quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

A TELEVISÃO PROVOCA VIOLÊNCIA?

Saiu um artigo meu na Revista Sociologia  Número 73 nas Bancas. Título: A Televisão provoca violência?


“Saiba mais sobre o poder de 18 mil horas de TV em crianças e adolescentes"...; implicações nas modulações cerebrais. Começamos afirmando que as respostas não são assim tão fáceis. O cérebro está sempre aprendendo, também aprende no cinema, na televisão, na tela do computador, do celular e smartphone.
Desde os primórdios que a tecnologia da comunicação humana foi criada que existe também expressões de violência neles. Encontramos expressões desde as primitivas pinturas dos humanódies nas cavernas hexâmetro à xilogravura, nas primeiras expressões pictográficas da escrita, na Bíblia, até ao vídeo e à expressão gráfica da Internet a www (World Wide Web). No entanto, gostaria de responder sobre qual a relação entre representação de violência em filmes ou televisão e a aprendizagem?”
http://www.escala.com.br/sociologia-ciencia---vida-ed--73/p
Gilson Lima




Gilson Lima

Desde que os meios de comunicação social existem, que existe também representações de violência neles. Em Homero e Shakespeare há representação de violência da mesma forma que na Bíblia ou em pinturas antigas desde o hexâmetro à xilogravura, até ao vídeo e à www (World Wide Web). No entanto, gostaria de responder sobre qual a relação entre representação de violência em filmes ou televisão (e re­centemente no computador) e a aprendizagem?
Infelizmente, as respostas não são assim tão fáceis. O cérebro está sempre a aprender, também aprende no cinema, na televisão e na tela do computador.
Concentrarei, sobretudo, num meio, a televisão, devido à sua ampla distribuição e sua grande abrangência e significado social.

Os dados abaixo publicados sobre violência na televisão utilizam, essencialmente, os dados dos EUA já consolidados e amplamente difundidos. Vejamos:  os estudantes americanos gastam, até final da escola secundária (ou seja, 12 anos escolares), aproximadamente 13 000 horas na escola e 25 000 horas em frente de um televisor. Calcula-se que, desse total, 18 000 horas podem ser designadas como «aprendizagem visual dominada pela violência» (Barry, 1997, p. 301).
A Associação Médica Americana calculou que uma criança, até final da escola básica, já viu mais de 8000 homicídios e mais de 100 000 cenas de violência. Foi também calculado que as crianças que vivem em casas com televisão por cabo, até aos 18 anos já viram 32 000 assassinatos e 40 000 tentativas de assassinato e que estes cálculos ainda são mais elevados para determinados grupos sociais nos grandes centros citadinos (Barry, 1997, p. 301).
Com este conjunto de dados, existem pesquisas pormenorizadas relativa­mente aos conteúdos mostrados na televisão. Assim, num dia típico da semana (quinta-feira, 2 de Abril, 1992), em Washington, foi escolhido o programa dos dez canais de televisão com mais audiência, das seis horas da manhã até à meia-noite e foi analisado o seu conteúdo. O total das 180 horas de televisão incluíram 1846 atos de violência explícita, dos quais 751 com situações de ameaça de morte e 175 com desfecho de morte.
Não só as próprias cenas de violência como também o seu contexto deve ser classificado como maximamente desfavorável para o desenvolvimento das crianças. Uma avaliação de cenas de violência num conjunto de 2500 horas de programas de televisão evidenciou que o culpado não foi punido em 73% dos casos (Wilson e col, 1997, p. 141). Mais de metade (58%) de todos os atos de violência foram apresentados sem qualquer consequência negativa relativa­mente a danos. Apenas em 4% dos casos, foram mostradas alternati­vas de resolução do problema sem recurso à violência (Wilson e col., p. 128).
O comportamento das crianças também foi avaliado de muitas formas, em grupos de controle, tanto por meio de observação em situações naturais de jogo como também por meio de perguntas aos professores, crianças e jovens. Verificou-se que nesse período de dois anos, nas comunidades em que tinha sido introduzida a televisão, de acordo com observa­ções e questionários, o nível de agressão aumentou: a agressividade verbal duplicou, a agressividade física quase que triplicou (um resultado altamente significativo). Isto verificou-se tanto em rapazes como em raparigas, em todas os níveis etários. Verificou-se uma relação entre o tempo que as crianças e os jovens tinham passado a ver televisão e a disposição para a violência. Pelo contrário, o nível de violência em ambas as comunidades de controlo ficou igual (Joy e col., 1986).
Também existem consequências, a longo prazo, da violência na televisão. Os dados mais importantes resultam das pesquisas de Eron e Huesmann (1986), que orientaram um estudo prospectivo, a longo prazo, em 875 jovens num período total de 22 anos (!), desde 1960 até 1981.
Os referidos jovens, que na primeira pesquisa, aos 8 anos, viam muitas cenas de violência na televisão, foram catalogados pelos seus professores como tendo maior probabilidade de serem cruéis e agressivos. Estes mesmos jovens, aos 19 anos, tinham maior probabilidade de ter situações de conflito e, aos 30 anos, tinham também maior probabilidade de serem julgados por atos criminosos violentos ou exerciam violência contra cônjuges e filhos.
O estudo mostrou claramente que a quantidade de cenas de violência que as crianças de 8 anos tinham visto na televisão permitiam predizer a violência destas crianças quando adultas. Mostrou também o seu efeito nas gerações seguintes, no sentido em que os jovens que aos 8 anos já tinham visto mais violência na televisão tinham maior probabilidade de agredirem mais tarde os seus filhos.
Os resultados destes estudos são importantes. Contudo, a questão sobre se a violência na televisão conduz a mais violência na vida real não é possível de responder com os referidos estudos, porque podem sempre ser incluídos, a nível puramente teórico, outros fatores, que talvez tenham uma influência que não foram controlados. Contudo, estas pesquisas muito bem orientadas metodologicamente permitem estabelecer esta relação com segurança. Este é particularmente o caso, quando consultamos os resultados de estudos, que foram orientados com outros pressupostos metodológicos de fundamentação. Estas novas metodologias de pesquisa do conhecimento são, por um lado, experiências de laboratório e, por outro lado, os chamados estudos de campo. Apresentamos em seguida exemplos dos dois tipos de
Centerwall (1989a,b) pesquisou a relação entre a introdução da televisão e a frequência de homicídios na população branca dos EUA, no conjunto da população do Canadá (97% branca) e na população branca da África do Sul. Depois de se ter introduzido a televisão nos EUA e no Canadá, na década de 1950, verificou-se uma duplicação dos homicídios num período de 10-15 anos. Durante o mesmo período de tempo, o número de homicídios na África do Sul diminuiu em 7%. Depois da introdução da televisão neste país, no ano de 1975, os homicídios aumentaram, até 1987, 130%. O autor comenta:

