Gilson Lima. Esse texto é um fragmento inicial que publiquei na Internet em 2001.
...os espelhos, sendo um objeto de uso corrente desde há
muitos séculos, são usados de modo diferente pelos homens e pelas mulheres e
essa diferença é uma das marcas da dominação masculina. Enquanto os homens usam
o espelho por razões utilitárias, fazem-no pouco freqüentemente e não confundem
a imagem do que vêem com aquilo que são, as mulheres têm de si próprias uma
imagem mais visual, mais dependente do espelho, e usam-no mais freqüentemente,
para construir uma identidade que lhes permita funcionar numa sociedade em que
não ser narcisístico é considerado não feminino (Sontag, 1972: 34). Como diz
Susan Sontag, “as mulheres não têm apenas faces como os homens” (1972: 35), e
La Belle acrescenta: “todos os homens têm faces; muitas mulheres são as suas
faces” (1988: 24). Esta diferença, que é uma marca da discriminação sexual, tem
vindo a ser reconstruída pelas feministas como ponto de partida para afirmação
de uma identidade feminina libertada que reivindique o espelho como uma forma própria
de conhecer e, aceitar o corpo (La Belle, 1988: 173 e ss.). Citado em
Boaventura, Crítica a Razão indolente.
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Hoje
somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens a ponto de não podermos
distinguir mais a experiência direta daquilo que vimos há poucos segundos nas
mídias. Em
nossa memória se depositam quotidianamente milhares de sucessivos estilhaços de imagens.
Esta questão
suscita de imediato uma outra: que futuro estará reservado à imaginação
criativa numa "civilização da imagem"? Somos cada vez mais seres
simbólicos inundados quotidianamente por um dilúvio
das imagens pré-fabricadas. Antigamente a memória visiva de um indivíduo
estava limitada ao patrimônio de suas experiências diretas e a um reduzido
repertório de imagens refletidas pela cultura; a possibilidade de dar forma a
mitos pessoais nascia do modo pelo qual os fragmentos dessa memória se
combinavam entre si em abordagens inesperadas e sugestivas.
Tornamo-nos
uma civilização que é cada vez mais uma civilizazão da imagem, uma sociedade
espelhada e isto me faz lembrar de uma das belas lições de Ítalo Calvino, no
caso sobre a importância da leveza da escrita no próximo milênio quando ele nos
diz: que as vezes ele parecia transformado em pedra: mais ou menos avançada
segundo as pessoas e os lugares. Uma lenta petrificação não poupava nenhum aspecto da vida. Como se ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa. (Personagem feminina da
mitologia grega, trata-se de uma terrível mulher que tinha serpentes pelos
cabelos e transformava em pedra quem as encarava).
Calvino descreve
que o único herói capaz de decepar a cabeça da Medusa é Perseu, que voa com
sandálias aladas; Perseu, que não volta jamais o olhar para a face da Górgona
(do grego gorgós = rápida, impetuosa,
terrível), mas apenas para a imagem que vê refletida em seu escudo de bronze. Eis que Perseu vem ao nosso
socorro até mesmo agora, quando já me sentíamos capturados pela mordaça de
pedra.
Para decepar a
cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de
mais leve, as nuvens e o vento; e dirige o olhar para aquilo que só pode se
revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho. Calvino
diz que podemos de repente a encontrar nesse mito uma alegoria da relação do
criativo, da imaginação criativa com o mundo, uma lição do processo de
continuar criando. Entretanto, Calvino nos alerta que toda interpretação
empobrece o mito e o sufoca e que não devemos ser apressados com os mitos; é
melhor deixar que eles se depositem na memória, examinar pacientemente cada
detalhe, meditar sobre seu significado sem nunca sair de sua linguagem. A lição
que se pode tirar de um mito reside na literalidade da narrativa, não nos
acréscimos que lhe impomos.
