendizagem;
acerca de como, durante uma nova experiência, novas rotas são estabelecidas no
cérebro para que a memória fique gravada, à semelhança dos traços inscritos
numa fita cassete à medida que uma música é gravada. Memórias que podem ser
resgatadas exatamente como se ouvíssemos uma fita cassete.
Isso reduz o aprendizado e a memória
a "nada além" de rotas no cérebro? Não mais do que, o quarteto de
Beethoven é reduzido a padrões magnéticos na fita. Quando gravamos o som da
música, numa fita ou CD, suas ressonâncias e nossa resposta a elas não são mais
diminuídas ou alteradas do que o são o valor e o significado de nossas memórias
pessoais, quando armazenadas nas rotas do cérebro. Em vez disso, conhecer a
biologia do aprendizado e da memória só faz crescer nossa apreciação humana da
riqueza de nossos processos internos. Precisamos, e continuaremos a precisar
sempre, de ambas as linguagens, do cérebro e da mente, e das regras de tradução
entre elas, para dar sentido a nossa vida.
STEVEN
ROSE cursou Cambridge, graduando-se em bioquímica. Seu profundo interesse em
compreender o cérebro o levou a realizar o doutorado no Institute of Psychiatry
de Londres. Após períodos de pesquisas de pós-doutorado em Oxford (Fell, New
College), Roma (bolsista NHI) e no Research Council de Londres, em 1969 se
tornou professor e chefe do departamento de biologia na Open University da
Inglaterra, onde, aos 31 anos de idade, era um dos mais jovens professores
titulares da Inglaterra. Na Open University ele fundou, e tem chefiado desde
então, o Brain and Behavior Research Group, tendo se concentrado na pesquisa
dos mecanismos moleculares e celulares do aprendizado e da memória. Seu
pioneirismo no estudo dessa área resultou na publicação de algo em torno de 250
trabalhos científicos e no recebimento de diversas medalhas e homenagens
internacionais.
Além
de seus trabalhos de pesquisa, Steven Rose escreveu ou editou catorze livros,
incluindo NoFire, no Thunder (com Sean Murphy e Alastair Hay), Not in
Our Genes (com Richard Lewontin e Leo Kamin) , Molecules and Minds e,
mais recen temen te, The Making of Memory, vencedor do Rhone-Poulenc
Science Book Prize.
As
preocupações de Rose não se limitam à produção científica, abrangendo também
os mais amplos papéis sociais e ideológicos da ciência e sua aplicação para a
sociedade. Essas preocupações o levaram a assumir um papel de destaque nas
décadas de 60 e 70, juntamente com a socióloga feminista Hillary Rose, na fundação
da British Society for Social Responsabiliiy in Science. Ele também assumiu
publicamente uma posição muito clara na questão dos direitos animais e dos
experimentos que utilizam animais de laboratório.
[1] Livro: RASE, Steven. A mente, o cérebro
e a pedra de roseta. in: As coisas são assim: pequeno repertório científico do
mundo que nos cerca. Orgs. John Brockman & Katinka Matzon. São Paulo, Cia
das Letras,1997: 212-224.