«Se a televisão nunca tivesse sido introduzida, existiriam atualmente, nos EUA, anualmente, menos 10 000 homicídios, menos 70 000 violações e menos 700 000 delitos com ferimentos noutras pessoas.» (Centerwall, 1992, p. 3061, tradução do autor.)
Outro autor compara a fixação da mente no ecrã com uma meditação budista, cujo alvo fosse esvaziar o espírito e libertar as preocupações terrenas:

«Um texto [budista] diz-nos que... devemos meditar por meio da concentração num arco-íris. Os acontecimentos entre o acordar e o [à noite] tempo de televisão são as nossas preocupações terrenas. A televisão é o nosso arco-íris. A televisão induz em nós um estado que se parece muito com a qualidade da meditação. Por isso vemos muita televisão.» (Fowles, 1992, p. 244; tradução do autor.)

A citação torna claro que, apesar dos resultados contraditórios de abuso de violência resultantes da investigação empírica, até hoje é argumentado, de forma ainda não contestada, que há um efeito positivo da televisão no potencial de violência.

Dessensibilização
Quando os organismos estão permanentemente expostos a um determinado estímulo ou a uma determinada classe de estímulos, a reação a estes estímulos vai sempre diminuindo. Falamos de dessensibilização. Trata-se também de uma forma de aprendizagem. O fenômeno existe em diferentes espécies e é relativo a diferentes classes de estímulos, entre outros, também, para a pessoa e a vio­lência.
As investigações mostraram, respectivamente, que quem vê sempre filmes de violência reage menos fortemente às cenas de violência nesse filmes (Cline e col, 1973). O comportamento é generalizado do filme para a realidade (Thomas e col., 1977). A observação permanente da violência na televisão leva a que as formas de comportamento violento no espectador subam mais do que o normal. Não só a experiência e as reacções vegetativas mas também o comportamento da pessoa mudam de forma correspondente, tal como, em 1992, a Associação Americana de Psicologia (American Psychological Association, APA) colocou a questão. Em resumo: a observação de violência leva a comportamentos de embotamento e de indiferença face à violência.

Crianças em frente da televisão
Afirma-se muitas vezes que as crianças podem distinguir muito bem entre a realidade virtual e a real. Talvez possamos afirmar isto em relação às crianças mais velhas, mas não relativamente às mais pequenas, até aos 8 anos, que têm muitas dificuldades em distinguir a realidade da fantasia. Pesquisas americanas e canadianas, em crianças em idade escolar mostraram efeitos da aprendizagem tornam-se crônicos e permanecem até à idade adulta (Centerwall, 1992). Também as crianças mais velhas e, não menos importante, os adultos, podem aprender com as imagens televisivas como aprendem por meio de imagens reais.
A observação da violência é para nós um exercício de aprendizagem, tal como olhar borboletas ou folhas: quem já viu milhares delas, de fato já não as distingue, porque já conhece o processo. Para falar de violência na televisão, sejamos breves e pragmáticos: quem vê filmes de terror e de violência aprende horror e violência. A longo prazo, ele cruza-se, passo a passo, com o horror e a violência. Ainda mais: o aprendido influenciará o seu comportamento e, assim, a vida social na sociedade em geral.
Quem refere que as crianças e os jovens podem separar bem a televisão do mundo real, deve lembrar-se que também alguns adultos se transformam em atores, para responderem às questões da vida, não como espectadores, mas desempenhando na vida real os papéis que vêem na televisão - pai, médico, conselheiro - ou seja, personificando os papéis.