Voltando ao mito, Calvino nos
lembra que a relação entre Perseu e a Gógona é complexa: não termina com a
decapitação do monstro. Do sangue da Medusa nasce um cavalo alado, Pégaso; o
peso da pedra pode reverter o seu contrário; de uma patada, Pégaso faz jorrar
no monte Hélicon a fonte em que as Musas irão beber. Lembremos aqui que Pégasus
é o nosso software de e-mails, onde a partir dele, nossas mensagens voam na
velocidade da luz sob os impulsos eletromagnéticos chegando aos múltiplos tubos
catódicos plugados e espalhados em nosso pequeno planeta.
Em algumas
versões do mito, será Perseu quem irá cavalgar esse maravilhoso Pégaso, caro às
Musas, nascido do sangue maldito da Medusa. (Mesmo as sandálias aladas, por sua
vez , provinham de um mundo monstruoso: Perseu as havia recebido das irmãs de
Medusa, as Graias de um só olho ). Quanto à cabeça cortada da apavorante
Medusa, longe de abandoná-la, Perseu a levava consigo, escondida num saco;
quando os inimigos o ameaçavam subjulgá-lo, bastava ao herói mostrá-la,
erguendo-a pelos cabelos de serpentes, e esse despojo sanguinoso se torna uma
arma invencível em suas mãos, uma arma que utiliza apenas em casos extremos e
só contra quem merece o castigo de ser transformado em estátua de si mesmo.
Diz a lenda que Perseu venceu
uma nova batalha, onde derrotou um monstro e libertou Andrômeda. Após uma
batalha deste porte, Perseu tratou de fazer o que faria qualquer um de nós: foi
lavar as mãos. Neste caso, o problema estava onde deixar a cabeça de Medusa.
Neste
momento Calvino cita os extraordinários versos de Ovídio ( IV, 740-752), para
expressar a delicadeza de alma necessária para ser um Perseu, dominador de
monstros:
“Para que a areia áspera não
melindre a angüícomo cabeça, (Perseu) ameniza a dureza do solo com um ninho de
folhas, recobre-o com algas que cresciam sob as águas, e nele deposita a cabeça
da medusa, de face voltada para baixo”. (Calvino:1996:18).
A leveza de Perseu não poderia
ser melhor representada do que por esse gesto de refrescante cortesia para com
um ser monstruoso e tremendo, mas mesmo assim de certa forma perecível, frágil.
Mas inesperado, contudo, é o milagre que se seguiu. Após o contato da Medusa em
contato com os râmulos aquáticos, estes se transformam em coral, e as ninfas,
para se enfeitarem com ele, acorrem com râmulos e vergônteas, que se aproximam
da hórrida cabeça.
Depois da perspicaz lição de
Calvino sobre a leveza, poderíamos continuar suas indagações voltando agora aos
dias de hoje. Imaginemos o velho Perseu tenha morrido e que a cabeça da
poderosa Medusa rolando no decorrer da história tenha passado por diferentes
mutações, e que, hoje na beirada do novo milênio, ela se encontra viva em nossa
sociedade contemporânea.
Imaginemos que a Medusa agora
transfigurada, transformada, não esteja mais tão acessível aos olhos nus como o
visível monstro lendário. Imaginemos que sua mutação a tenha recomposto seus
tentáculos, mas que em fragmentos inacessíveis ao olho nu, fazendo com que sua
força seja ainda mais poderosa que a do antigo monstro visível.
Vivemos
atualmente uma crise, a agonia sem precedentes da moderna sociedade industrial,
vemos a ascenção da importância da subjetividade,
dessa matéria prima impalpável, incontornável e que tanto chamou atenção dos
humanistas perante o império da matéria, da objetividade, da objetiva, do olho,
do físico de tudo que era “superior” no ato de conhecer da modernidade
manufatureira e industrial. A ganância da objetiva racional, do olhar o tudo
com precisão mecânica, só se efetivou pela modernidade quando se deixou um
infinito de vida e sensações de fora da objetiva órbita gananciosa. O vazio, o
nada, acabou por se formalizar em zero pelos árabes, como se ali “nada”
ocorresse, “nada” existisse, como não se ali não houvesse visa sensível, porque
não tem matéria a observar.
Hoje forças poderosas e
estratégias inusitadas redesenham nosso rosto no espelho do mundo. Sim! o mundo
vive de espelhos, na maioria em formato de tubos catódicos, que do mesmo estilo
de Perseu, de reflexo indireto, que herdamos de seu escudo vitorioso sobre a
monstruosa Medusa, a quem a todos condenava em pedra quem simplesmente a
encarava.
[1] Tubo catódico (CRT - Cathode ray tube). É o tubo de
imagens que foi o mais utilizado na fabricação de tubos de Tv’s e, principalmente, em
monitores de computadores antes das telas planas. Nesse tubo, uma máscara de fósforo é bombardeada
pelo feixe de elétrons proveniente dos canhões que se encontra na parte oposta de onde a imagem é
formada. Após esse bombardeio de elétrons, o fósforo se acende formando a
imagem.
Entretanto a
mutação da Medusa se efetivou. Sua resistência ao reflexo indireto se
fortaleceu, agora ela convive ternamente com o espelhamento. Pensemos então nos
nossos satélites espaciais com suas garras de invisíveis râmulos de ondas
eletrônicas viajando na velocidade da luz. Eles sobrevoam o planeta
quotidianamente construindo uma captura imensa de uma malha informacional de
imagens e textos em fluxos. Unificados, os satélites compõe a uma nova faceta
do monstro mutante e ressuscitado, é a Medusa agora fortalecida em fragmentos
que nos impede de vermos sua natureza holística. São pedaços de sua face
górgona, condenando a todos a petrificação diária no consumo imagens de
glórias, erotismo e tragédias. A partir de um êxtase produzido nesta tele
participação planetária vamos nos transformando em estátuas de nós mesmos.
A atual sociedade
em transição, se encontra ainda amarrada a um imaginário social que se realiza
repetindo e copiando a mesma idéia de valor criada para a reprodução da
mercadoria manufaturada pela velha sociedade industrial, assim vemos
diariamente um assalto a subjetividade, onde máquinas de modulagem da
subjetividade pasteurizam-na desfazendo o mito da subjetividade dada e a
transformam como algo auto-modulável.
Inaugura-se a fabricação social da subjetividade. O corpo torna-se um alvo
preferido das máquinas de modulagem subjetiva. Docilizar o corpo, exitá-lo,
erotizá-lo torná-lo emissor de signo e significações. Aumenta o nosso
estranhamento com as novas maneiras emergentes de sentir, de pensar, de
fantasiar, de sonhar, etc. Estamos sitiados pela monstruosa Medusa com seu
olhar inexorável. Em todos os lados que olhamos encontramos máquinas que
capturam o real e o processa em codificação, determinando pela captura as
constituintes de novas espessuras vitais. Nossos territórios existenciais são
plugados nestas ondas precárias, surfamos em ondas eletrônicas de uma
mobilidade generalizada, nas músicas, nas modas, nos slogans publicitários, nos
filmes, no circuito informático e telecomunicacional. O que não é captado pela
malha virtual é como não existisse para o mundo, é o novo tudo. A realidade
vital é o novo zero formal sem vida, a vida, ao contrário, passa ser o mundo da
coisificação e o espetáculo virtual assume como a nova realidade. Nós habitamos
ondas e velocidades em vez de lugares. O escritor, Ítalo Calvino, que também
escreveu em suas lições sobre a importância do valor da rapidez para a
narrativa literária no próximo milênio, nos alertou que a velocidade reduz as
distâncias, abole as perspectivas e a
profundidade da nossa moderna experiência sensorial que era baseada na cognição
existencial. Vivemos uma espécie de instantaneidade “hipnótica” chupada
inteiramente sob tubos catódicos das Tvs e dos vídeos dos computadores.