Conclusão: violência como poluição ambiente

É surpreendente que até hoje a relação entre violência na televisão e violência nas crianças seja contestada, cada vez mais, pelos jovens e mais tarde pelos adultos. Apesar da enorme controvérsia na discussão deste tema sensível, a reflexão dos métodos de investigação utilizados (e assim a fiabilidade dos resultados dos próprios estudos) é de grande significado. Podemos considerar, na perspectiva do design dos estudos, em princípio, três tipos de pesquisas diferentes: experiências de laboratório, estudos de campo e estudos em condi­ções naturais. Todos têm as suas vantagens e desvantagens.
Nas experiências de laboratório, em que um grupo via vídeos de violência entre crianças e o outro via vídeos sem violência, foi observado um claro efeito de aprendizagem de violência. Estas experiências apontam para razões-efeitos-relações entre a televisão e a violência, de forma clara. A desvantagem das experiências de laboratório são a «artificialidade» do setting, o que essencial­mente deveria conduzir a uma subavaliação do efeito real da televisão, pois em casa vê-se mais televisão do que no laboratório e no laboratório não são identificáveis os efeitos a longo prazo da televisão.
Nos estudos em condições naturais, foram pesquisados, por exemplo, os efeitos da introdução da televisão numa comunidade ou num país. Às vantagens das condições de um estudo em ambiente natural e prováveis grandes números de casos, opõe-se a desvantagem de não controlo de muitas condições de pesquisa.
Entre as experiências de laboratório e os estudos em ambiente natural, ficam os estudos de campo. Através de uma divisão aleatória de grupos, eles possuem uma melhor significância (através da eliminação de uma influência de selecção disruptiva), do que os estudos em ambiente natural e, pela obser­vação no mundo real (vê-se televisão ou não; o comportamento é observado e avaliado nas condições normais de vida), a artificialidade do laboratório é evitada. Contudo, também os estudos de campo têm as suas desvantagens, pelo que todos se devem complementar reciprocamente. O método de labora­tório permite a precisão, olhar o comportamento ao microscópio; contrariamente aos estudos de campo e aos estudos em condições naturais, há uma correspondência entre os dados obtidos no laboratório e o mundo real.
Os resultados obtidos com os referidos métodos são claros: há uma relação manifesta entre a observação de violência na televisão e a violência no mundo real. O que é perverso nesta relação - à semelhança da relação entre o fumar e as doenças pulmonares - é o atraso de pelo menos um ano. Se a violência aumentar, já será muito tarde.
Na perspectiva neurobiológica, a violência fala de procedimentos instintivos de dedicação da atenção, embora as crianças não possam mostrar mais nada além destes conteúdos que deveriam ser eliminados. A neuroplasticidade do cérebro, fortemente impregnada na idade infantil, causa portanto a construção de representações correspondentes nos mapas corticais portadores de sentido a nível superior nos adolescentes, que precisamente desta forma ficam instala­dos para operar efetivamente nos comportamentos futuros.
Também é muito significativo que nos organismos em que estão instalados de forma permanente um determinado estímulo ou uma determinada classe de estímulos, a reacção emocional a esses estímulos vai decrescendo cada vez mais. Falamos de dessensibilização. O fenômeno é válido para diversas espécies e em diversas classes de estímulos, entre os quais também as pessoas e a violência. Os estudos empíricos podem mostrar: 1) quem vê continuamente filmes de violência reage menos às cenas de violência apresentadas nos filmes; 2) o com­portamento generaliza-se do filme para a realidade; 3) a permanente observação de violência na televisão leva a que as formas de comportamento violentas aumentem no observador mais do que o normal; 4) o comportamento da pessoa muda no mesmo sentido. Em resumo: a violência na televisão leva a uma funda­mentação da nossa disposição neurobiológica para mais violência no mundo.
O que se segue? Virá o tempo em que nós vamos ouvir negar sistematica­mente estas relações. Devemos compreender que a violência na televisão tem o mesmo valor na nossa sociedade, que, por exemplo, a poluição: se os compor­tamentos de produção abandonarem o mercado livre, sobrevive quem produzir mais barato, o que significa o mesmo que produzir da forma mais suja. Ninguém quer um ambiente poluído, mas sem vontades políticas de todos e sem regras adequadas, só sobreviverão no mercado aqueles que produzirem mais barato na opinião mundial. O mesmo se passará com o comportamento com os negócios de televisão, que vivem de contributos mundiais e são avaliados por quotas de audiência. A violência mostrada capta uma quota elevada de audiên­cias, o que leva a que, a longo prazo, só sobrevivam no mercado aqueles que chamam a atenção do espectador com esses meios.
Os países ocidentais industrializados tomaram conhecimento de que devem ser tomadas medidas sobre aspectos do meio ambiente - poluição ambiente, micropoeiras ou DDT - que têm efeitos complexos e a longo prazo, mas que podem controlar o nosso meio ambiente e, em última análise, a nossa vida. A continuidade da violência nos meios de comunicação, nos nossos mapas corticais não é - como acima indicado - menos dramática. Haverá tempo que nós teremos de refletir numa perspectiva de austeridade de alimentação visual-mental das nossas crianças, de uma forma séria. Não devemos minimizar o assunto.
E ainda o seguinte: quem, como reacção aos 16 mortos de Erfurt em 26 de Abril de 2002, continua a utilizar armas, está errado. Facas de cozinha, navalhas ou aviões de passageiros não podem ser proibidos, e no entanto também podem ser utilizados, letalmente, como acontece com as pistolas e outras armas. De facto e de forma duradoura podemos lutar contra a violência quando oferecer­mos às pessoas uma perspectiva mais alargada de possibilidades de resolução de conflitos, certamente um material de aprendizagem muito melhor do que aquele que é fornecido pêlos meios de comunicação.
A indústria (Hollywood, proprietários de redes televisivas, realizadores de programas, etc.) fala de autocontrole voluntário, da responsabilidade dos pais e afirma defender o direito de liberdade de opinião. Os próprios meios de comunicação disfarçam as circunstâncias e minimizam a miséria. Poucas semanas antes dos acontecimentos em Erfurt, a Focus (n.° 12; 18 de Março de 2002) publicou um artigo sob o tema: «As crianças devem ver televisão». Nele argumentava-se que as crianças que não vêem televisão podem ser marginali­zadas nos grupos. Mas quando, como a academia pediátrica americana referiu, as crianças até aos 18 anos, nos EUA, já viram 200 000 atos de violência, só na televisão, talvez fosse melhor que todos nós fôssemos marginalizados!