São quase dois
bilhões de receptores de rádio no planeta e quase um bilhão de receptores de
tvs, que juntamente com redes terrestres de comunicação telefônica e de
múltiplas infovias óticas constituem um trânsito intenso de imagens, sons e
textos na velocidade da luz, durante 24 horas por dia, compondo uma espécie de telecomando universal ondulatório, que
vai substituindo as físicas instituições estáticas da modernidade. Caducam os
seus processos modernos de representação e dominação política racional, caducam
seus processos normativos de regras fixas e estatutárias de antigos territórios
funcionais de competências, caduca o processo de fabricação delegada de pactos
e leis. Ficam praticamente impotentes os partidos políticos com sua fome
insaciável de possuir o monopólio de representação política; geram-se
escleroses nos clássicos movimentos sindicais e nos múltiplos movimentos
sociais. Não sobra nem mesmo o poder local, onde progressivamente se desmantela
seus processos e suas ordenações diretas e éticas locais.
Por fim, temos o
novo mundo do poder, o biopoder, que
certamente será o maior responsável pelas transformações na vida social no
futuro, mas que já se encontra cada vez mais presente. Os homens invocam para
si o poder da manipulação das múltiplas forças, que habitam tanto a vida como a
morte. De um lado, surge a biotecnologia, com suas clonagens vegetais, e até
mesmo o projeto Genoma, que está dilacerando a vida humana em cerca de 37.000 micro
pedaços. De outro, a existência de estudiosos e cientistas especializados na
extensão da vida e na decifração e enfrentamento dos mecanismos da sua negação,
ou seja, da morte. Isso quer dizer que, ao mesmo tempo em que vivemos
paralelamente o esvaziamento da idéia de
vida centrada na matéria, no corpo humano, reforçamos, contraditoriamente,
como vemos diariamente nas mídias comunicacionais, uma nova retomada do culto a esse mesmo corpo, o qual pretendemos
cada vez mais ser duravelmente mais belo e conservado seja através de
exercícios constantes ou até mesmo das múltiplas intervenções de técnicas
regenerativas, como as cirurgias plásticas de correções estéticas ou genéticas.
Os cientistas criaram um novo campo de saber para darem conta desses dilemas.
Trata-se da gerontologia, um novo
saber científico que por princípio partilha o não aceite natural da morte. A
gerontologia é a área de saber da ciência responsável pelas investigações
acerca do envelhecimento. Os cientistas perguntam: Por que envelhecemos? Por
que morremos? [1] A
morte deixa de ser considerada uma condenação natural, podemos enfrentá-la,
esticá-la e até mesmo eliminá-la.
Esta diferença não tem nada de essencial. Expressa
tendências diferentes, cuja diferença, aliás, talvez venha a esbater-se à
medida que progride a esteticização do consumo e do corpo tanto da mulher como
do homem. Menciono estes padrões de utilização de espelhos porque penso que as
sociedades, tal como os indivíduos, usam espelhos e fazem-no de um modo mais
feminino do que masculino. Ou seja, as sociedades são a imagem que têm de si
vistas nos espelhos que constroem para reproduzir as identificações dominantes
num dado momento histórico. São os espelhos que, ao criar sistemas e práticas
de semelhança, correspondência e identidade, asseguram as rotinas que sustentam
a vida em sociedade. Uma sociedade sem espelhos é uma sociedade aterrorizada
pelo seu próprio terror.
Há duas diferenças fundamentais entre o uso dos espelhos
pelos indivíduos e o uso dos espelhos pela sociedade. A primeira diferença é,
obviamente, que os espelhos da sociedade não são físicos, de vidro. São
conjuntos de instituições, normatividades, ideologias que estabelecem
correspondências e hierarquias entre campos infinitamente vastos de práticas
sociais. São essas correspondências e hierarquias que permitem reiterar
identificações até ao ponto de estas se transformarem em identidades. A
ciência, o direito, a educação, a informação, a religião e a tradição estão
entre os mais Importantes espelhos das sociedades contemporâneas. O que eles
refletem é o que as sociedades são. Por detrás ou para além deles, não há nada.
A segunda diferença é que os espelhos sociais, porque são
eles próprios processos sociais, têm vida própria e as contingências dessa vida
podem alterar profundamente a sua funcionalidade enquanto espelhos. Acontece
com eles o que aconteceu com o espelho da personagem da peça Happy Days de Samuel Beckett: “Leva o
meu espelho, ele não precisa de mim”. Quanto maior é o uso de um dado espelho e
quanto mais importante é esse uso, maior é a probabilidade de que ele adquira
vida própria. Quando isto acontece, em vez de a sociedade se ver refletida no
espelho, é o espelho a pretender que a sociedade o reflita. De objeto do olhar,
passa a ser, ele próprio, olhar. Um olhar imperial e imperscrutável, porque se,
por um lado, a sociedade deixa de se reconhecer nele, por outro não entende
sequer o que o espelho pretende reconhecer nela. E como se o espelho passasse
de objeto trivial a enigmático super-sujeito, de espelho passasse a estátua.
Perante a estátua, a sociedade pode, quando muito, imaginar-se como foi ou,
pelo contrário, como nunca foi. Deixa, no entanto, de ver nela uma imagem
credível do que imagina ser quando olha. A atualidade do olhar deixa de
corresponder à atualidade da imagem.
Quando isto acontece, a sociedade entra numa crise que
podemos designar como crise da consciência especular: de um lado, o olhar da
sociedade à beira do terror de não ver refletida nenhuma imagem que reconheça
como sua; do outro lado, o olhar monumental, tão fixo quanto opaco, do espelho
tornado estátua que parece atrair o olhar da sociedade, não para que este veja,
mas para que seja vigiado.
Entre
os muitos espelhos das sociedades modernas, dois deles, pela importância que
adquiriram, parecem ter passado de espelhos a estátuas: a ciência e
Como podemos
tomar de assalto os ruídos do mundo se nem ao menos sabemos que mundo é esse? Para
capturar os ruídos do mundo é necessário uma certa fragilidade, é preciso uma
certa surdez. A pedância do tagarela, do auto-suficiente, do redondo e perfeito
saber em nada possibilita capturá-los. Para capturar os ruídos do mundo
precisamos fugir da auto-suficiência. É necessário até mesmo um certo estado de
insônia e sonolência, que nos torna mais suscetível ao mundo.
Num rápido
encontro com o professor húngaro, Peter Pál Pelbart, onde estávamos tratando
sobre essa fragilidade necessária para o escritor, ele lembrou de uma passagem
do diário de Kafka nos diz: “a
noite nada se opõe para que eu seja dilacerado”. Novamente me veio a imagem
de fragilidade, a necessária qualidade de uma fraqueza para que possamos ser
invadidos pelos ruídos do mundo.
A insônia altera
nossos estados de alerta natural, favorece as invasões, somos como que cercados
por todos os lados sem força para combater o cerco. Quando não resistimos mais,
deixamos o corpo ser invadido de assalto pelo entorno. É como abrir a janela no
inverno deixando ser arrebatado pelo frio e com insônia estarmos expostos ao
mundo, como se estivéssemos nu ao mundo numa nevasca, essa é uma sensação clara
de fragilidade. Trata-se de um elogio a porosidade, a permeabilidade frente ao excesso do mundo, alguém que se sente
atravessado demais pelo mundo.
Entretanto, isso
não significa que aos sermos tomados pelo mundo não saibamos selecionar. Não
queremos ser arrastados pela gorda saúde dominante, que devoradora todos os
atravessamentos que o mundo nos demonstra. Não se trata de deglutir tudo, pois
deglutir tudo é vomitar. A relação com o mundo é como nossa relação com o
paladar. Tudo o que nutre o paladar vem de fora, tudo pode convir
grosseiramente aos interesses do estômago, mas podemos ficar doentes pelo que
comemos. Quem tem um paladar saudável não engole tudo que se apresenta diante
do estômago. A saúde dominante diz que tudo que entra pelo estômago saí. Seu
intuito é preservar a forma pela forma, essa é sua constante referência. Numa
relação saudável, e por isso uma frágil relação do paladar com a vida, nem tudo
que entra sai, e muito menos sai da mesma forma, será sempre uma relação de
metamorfose/metamorfose.