Pos scriptum: jogos de computador - aprender pela ação

Há cerca de 25 anos, surgiram os videojogos como uma coisa inofensiva; jogávamos amigavelmente pinguepongue, Tetris ou Pacman. Isto alterou-se num período de apenas 10 anos, com o desenvolvimento sempre crescente do computador. Em 1993, durante a época do Natal, a festa da paz e do amor, apareceu à venda nas lojas um videojogo de violência muito realista, que foi um êxito de vendas. O herói não disparava apenas contra discos voadores virtuais; não, ele decapitava os seus inimigos e arrancava-lhes o coração do corpo. Em jogos como Mortal Kombat, a morte do inimigo é claramente o alvo. Como uma análise comparativa de 33 videojogos Nintendo e Sega evidenciou, temos conteúdos de aproximadamente 80% de violência e agressão, sendo 20% de conteúdos explícitos de violência contra mulheres (Dietz, 1998).
Ao contrário do número enorme de estudos empíricos relativos ao efeito de apresentação de violência na televisão, a literatura científica sobre jogos de computador e de vídeo ainda é muito vaga. Também aqui, na perspectiva dos jogos de computador é sempre alegado que - contrariamente ao que é verificado claramente sobre a televisão - «os jogos de vídeo podem ser úteis e podem ajudar a que as energias agressivas sejam reprimidas» (Emes, 1997, p. 413; tradução do autor).
Neste preciso cenário de fundo, a pesquisa descrita a seguir, de Anderson e Dill (2000), tem grande significado, pois ela mostra como uma das mais significativas formas de ocupação de tempos livres da nova geração funciona sobre o seu pensamento, sentimentos e comportamentos. Os autores referem que jogos repetidos de violência levam, a longo prazo, à aprendizagem de emoções, pensamentos e disposição para comportamentos correspondentes. Eles descrevem-nos como segue:
«Os efeitos a longo prazo da violência nos meios de comunicação são o resultado do desenvolvimento, da sobreaprendizagem e do fortalecimento de estruturas de conhecimento dos que exercem a agressão. [...] De cada vez que as pessoas jogam jogos de vídeo violentos, repetem programas de comporta­mento agressivo, que ensinam e intensificam a atenção contra o inimigo, no sentido de uma mudança perceptiva. Por vezes, aquilo que foi aprendido e intensificado transforma-se em ações agressivas contra os outros, expectativas de que outros actos agressivos sejam realizados e que a resolução de conflitos com recurso à violência seja significativa e eficaz. A exposição repetida a situações visuais de violência conduz em direcção a um embotamento face à violência. A criação e automatização de estruturas de identificação com o agressor, tal como a dessensibilização, levam por fim a uma mudança de personalidade.» (Anderson e Dill, 2000, p. 774, tradução do autor.)
Os autores orientaram duas pesquisas com metodologias complementares diferentes. Numa primeira pesquisa, foi avaliada a relação entre violência e não violência no jogo de vídeo e uma série de variáveis - como irritabilidade, agressividade, delinquência, opinião subjectiva sobre criminalidade e segurança pessoal - numa sequência de estudo em 227 colegas estudantes (78 homens, 149 mulheres), com idades médias de 18,5 anos.
Verificou-se que 207 estudantes (91%) no momento da pesquisa jogavam videojogos no seu tempo livre, num tempo médio semanal de 2,14 horas. Este tempo foi menor do que durante a fase escolar, para os sujeitos a quem foi pedido o mesmo: eles jogavam 5,45 horas, durante a escola secundária: 3,69 horas no início e 2,68 horas no seu final. Entre os 20 não jogadores, estavam 18 mulheres. Os jogos classificados pêlos estudantes foram, aproximadamen­te, um quinto com violência expressa e um quinto com violência acentuada. O jogo com videojogos de violência foi correlacionado de forma significativa­mente positiva com a delinquência agressiva (r = 0,46) e com a delinquência não agressiva (r = 0,31), tal como com o traço de personalidade agressiva (r = = 0,22).
Também mostrou que o jogo com jogos de vídeo violentos se correlaciona de forma baixa e significativamente negativa com a produtividade no estudo (r = - 0,08) e que o tempo gasto com videojogos tem uma correlação negativa significativa (r = - 0,2). Tal como os estudos acima referidos sobre a violência na televisão, as correlações nada dizem sobre a causas. Pode acontecer que os delinquentes tendam para videojogos violentos (e não, pelo contrário, estes jogos induzam comportamentos delinquentes). Para pesquisar as ligações causais é preciso, como acima discutimos, estudos experimentais adequados.
Assim, os autores conduziram, em 210 estudantes do ensino superior (104 mulheres e 106 homens), a seguinte experiência. Homens e mulheres jogavam um videojogo violento (Wolfenstein 3D) ou um não violento (Myst). Foi tam­bém pesquisado em todos os sujeitos o seu factor de personalidade irritabilidade (alta versus baixa), tal como a existência anterior de comportamentos agressivos e ideias e sentimentos agressivos. O comportamento agressivo foi assim pesqui­sado em laboratório e os sujeitos jogadores podiam ajustar a duração e a intensi­dade de som de alarme na sala do jogador supostamente adversário, quando este tivesse supostamente perdido. Sob determinadas circunstâncias, este tempo aumentava sobretudo mais nos jogadores de jogos violentos. O pensamento agressivo foi medido com uma experiência de leitura de palavras, na qual foi medido o tempo de reacção na leitura de um conjunto de 192 palavras de conteúdo neutro ou agressivo. Verificou-se uma diminuição altamente signifi­cativa do tempo de reacção em palavras com conteúdo agressivo depois de jogar com jogos agressivos no sentido de um efeito de via de abertura. Nos estudos experimentais, verificamos assim efeitos de comportamento e cogni­tivos, que falam claramente sobre um efeito de exigência de videojogos agressivos para que surja uma disposição dos jogadores para a violência.
Há boas razões para aceitar que os videojogos têm efeitos sobre a disposição para a violência; que, no caso da televisão, são ainda mais claros. Assim, Stickgold e colaboradores (2000) descobriram que nos episódios de sono, depois de um jogo de vídeo prolongado (foi jogado o jogo Tetris, não agressivo), aumentavam as componentes pictóricas do jogo. Curiosamente, isto diz respeito não aos aspectos triviais do jogo, como, por exemplo, o ecrã de computador ou o teclado, mas sim às características visuais dos estímulos que eram relevantes para o jogo. Discutimos anteriormente as relações entre os episódios para as ocorrências de aprendizagem, para reativar o aprendido e para consolidar os vestígios de lembranças. Destas descobertas experimentais, devemos assumir que também os conteúdos dos videojogos «são trabalhados durante» o sono e assim são consolidados.
Quem ainda duvida que os videojogos podem ter consequências devastadoras, traduzi para eles o seguinte excerto do trabalho de Anderson e Dill (2000, p. 772), que talvez mostre, mais claramente do que as estatísticas, para onde pode conduzir a violência nos videojogos:


«Em 20 de Abril de 1999, Eric Harris e Dylan Klebold desencadearam um ataque de terror na Escola Columbus, em Littleton, Colorado: assassinaram 13 colegas e feriram 23, antes de apontar as armas a si próprios. Apesar de não ser possível termos a certeza do que levou estes adolescentes a atacar o seu profes­sor e os seus colegas de escola, há certamente vários factores envolvidos. Um desses factores são os videojogos violentos. Harris e Klebold gostavam muito de jogar o sangrento Doom, um jogo que foi licenciado e introduzido pêlos militares dos EUA para instruir os soldados para matarem os inimigos. Nos arquivos do centro Simon-Wiesenthal, uma instituição que tem como alvo os indícios de ódio e violência na Internet, foi encontrada uma cópia, no website de Harris, que continha uma versão formatada personalizada do jogo Doom. Nesta versão, havia dois soldados, carregados com armas extra e com um número ilimitado de munições, e inimigos que estavam indefesos. Como trabalho de projecto no âmbito do ensino, Harris e Klebold tinham produzido essa versão personalizada do Doom. Neste vídeo, Harris e Klebold usam gabardinas, estão armados e assassinam, colegas de escola. Menos de um ano depois, actualizaram na vida real esta simulação de vídeo. Como o investigador do Centro Wiesenthal disse, Harris e Klebold "jogaram o seu jogo na modalidade Deus".»

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Seu Kowalsky - Gilson Lima - Balada do Louco

Para os blogueiros. Chegando o Natal. Tempos de festas e encontros. Deixo para você minha versão e interpretação da música Balada do Louco dos velhos Mutantes. 
https://youtu.be/nnlNjbvJuAY
Show do Sargent Peppers. Se gostou compartilhe.



quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Por que QUDITS (fotônicos, quânticos e múltiplos) são melhores e mais baratos que QUBITS (só do 0 e 1 - binário)?

Por que qudits são melhores que qubits: A demonstração foi realizada usando chips comprados no comércio, em vez dos aparatos complexos e caros tipicamente usados pela computação quântica.

Pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisa Científica do Canadá surpreenderam seus colegas de todo o mundo ao criar um sistema fotônico extremamente avançado em termos de aplicação, mas fabricado usando apenas componentes de telecomunicações disponíveis comercialmente e, mais importante, no interior de um chip - os componentes fotônicos tipicamente são muito maiores e há muitos desafios para a sua miniaturização.

Michael Kues e seus colegas demonstraram que os fótons podem se tornar um recurso quântico acessível e poderoso quando gerados na forma de quDits emaranhados por cores.

Se o mais conhecido qubit pode conter dois níveis de energia, um qutrit pode conter 3 níveis e assim por diante, onde cada nível representa um dado. Para resumir a nomenclatura, os físicos definiram que um quDit pode conter "D" níveis de energia.

Neste novo sistema, os bits quânticos assumem vários níveis de energia apresentando uma multiplicidade de cores simultaneamente por meio do fenômeno quântico do entrelaçamento (ou emaranhamento).

Qudit com múltiplas cores

O sistema usa um chip fotônico pequeno e barato fabricado através de processos semelhantes aos usados para fabricar os tradicionais circuitos integrados eletrônicos.

Usando um ressonador em anel dentro de um chip, energizado por um laser, os fótons são emitidos em pares que compartilham um estado quântico complexo, com uma série de componentes de frequência sobrepostos: os fótons têm várias cores ao mesmo tempo, e as cores de cada fóton em um par estão ligadas (emaranhadas), independentemente da distância que os separe após sua emissão.

Com cada frequência - ou cor - representando uma dimensão - ou um dado -, os fótons são gerados no chip como um estado quântico de alta dimensionalidade - um quDit.

Até agora, a computação quântica tem-se concentrado principalmente nos qubits, sistemas bidimensionais com dois estados sobrepostos (por exemplo, 0 e 1 ao mesmo tempo, em contraste com os bits clássicos, que são 0 OU 1 em cada momento).

Trabalhar no domínio da frequência permite a superposição de muitos outros estados, aumentando a quantidade de informação em cada fóton. Por exemplo, um fóton de alta dimensionalidade pode ser vermelho E amarelo E verde E azul, embora os fótons utilizados nesta demonstração sejam infravermelhos, para compatibilidade com a tecnologia usada nas telecomunicações.

Por que qudits são melhores que qubits
Fotos dos protótipos, construídos com componentes comerciais. À direita, a interligação com o sistema de fibras ópticas.
[Imagem: Michael Kues/INRS University]

9.000 dimensões

A equipe demonstrou um sistema quântico com pelo menos 100 dimensões usando esta abordagem, e afirma que sua tecnologia é prontamente ampliável para criar sistemas de dois quDits com mais de 9.000 dimensões. Isso seria comparável a sistemas tradicionais de 12 qubits, só que estes exigem plataformas significativamente mais caras e complexas, e não chips comprados no comércio.

O uso do domínio de frequência para os estados quânticos também permite sua fácil transmissão e manipulação nos sistemas atuais de fibra óptica.

Ao combinar os campos da óptica quântica e o processamento óptico ultrarrápido, mostramos que a manipulação de alta dimensionalidade destes estados é realmente possível usando elementos de telecomunicações padrão, como moduladores e filtros de frequência", ressaltou o professor José Azaña, coordenador da equipe.

Bibliografia:

Artigo: On-chip generation of high-dimensional entangled quantum states and their coherent control
Autores: Michael Kues, Christian Reimer, Piotr Roztocki, Luis Romero Cortés, Stefania Sciara, Benjamin Wetzel, Yanbing Zhang, Alfonso Cino, Sai T. Chu, Brent E. Little, David J. Moss, Lucia Caspani, José Azaña, Roberto Morandotti
Revista: Nature
Vol.: 546, 622-626
DOI: 10.1038/nature22986

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

A MENTE, O CÉREBRO - Steven Rase

A MENTE, O CÉREBRO E A PEDRA DE ROSETA[1]