Entretanto, para
que não nos tornamos surdos e insensíveis aos excessos do mundo é preciso
encontrarmos com o desforme, com a imperfeição, como amantes da imaturidade por
ser um estado de incompletude e aberta. O homem adulto é supostamente um homem
acabado, fechado, construído. Entretanto a admiração do outro pode preencher o
vazio, desde que não seja preenchido pelo gozo do prazer de controlá-lo.
Os adultos são
tentados pelos jovens pelas suas imperfeições, pela suas irresponsabilidade e capacidades
de aventurar-se frente ao novo, a até mesmo ao leviano. Nesse encontro com o
professor Peter ele me alertou para uma questão que nunca tinha me dado conta,
a de que é no estado embrionário que deforma a forma que a vida encontra sua
plenitude ativa, ou seja, uma forma que se forma pela disforma, que cresce se
deformando. Os seres vivos nascem não para serem ainda congelados pelo processo
de molduração, pela admiração que formata e enclausura.
A inocência
particular do embrião lembra-nos a fragilidade novamente, a leveza. Isto não
deixa de ser um elogio a juventude. Não a juventude saudável e atlética
adoradora de uma forma determinada que se fortalece para essa mesma forma. Ao
contrário, mas o elogio do inacabamento, o jovem quer e procura tornar-se
acabado e o adulto que quer ser frágil projeta no jovem inacabado, que ainda
esta para nascer para a forma acabada, construída uma possibilidade de
“harmonia recíproca”.
É na metamorfose
da forma, que tenciona o manter e o mudar a própria forma que encontramos o
segredo da escuta do sensível. Ao estarmos colado à nossa própria forma, o
mundo se reduz, submetemos nosso viver a uma constante escassez do mundo. É
necessário estarmos atendo ao que nos lembra Nietzsche de que o novo também
assume máscaras para se camuflar. Por que então uma forma se esconde? Se
camufla? O que a forma aprisiona? Aqui se encontra um dos maiores desafios da
imaginação criativa a de liberar a vida onde ela está aprisionada, ensurdecida
e cega. Devolver a criação na estética da existência, não apenas enclausurar a
arte ao museu, mas integrá-la à vida. Lembremos que os povos pré-modernos não
separavam vida e arte.
Hoje os artista
acimentados pela indústria cultural fragmentam a vida do mundo, são devidamente
mumificados. Para sua glória pública devem matar a vida no mundo. As
celebrações artísticas não são nada mais nada menos do que formas disfarçadas
de velório. Para o gozo da glória pública precisam passar pelo processo de
monumentalização, tornarem-se monumentos referenciados, mas o preço que pagam é
muito caro, eles perdem a vida.
São inúmeros
relatos de artistas, escritores, cineastas, músicos e até mesmo cientistas
sobre a fragilidade experimental sofrida depois da monumentalização. Tomam o
mundo como um pequeno circuito, ganham uma forma fechada que os aprisiona e
aborta sua condição de mutante, a mesma que os possibilitavam ser viajantes da
imaginação criativa.
Para preservar
este estado de inacabamento embrionário, que pela sua fraqueza significa, ao
contrário, uma força criadora, é preciso enfrentar a gorda saúde auto
suficiente, pronta, construída que, ao contrário, é uma doença que nos deixa
cegos e surdos, ou seja, escassos dos ruídos do mundo.
A ciência moderna formou-se com
um pensamento dominante na linha do racionalismo
ativo, ou seja, existe uma crescente relação entre racionalismo e ciência
contemporânea. Nenhum de seus métodos e muito pouco de seu ferramental podem
ser considerados válidos para estudarmos a imaginação criativa.
Precisamos para
isso ultrapassar as imposições de métodos que intelectualizam a imagem e
atentarmos para as ressonâncias
sensíveis que brotam e se dispersam em diferentes planos da nossa vida no
mundo. A repercussão da audição dessas ressonâncias sensíveis, implicará
certamente num convite para um novo aprofundamento de nossa própria existência.