Steven Rase


Nossa linguagem é repleta de dicotomias: natureza versus nutrição; genes versus ambiente; masculino versus feminino; hardware versus software; conhecimento versus afeto; alma versus corpo; mente Versus cérebro. Mas será que essas divisões em nossa forma de pensar refletem diferenças reais no mundo externo, ou seriam o produto da história intelectual de nossa sociedade? Ou seja, são ontológicas ou epistemológicas? E perceba que também esta distinção é dicotômica. Uma maneira de responder essa pergunta é verificar se sociedades de culturas diferentes fazem o mesmo tipo de separação. No caso mente versus cérebro, com certeza não: de acordo com o historiador de ciência Joseph Needham, a ciência e a tecnologia chinesas, por exemplo, não faziam essa distinção. Embora a separação entre mente e cérebro seja profetizada na maior parte das tradições greco-judaico-cristãs, só tomou vulto a partir do século XVII, com o nascimento da ciência ocidental moderna. Foi então que o filósofo e matemático católico René Descartes dividiu o universo em dois campos, o material e o mental. Todos os elementos vivos e o mundo natural que nos cerca,juntamente com a tecnologia criada pelo ser humano, foram considerados materiais, assim como o corpo humano. Mas a cada corpo humano foi atribuída uma mente ou alma, assoprada para dentro dele por Deus, e ligada a ele por meio de um órgão localizado no fundo do cérebro, a glândula pineal.
A separação foi útil de numerosas maneiras. Justificava a exploração de outros animais pelos homens, pois aqueles eram meros mecanismos, não sendo dignos de mais consideração do que a dispensada a qualquer outro tipo de
máquina; exaltava o lugar de destaque da humanidade dentro do universo, mas apenas no que dizia respeito à alma; os corpos humanos também podiam ser explorados, e o eram de forma crescente, através da compra e venda de escravos na América e à medida que surgia a Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX; as almas podiam ser deixadas para o culto pastoral dos domingos.
O dualismo cartesiano deixou suas marcas na medicina, especialmente na parte dela que lidava com a mente. As desordens e perturbações mentais foram dicotomizadas em orgânicas/neurológicas- quando o problema era no cérebro - ou funcionais/psicológicas - quando houvesse algo de errado com a mente. Essas dicotomias persistem ainda hoje em boa partir da prática psiquiátrica, resultando na divisão da terapêutica em medicamentos para tratar do cérebro e conversa para tratar da mente. As causas dessas perturbações são normalmente atribuídas aos domínios da mente (chamadas "exógenas", como no caso das depres­sões seguidas de tragédia pessoal) ou do corpo ("endógenas", provocadas por genes defeituosos ou desequilíbrios bioquímicos).
Entretanto, conforme se expandiram a escala e o poder da ciência moderna desde o século XVII, o desconfortável acerto de Descartes foi posto à prova cada vez mais freqüentemente. A física de Newton ordenava a movimentação dos planetas e a queda das maçãs. Antoine-Laurent Lavoisier demonstrou que a respiração humana era um processo de combustão química, em nada diferente da queima de carvão numa fornalha. Os nervos e músculos dançavam sob a aplicação das cargas elétricas de Luigi Gal­vani, e não pela ação de algum tipo de vontade autônoma. E a evolução darwiniana colocou os seres humanos lado a lado com outros animais. O reducionismo militante, o materialismo mecânico tornaram-se a ordem do dia. Em 1845 quatro fisiologistas em ascensão - os alemães Hermann Helmholtz, Carl Ludwig, Ernst Brücke, e o francês Emil du Bois-Reymond - fizeram o juramento mútuo de levar em consideração todos os processos corporais em termos físico-químicos; na Holanda,Jacob Moleschott foi ainda mais longe, afirmando que o cérebro secretava os pensamentos assim como os rins secretavam a urina, e que a personalidade era uma questão de fosfato. Para o campeão do darwi­nismo, o inglês Thomas Huxley, a mente estava para o cérebro assim como os apitos estavam para as locomotivas a vapor.
Mais de um século depois, esse reducionismo constitui o conhecimento convencional de quase toda a ciência. Muitos acreditam que a ciência mais fundamental é a física, seguida da química, bioquímica e fisiologia; um pouco mais acima nessa hierarquia estão as ciências mais "maleáveis" como a psicologia e a sociologia, sendo que o objetivo das ciências unificadas parece ser transformar todas as ciências de hierarquia elevada em fundamentais. Os cientistas com formação em estudos moleculares são abertamente desdenhosos em relação às pretensões dos assuntos mais "maleáveis". Em 1975, E. O. Wilson lançou seu famoso (ou notório, dependendo da perspectiva) texto Sociobiology, the New Synthesis, no qual afirmava que a biologia evolutiva,juntamente com a neurobiologia, estava prestes a tornar a psicologia, a sociologia e a economia irrelevantes; dez anos depois, o decano da biologia molecular,Jim Watson, estarreceu sua platéia no London Institute of Contemporary Arts com a afirmação de que "em última análise existem apenas átomos. Existe apenas uma ciência, a física; tudo o mais é serviço social".
E quanto às memórias de infância, o prazer em ouvir um quarteto de cordas interpretando Beethoven, o amor, o ódio, as alucinações da esquizofrenia, a crença em Deus, o senso de justiça no mundo - e até mesmo a consciência em si? Concordamos com Descartes e confiamos esses fatos ao mundo mental e espiritual, intocados pelo mundo carnal, mas capazes de interagir com ele através da estimulação de um nervo? John Ecles, vencedor do prêmio Nobel por seu trabalho na fisiologia das sinapses (as junções entre as células nervosas), e assim como Descartes um compenetrado dualista e católico, certamente acreditava nisso, pois veio a argumentar que existia um "cérebro de ligação" no hemis­fério esquerdo, através do qual a alma pode cutucar as sinapses. Ou será que nos aliamos a Watson, Wilson e outros precursores do século XIX, tomamos partido dos genes e descartamos o resto? Como disse um colega bioquímico durante uma conferência para pais de crianças "com distúrbios de aprendizado", seria nossa tarefa demonstrar "como desordens moleculares levam a desordens mentais"?
Bem, deixe-me dar minha própria opinião como neurocientista interessado no funcionamento do cérebro e da mente. Em primeiro lugar, existe apenas um mundo, uma unidade material ontológica. A alegação de que existem dois tipos de coisas incomensuráveis no mundo, o material e o mental, induz todo tipo de paradoxo e é insustentável. Sem entrar em longos debates filosóficos, a simples observação de que manipular a bioquímica cerebral (com drogas psicoativas, por exemplo) altera as percepções mentais ou de que o sistema de imagem tomográfica indica que regiões específicas do cérebro usam mais oxigênio e glicose quando uma pessoa está concentrada, tentando resolver um problema matemático "mentalmente", mostra que, enquanto a personalidade é mais do que uma simples questão de fosfato, os processos que denominamos mentais e cerebrais devem estar ligados de alguma forma. Portanto o monismo dita as regras, e não o dualismo.
Mas isso não me coloca ao lado de Watson e Wilson. Há mais o que fazer para compreender o mundo do que simplesmente enumerar os átomos que o compõem. Para começar, existem as relações de organização entre os átomos. Considere uma página deste livro. Você a vê como uma seqüência de palavras, combinadas de modo a formar frases e parágrafos. Uma análise reducionista poderia decompor o mundo nas letras individuais, e estas nos componentes químicos da tinta preta sobre o papel. Tal análise seria abrangente; lhe diria a composição exata desta página; mas nada diria sobre o significado das letras organizadas em palavras, frases e parágrafos. Esse significado é aparente apenas em um nível mais elevado de análise, nível este que consideraria a distribuição espacial da tinta preta sobre o papel, o padrão existente na ordem espacial das palavras que aparecem na página e a relação seqüencial de cada frase com a próxima do parágrafo. Interpretar esses padrões requer conhecimento lingüístico, e não uma química específica. Portanto, esse novo nível mais elevado de análise requer sua própria ciência. Por exemplo, o estudo da mecânica dos fluidos requer o uso de propriedades tais como coesão e incompressibilidade para explicarmos fluxo, vórtice e formação de ondas, sendo que nenhum desses fenômenos é propriedade das moléculas que formam os líquidos. Semelhantemente, o cérebro possui propriedades tais como armazenamento e resgate de memória, que não são encontradas em uma célula individualmente. Esses aspectos qualitativamente variáveis de um sistema, em níveis diferentes, são propriedades emergentes, e a biologia está repleta delas.
Além disso, para que a ordem espacial das palavras na folha de papel tenha sentido, é preciso que também haja uma ordem temporal. Em escritas derivadas do latim, começa-se a ler a partir do canto esquerdo superior da folha, seguindo-se até o canto direito inferior da mesma. Inverter a ordem resultaria em puro absurdo. A ordem temporal e de desenvolvimento é uma característica vital em organizações e processos de nível elevado, o que não é necessariamente o caso dos sistemas de níveis mais simples, não podendo, portanto, ser vista através de um quadro reducionista. Digo mais: apenas os símbolos numa página não são suficientes; para entendermos algo em uma página de prosa, precisamos saber um pouco da língua e da cultura com as quais essa página foi elaborada, e dos propósitos para os quais foi escrita. (O que está nessa folha seria a taxonomia de um peixe, uma receita de bouillabaisse ou uma ode aos prazeres culinários mediterrâneos?) Um princípio importantíssimo da organização biológica é indicado por essa simples analogia. Nada em biologia faz sentido a não ser que esteja dentro de um contexto histórico, da história de um organismo individual (isto é, seu desenvolvimento) e da história da espécie da qual ele faz parte (isto é, a evolução) . De fato, a evolução pode ser considerada, sob alguns aspectos, a história dos eventos emergentes que deram origem a uma diversidade de organismos, de diferentes formas e comportamentos, que é uma característica tão evidente do mundo em que vivemos.
Explicar os rabiscos pretos sobre a página de um livro em termos químicos nos ajuda a entender sua composição; no entanto, não nos diz nada sobre seu significado como um conjunto de símbolos ordenados sobre a folha. Explicar não é o mesmo que esclarecer e nenhuma sofisticação química pode eliminar a necessidade de uma ciência mais elaborada que esclareça o sentido procurado. Além disso, o programa reducionista ingênuo oferecido por Watson e Wilson simplesmente não funciona na prática. Existem muito poucas moléculas elementares mais simples do que aquelas que compõem a água - dois átomos de hidrogênio combinados com um átomo de oxigênio formando uma molécula de água. Ainda assim, nem todos os recursos da física seriam suficientes para prever as propriedades dessa molécula através do conhecimento das frações dos elementos hidrogênio e oxigênio. A química nunca caberá por completo dentro da física, apesar de o conhecimento dos princípios físicos iluminar profundamente a química. E ainda menos caberiam a sociologia e a psicologia dentro da bioquímica e da genética.
Portanto, a despeito da unidade ontológica do mundo, nos resta, e sempre restará, uma profunda diversidade epistemológica. Na analogia bastante conhecida dos cegos descrevendo o elefante, existem muitas coisas a saber e muitos modos de aprendê-las. E temos muitos tipos de linguagem para descrever o que sabemos. Tome como exemplo um fato biológico simples, como a contração que ocorre nos músculos da pata de um sapo quando um choque elétrico é aplicado sobre eles ou sobre as fibras de um nervo motor. Para os fisiologistas, essa contração pode ser explicada em termos das propriedades estruturais e elétricas das fibrilas musculares, tal como observadas num microscópio e registradas por um eletrodo fixado na superfície do músculo. Para os bioquímicos, a célula muscular é composta basicamente por dois tipos de proteínas, actina e miosina, que formam moléculas interdigitadas e filamentosas; durante a contração muscular, os filamentos de actina e miosina deslizam uns sobre os outros. Numa linguagem mais simples, somos tentados a dizer que o deslizamento de actina sobre mio sina "causa" a contração muscular. Mas essa é uma ma­neira imprecisa e confusa de dizer. O termo "causa" implica que algo acontece antes (a causa) e a seguir desencadeia outra coisa (o efeito). Mas não é verdade que os filamentos de actina e miosina deslizam primeiro para depois ocorrer a contração muscular. Em vez disso, o deslizamento dos filamentos é o mesmo que a contração muscular, só que descrito em linguagem diferente. Nós chamamos esta linguagem de bioquimês, em contraste com o fisiologês.
E onde fica a dicotomia entre cérebro e mente sobre a qual comecei a discutir? O cérebro não "causa" a mente, como sugeriria o tolo materialismo mecânico (como o apito está para o trem a vapor), nem mente e cérebro são duas coisas diferentes, como afirmaria o dualismo cartesiano. Em vez disso, temos uma coisa, cérebro/mente, da qual podemos falar usando duas línguas diferentes, talvez o neurologês e o psicologes.
Um exemplo: uma das desordens mentais mais corriqueiras nos EUA e na Europa, hoje em dia, é a depressão. Por muitos anos, psiquiatras de orientação biológica, psiquiatras sociais e psicólogos têm estado em palpos de aranhas tentando encontrar as causas da depressão e sua cura. Ela é causada por desordens no metabolismo de neurotransmissores, como afirmariam os psiquiatras biológicos, ou pelas pressões intoleráveis do dia-a-dia? (Um dos segmentos com maiores predisposições para a depressão são as mães solteiras de baixa renda, vivendo em regiões urbanas, em condições de insegurança financeira e pessoal.) No primeiro caso, a depressão deveria ser tratada com drogas que afetem o metabolismo de neurotransmissores; no segundo caso, o tratamento consistiria em atenuar as más condições sociais e pessoais que causam o distúrbio, ou preparar a pessoa para lidar com elas. Este é o tratamento indicado pela psicoterapia. Mas, a meu ver, estas formas de diagnóstico ou tratamento não são incompatíveis. Se a psiquiatria biológica está correta, as pessoas deprimidas têm desordens nos neurotransmissores, e se a psicoterapia funciona, então à medida que alguém se submetesse a um tratamento psicológico e apresentasse melhoras na depressão a desordem nos neurotransmissores se autocorrigiria. Há uns dois anos eu me dispus a testar isso (para tanto tive que superar uma grande hostilidade da parte dos psiquiatras e dos psicólogos) medindo tanto a classificação ou avaliação psiquiátrica quanto os níveis de um dado sistema neurotransmissor/enzima no sangue dos pacientes de um instituto psicoterápico de Londres. Acompanhei os pacientes durante um ano inteiro de tratamento. Os resultados ficaram muito bem delineados. Os pacientes que davam entrada no instituto sentindo-se deprimidos (e eram classificados como tal no escore psiquiátrico) apresentavam níveis mais baixos do neurotransmissor do que os indivíduos do grupo de controle. Após alguns meses de tratamento psicológico, o escore depressivo havia melhorado e o neurotransmissor voltara a níveis normais. A mudança bioquímica e a psicoterapia caminharam lado a lado.
A linguagem mental não causa a linguagem cerebral, ou vice-versa, assim como uma sentença em francês não causa uma sentença em inglês, embora você possa traduzi-las de uma língua para a outra. E assim como há regras em uma tradução do francês para o inglês, existem regras numa tradução do neurologês para o psicologês. O problema enfrentado pelos cientistas da mente/ cérebro seria então decifrar essas regras. Como conseguir isso?
Vou sugerir uma analogia. Passe pela sólida entrada neoclássica do British Museum em Londres, vire à esquerda, atravesse a loja de suvenires e encontre um espaço entre as multidões de turistas que abarrotam as galerias Egípcia e Assíria. Um aglomerado de pessoas se debruça sobre uma laje de pedra negra posicionada de modo a formar um leve ângulo em relação ao solo. Se você conseguir se interpor entre os turistas e suas minicâmeras de vídeo, verá que a superfície plana da pedra é dividida em três seções, cada uma coberta de inscrições brancas. As inscrições na seção superior são hieroglifos egípcios arcaicos; as da seção central, cursivas, são escritas demóticas. E se você teve a chamada "educação clássica" ou já esteve na Grécia durante as férias, reconhecerá as inscrições da terceira seção como sendo grego. Você está olhando para a pedra de Roseta, o texto de um decreto redigido por um conselho geral de sacerdotes egípcios, que se reuniram em Mênfis, no Nilo, no primeiro aniversário da coroação do rei Ptolomeu, em 196 a.c. "Descoberta" (no sentido que os europeus consideram descobertos os artefatos dos quais não tinham conheci­mento prévio, a despeito do que.a população local soubesse deles) por um tenente-engenheiro da Força Expedicionária Napoleônica Egípcia, em 1799, a pedra tornou-se, com a derrota francesa, espólio de guerra britânico e foi levada para Londres e colocada ritualmente junto ao grande amontoado de espólios de impérios antigos, com os quais os britânicos enriqueceram-se durante um século de seu próprio domínio imperial.
Mas a importância da pedra de Roseta não está apenas no simbolismo da ascensão e queda de impérios (até mesmo a seção grega das três inscrições, na época em que foi gravada, indicava o lento declínio do poder grego e surgimento do domínio europeu). O fato de que as três inscrições carregavam a mesma mensagem, e de que os estudantes do século XIX conseguiam ler o grego, significava que eles podiam dar início à missão de decifrar os hieroglifos, até então incompreensíveis, que compunham a linguagem egípcia arcaica. A tradução simultânea fornecida pela pedra de Roseta se transformou num instrumento para desvendar códigos, e para mim é uma metáfora para a missão que enfrentamos ao tentar entender a relação entre mente e cérebro.
O cérebro e a mente têm muitos dialetos, mas eles estão relacionados da mesma forma que as inscrições na pedra de Roseta. Onde, entretanto, podemos encontrar um instrumento que nos ajude a decifrar os códigos? O exemplo da psicoterapia é sugestivo, mas de forma alguma suficientemente rigoroso a ponto de nos fornecer o código do qual precisamos. No entanto, ele sem dúvida nos dá uma pista. Uma característica fundamental da ciência experimental é que é sempre mais fácil estudar as mudanças do que a inalteração. Se pudermos achar muma situação na qual os processos mentais mudem, como quando os pacientes deprimidos melhoram, e verificar o que está mudando simultaneamente na linguagem cerebral, então podemos dar início ao processo de mapear as mudanças cerebrais em relação às mudanças mentais. Até o desenvolvimento, nos últimos anos, das técnicas de tomografia cerebral, que nos forneceram janelas para observar o cérebro humano em funcionamento - técnicas como tomografia computadorizada e ressonância magnética -, observar o interior do cérebro era possível apenas em animais de experimentação. Tanto para os homens quanto para os animais, um dos exemplos mais claros e simples de mudanças mentais aparece quando alguma nova tarefa ou atividade é aprendida e recordada subseqüentemente. Experiências como aprender e recordar são muito mais fáceis de estudar num laboratório do que as complexidades da depressão, e os psicólogos ao longo deste século, de Ivan Pavlov e B. F. Skinner em diante, têm preenchido quilômetros de estantes de bibliotecas com tratados detalhados sobre como induzir a salivação em cães que ouvem o soar de um sino, fazer ratos pressionarem alavancas para obter comida e coelhos piscarem os olhos à medida que luzes se alternem. Agora, tudo o que temos a fazer é mostrar o que acontece no interior do cérebro quando se dá esse tipo de aprendizado. Isso é o que os laboratórios de neurociência, no mundo todo, têm tentado fazer durante a Última década ou mais, e estamos começando a poder contar uma história mais ou menos clara sobre os processos cerebrais envolvidos no mecanismo da aprendizagem; acerca de como, durante uma nova experiência, novas rotas são estabelecidas no cérebro para que a memória fique gravada, à semelhança dos traços inscritos numa fita cassete à medida que uma música é gravada. Memórias que podem ser resgatadas exatamente como se ouvíssemos uma fita cassete.
Isso reduz o aprendizado e a memória a "nada além" de rotas no cérebro? Não mais do que, o quarteto de Beethoven é reduzido a padrões magnéticos na fita. Quando gravamos o som da música, numa fita ou CD, suas ressonâncias e nossa resposta a elas não são mais diminuídas ou alteradas do que o são o valor e o significado de nossas memórias pessoais, quando armazenadas nas rotas do cérebro. Em vez disso, conhecer a biologia do aprendizado e da memória só faz crescer nossa apreciação humana da riqueza de nossos processos internos. Precisamos, e continuaremos a precisar sempre, de ambas as linguagens, do cérebro e da mente, e das regras de tradução entre elas, para dar sentido a nossa vida.