Para estarmos
abertos a imaginação criativa é necessário estarmos presente à imagem no minuto da imagem, no
próprio êxtase da novidade da imagem. A velha noção de princípio, a noção de
“base” através do qual progride acumulativamente uma verdade racionalizada
seria desastrosa neste caso.
Quando de uma
imaginação criativa nova, verificamos facilmente que sua relação com um
arquétipo adormecido no fundo do inconsciente não é propriamente causal. Não se trata de um eco passado. A
novidade na sua atividade tem um dinamismo próprio.
Dizer que a
imaginação criativa foge à causalidade é sem dúvida, uma declaração grave,
entretanto percebemos facilmente que a transubjetividade das imagens, das
idéias criativas não podem ser compreendidas, em sua essência, apenas pelos
hábitos das referências objetivas.
Tomando idéias e
invenções preciosas apenas como exemplos, ficamos incapacitados da tradução de
sua arqueologia imaginária com o
referencial metódico da ciência moderna.
A imaginação
criativa requer insigths, ou seja, a participação de uma luz interior que não é
um mero reflexo de uma luz provinda do mundo exterior acumulativamente
realizada pela razão moderna, razão essa, que prioriza traduzir esse mundo
exterior objetivamente. Podemos citar o exemplo de um criativo pintor que é
antes de mais nada um produtor de luzes em telas. Ele sabe claramente nos
movimentos de seu pincel de que foco parte uma iluminação.
Por si só o
prazeroso devaneio criativo é uma instância psíquica que muitas vezes se
confunde com sonhos e desejos. Mas quando se trata de um devaneio que flui não
somente de si próprio, mas que prepara gozos imaginantes para outras almas,
sabemos com certeza de que não estamos mais no caminho fácil das sonolências.
O italiano Ítalo
Calvino escreveu lembrando que há um verso de Dante no "Purgatório"
(XVII, 25) que diz:
"Poi
piovve dentro a l'alta fantasia''
[Chove dentro da alta fantasia].
Calvino
constata a partir de então que: a fantasia, o sonho, a imaginação é um lugar
dentro do qual chove. A “alta fantasia'', é para Dante a
mais elevada imaginação, diversa da imaginação corpórea, como a que se
manifesta no caos dos sonhos. A imaginação que tem o poder de impor sobre
nossas faculdades e nossa vontade, extasiando-nos num mundo interior e nos
arrebatando ao mundo externo, de modo que mesmo se mil trombetas estivessem
tocando não nos aperceberíamos.
Podemos concluir
que a imagem atinge as profundezas antes
de emocionar a superfície. Isso é verdade em uma experiência de criação, ou
até mesmo numa simples leitura de um texto. A imagem que a leitura nos oferece
torna-se realmente nossa. Enraíza-se em nós mesmos. Aqui a expressão cria o ser. Por essa criatividade, a consciência imaginante se revela, simplesmente, mas muito
puramente, como uma origem. Isolar esse valor de origem de diversas imagens
deve ser o sentido de quem quer penetrar num estudo da imaginação criativa.
Não nos interessa
ser alguém que destrói a primitividade da imaginação, não nos interessa ser um
típico crítico que, na verdade, geralmente trata-se apenas e necessariamente de
um simples observador ou leitor severo. Nós devemos nos acostumarmos a nos
concentrarmos num fazer-feliz, como o de leitores que só lêem aquilo que os
agrada, devemos mesclar nosso fazer cotidiano de orgulho com entusiasmo, de
prazer com gozo.
Calvino
referindo-se ao futuro da imaginação criativa na literatura para o próximo
milênio, afirma que a visibilidade se
impõe como um dos valores que compõe sua famosa lista de seis propostas vitais
que serão imprescindíveis no futuro da imaginação literária. Entretanto, ele
nos adverte que estamos correndo o perigo de perder uma faculdade humana
fundamental: a capacidade de por em foco visões de olhos fechados, de fazer
brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre
uma página branca, ou seja, de pensar
por imagens.