STEVEN ROSE cursou Cambridge, graduando-se em bioquímica. Seu profundo interesse em compreender o cérebro o levou a realizar o doutorado no Institute of Psychiatry de Londres. Após períodos de pesquisas de pós-doutorado em Oxford (Fell, New College), Roma (bolsista NHI) e no Research Council de Londres, em 1969 se tornou professor e chefe do departamento de biologia na Open University da Inglaterra, onde, aos 31 anos de idade, era um dos mais jovens professores titulares da Inglaterra. Na Open University ele fundou, e tem chefiado desde então, o Brain and Behavior Research Group, tendo se concentrado na pesquisa dos mecanismos moleculares e celulares do aprendizado e da memória. Seu pioneirismo no estudo dessa área resultou na publicação de algo em torno de 250 trabalhos científicos e no recebimento de diversas medalhas e homenagens internacionais.
Além de seus trabalhos de pesquisa, Steven Rose escreveu ou editou catorze livros, incluindo NoFire, no Thunder (com Sean Murphy e Alastair Hay), Not in Our Genes (com Richard Lewontin e Leo Kamin) , Molecules and Minds e, mais recen temen te, The Making of Memory, vencedor do Rhone-Poulenc Science Book Prize.
As preocupações de Rose não se limitam à produção científi­ca, abrangendo também os mais amplos papéis sociais e ideológi­cos da ciência e sua aplicação para a sociedade. Essas preocupações o levaram a assumir um papel de destaque nas décadas de 60 e 70, juntamente com a socióloga feminista Hillary Rose, na fundação da British Society for Social Responsabiliiy in Science. Ele também assumiu publicamente uma posição muito clara na questão dos direitos animais e dos experimentos que utilizam animais de laboratório.




[1] Livro: RASE, Steven. A mente, o cérebro e a pedra de roseta. in: As coisas são assim: pequeno repertório científico do mundo que nos cerca. Orgs. John Brockman & Katinka Matzon. São Paulo, Cia das Letras,1997: 212-224.