Diante disso
Calvino sugere numa possível pedagogia
da imaginação que nos habitue a
controlar a própria visão interior sem sufocá-la e sem, por outro lado,
deixá-la cair num confuso e passageiro fantasiar, mas permitindo que as imagens
se cristalizem numa forma bem definida, memorável, auto-suficiente,
"icástica". É claro que se trata de uma pedagogia que só podemos
aplicar a nós mesmos, seguindo métodos a serem inventados a cada instante e com
resultados imprevisíveis.
Enfim, somos hoje
filhos da ''civilização da imagem'',
ainda que para muitos de nós até a pouco ela recém estivesse em seu início,
muito distante da inflação simbólica
atual. Muitos somos ainda filhos de uma época intermediária, em que se
concedia bastante importância às ilustrações coloridas de quadrinhos que
acompanhavam a infância e de brincadeiras artesanalmente criadas sem o atual
impacto da exposição diante de tubos catódicos.
Na imaginação
criativa, o insigth se realiza pelas idéias, as idéias brotam fervilhantes como
água límpida e cristalina jorrando de sua fonte. A racionalização aprisiona a
criação, castra, hierarquiza, discipliniza, impede o gozo criativo da ebulição
de insigths. Que cada vez mais possamos ultrapassar as barreiras e armadilhas
da racionalidade moderna e quebrar as grades curriculares que nos aprisionam e
que organizam o saber como se estivéssemos condenados a uma eterna reprodução
do conhecimento estruturada numa linha de montagem, e ao contrário que chova dentro de nossas altas fantasias,
e que venham novos insigths iluminados pela imaginação criativa capaz de romper
o domínio desencantador da resistente armadura racional.
Esse texto era usado em aulas nos anos de 2000 => Referências principais utilizadas na época:
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da expeeriência. São Paulo: Cortez. 2000.
CALVINO, Ítalo. Seis Propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das letras, 1990
PALBEART, Peter Pál. A Vertigem por um fio: políticas da subjetividade contemporânea. São Paulo: Iluminuras, 2000.
NOTA:
A ciência reconhece, atualmente, seis teorias principais do envelhecimento, que
são consideradas promissoras. Em termos gerais, as seis principais podem ser
divididas em dois grupos. O primeiro
pode ser chamado de teorias das avarias, o que sugere que o envelhecimento é o
resultado de defeitos nos sistemas restauradores dentro das células ou entre os
órgãos. O segundo grupo de teorias do envelhecimento é conhecido como teorias
de programas, segundo as
quais a natureza de fato programou o processo de envelhecimento nos seres
vivos. Para muitos cientistas existe um pedacinho no nosso ADN que literalmente
força o envelhecimento de nossos corpos. Isso implica que, um dia, poderemos
controlar o processo. A cada dia que se passa, novas técnicas de manipulação
genéticas são criadas por bioquímicos e biólogos. Transplantes de núcleos de
células de pele, por exemplo, já demonstraram que podem, no mínimo, reverter o
processo do “programa” de envelhecimento do ADN. Outra teoria de programa propõe que o acontecimento
que inicia o envelhecimento pode ser a liberação de algum agente destrutivo,
como o fluxo maciço de um hormônio deletério. Numa mesma linha, outra teoria do
programa postula que o envelhecimento pode ser devido ao lento desenvolvimento
de um desequilíbrio hormonal. Alguns cientistas acreditam que o “relógio” de
envelhecimento se oculte no hipotálamo,
uma área do tamanho de uma ervilha, no cérebro, que controla outras atividades,
como a fome, a raiva, o sono e o desejo sexual. Para maiores esclarecimentos
ver o importante livro do gerontololista da UCLA [Universidade da Califórnia em
Los Angeles] WALFORD, Roy. “Maximum Life Span” [Longevidade maximal] W. W. Norton,
Nova York, 1983. Para quem desejar uma visão mais sucinta e em
português, veja o livro do comentarista científico BROCKMAN, John. “Einstein,
Gertrude stein, Wittgenstein e Frankfenstein”, Companhia das Letras, São Paulo, 1989, principalmente
as páginas 171-176.
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